sexta-feira, 12 de julho de 2024

O Dicionário Amazonense de Biografias e a consagração da elite amazonense


Em 1973 o Professor Agnello Bittencourt (1876-1975) publicou no Rio de Janeiro, pela Editora Conquista, o livro Dicionário Amazonense de Biografias: Vultos do Passado. Trata-se de um alentado trabalho de mais de 500 páginas contendo verbetes dos nomes, naturais da terra ou oriundos de outras paragens, que construíram o Amazonas. Mais que uma obra fundamental aos estudiosos de temáticas amazônicas, ele pode ser entendido como um instrumento de consagração da elite amazonense (DAOU, 2014; DANTAS, 2024).

Essa constatação vêm de longa data. As primeiras impressões surgiram simultaneamente à publicação. Genesino Braga, historiador dos mais renomados, publicou no Jornal do Commercio uma resenha com o sugestivo título Os varões assinalados. Os 270 verbetes privilegiaram os homens cujos nomes, por si só, em nossa sociedade, eram importantes elementos de distinção social, capazes de garantir importantes vantagens:

"Nelas se ostentam, como numa galeria de nossos varões insignes, quantos, aqui nascidos ou não, finados aqui ou alhures, deram a sua gota de suor, a sua gota de sangue, ou a sua gota de lágrima, para que esta terra alcançasse o fastígio de civilização dos dias de hoje e para que este povo se robustecesse na consciência de sua própria madureza social e política e de seu potencial de riqueza" (BRAGA, 1973, p. 03).

Não muito diferente, o escritor Moacyr Rosas definiu o Dicionário como o "[...] verdadeiro PANTEON amazonense" (CID, 1973, p. 11). Um panteão de homens responsáveis pelo progresso do Estado e que deveriam ser conhecidos e cultuados pela sociedade. Estirpes como as de Lobo d'Almada, Tenreiro Aranha, Manoel de Miranda Leão, Barão de Manaus, Jorge de Moraes, Comendador J. G. de Araújo, Heliodoro Balbi e Álvaro Maia.

Como se formou a elite amazonense? O Amazonas não possuía nobreza da terra com raízes na colonização da região no século XVII. O grupo dominante, formado por comerciantes portugueses e brasileiros, profissionais liberais e funcionários públicos, começou a ser organizar e ganhar destaque apenas a partir da segunda metade do século XIX com a instalação da Província do Amazonas e sua máquina burocrática. Na passagem do século XIX para o XX, com o advento da economia gomífera, a elite se modificou. Surgiram seringalistas, aviadores, grandes comerciantes, grandes burocratas, políticos, médicos, farmacêuticos, engenheiros, advogados, juízes e desembargadores, brasileiros e estrangeiros, formados no país ou no exterior.

A elite que recebeu o Dicionário nem de longe lembrava seus antepassados. Uma parte migrara para o Sudeste com a crise da borracha nos anos 1920. Não consigo não associar sua publicação e ampla aceitação às mudanças que estavam ocorrendo no seio desse grupo seleto que desde priscas eras comandava os rumos políticos, econômicos e culturais do Estado. A tradicional elite amazonense, dado o impacto da Zona Franca, estava perdendo sua influência e seus locais de referência. Novos agentes econômicos surgiram, impondo suas lógicas de produção (SOUZA, 1978). Ela Precisava, dessa forma, de uma âncora para se agarrar à sua referência mais cara: os nomes carregados de glórias do passado. O autor deixa isso claro na introdução:

"Se uma civilização é resultante dos homens, aí estão alinhados os nomes e os feitos de vários estadistas, professores, jornalistas, sacerdotes e tantos expoentes das mais variadas profissões que no Amazonas ajudaram a fazer uma capital moderna em plena selva e se distinguiram em cargos políticos ou administrativos, ou em colunas da imprensa, ou no púlpito, ou na cátedra - todos esses instrumentos e sinais da civilização" (BITTENCOURT, 1973, p. 15).

Ainda na introdução, Agnello afirma que buscou "[...] adotar uma atitude de isenção e imparcialidade, despido das emoções que a perspectiva do tempo diluiu e deve ter apagado" (BITTENCOURT, 1973, p. 14). Apesar da tentativa, na leitura das biografias apreendemos diferentes aspectos da sociabilidade da elite amazonense, elite essa da qual o autor fazia parte e conviveu pessoalmente por mais de seis décadas até sua mudança para o Rio de Janeiro: influências, alianças, disputas, tensões, ataques e mágoas.

Escrito por alguém que conviveu pessoalmente com boa parte dos biografados, o Dicionário de Agnello Bittencourt "transcreve o julgamento social de uma época" (CHARLE Apud DAOU, 2014, p. 33). E não existia ninguém melhor para realizar esse julgamento, pois Bittencourt, à época decano dos intelectuais amazonenses, reunia as qualidades de "autoridade" e "intelectual ideal", como bem definiu o historiador Hélio Dantas (DANTAS, 2024). Dessa forma, ele seria "[...] uma manifestação da própria elite em questão" (DAOU, 2014, p. 55).

Atualmente, quem melhor analisou o impacto do Dicionário foi a antropóloga Ana Maria Daou, autora de um importante estudo sobre a formação e transformação da elite amazonense na virada do século XIX para o XX. Ao entrevistar membros e descendentes da elite amazonense que viviam no Rio de Janeiro, alguns recomendaram a leitura do livro e demonstraram concordância com seu conteúdo "no sentido da autoconsagração ou de seu oposto, quando da exclusão de um familiar não contemplado nos verbetes" (DAOU, 2014, p. 35). 

Dicionários biográficos dessa natureza são de extrema importância para a realização de estudos históricos, antropológicos e sociológicos, pois, de acordo com a historiadora Alzira Alves de Abreu, eles possibilitam "[...] identificar a composição social das elites políticas, intelectuais, operárias, empresariais, militares, jornalísticas e outras, e o grau de participação dessas elites na esfera pública do poder" (ABREU, 1998, p. 03)

O Dicionário Amazonense de Biografias não foi publicado apenas para preencher uma lacuna em nossa historiografia, como menciona Agnello Bittencourt (BITTENCOURT, 1973, p. 13), mas também, e principalmente, para legitimar e consagrar a elite amazonense, responsável por "desenvolver" e "civilizar" uma sociedade tão diversa e peculiar como a do Amazonas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, Alzira Alves de. Dicionário biográfico: a organização de um saber. XXII Encontro Anual da ANPOCS, 1998.

BRAGA, Genesino. Os varões assinalados. Jornal do Commercio, 29/09/1973.

BITTENCOURT, Agnello. Dicionário Amazonense de Biografias: Vultos do Passado. Rio de Janeiro: Conquista, 1973.

CID, Pablo. Palavras... Jornal do Commercio, 09/09/1973.

DAOU, Ana Maria. A Cidade, o Teatro e o "Paiz das Seringueiras": práticas e representações da sociedade amazonense na passagem do século XIX-XX. Rio de Janeiro: Rio Book's, 2014.

DANTAS, Hélio da Silva. O adeus ao "mestre Agnello": Análise da consagração de um intelectual amazonense (parte I). Blog do Francisco Gomes, 07/07/2024.

SOUZA, Márcio. A Expressão Amazonense. Do colonialismo ao neocolonialismo. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1978.

sexta-feira, 29 de março de 2024

Amazônia em textos: seca em Manaus faz reaparecer gravuras rupestres milenares (2023)

Gravuras rupestres. Foto: Valter Calheiros.

A seca de 2023 trouxe algumas surpresas. Com a vazante do Rio Negro, ficaram novamente visíveis petróglifos (representações gravadas em rochas) milenares do Sítio Arqueológico de Lajes, localizado no bairro Colônia Antônio Aleixo, zona Leste de Manaus. Estima-se que tenham entre 1 e 2 mil anos. No texto abaixo a jornalista Elaíze Farias fala sobre a redescoberta dessas marcas de outrora carregadas de simbolismos:

"As gravuras em forma de rostos humanos submersas nas paredes rochosas do sítio arqueológico e geológico das Lajes, à margem do rio Negro, em Manaus, voltaram a aparecer. Localizadas na região do Encontro das Águas, a última vez em que elas ficaram visíveis foi na seca de 2010. Nesta quinta-feira (12), a Amazônia Real visitou o pedral do sítio das Lajes, no bairro Colônia Antônio Aleixo, na zona leste, e visualizou algumas das “carinhas”. Uma delas, uma feição quadrada, estava a 80 centímetros e um metro do nível do rio. A seca de 2023 no Amazonas já é considerada a maior em mais de 100 anos, com o agravante das altas temperaturas, degradação ambiental e fumaça.

Especialistas ouvidos pela Amazônia Real estimam que os petróglifos, como também são chamadas por arqueólogos essas gravuras, têm entre 1.000 a 2.000 anos. O sítio das Lajes foi o primeiro de Manaus a ser registrado no Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos (CNSA) do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e é um dos mais degradados. Ele abrange uma área que inclui encostas de terra preta, fragmentos cerâmicos e urnas funerárias, além das gravuras. Grande parte, porém, desapareceu por ações humanas e obras sem salvaguarda suficiente.

Outro bloco rochoso destas gravuras ainda está debaixo d´água, mas deve aparecer nos próximos dias, caso o rio Negro continue baixando. Em 2010, as que estão localizadas mais abaixo foram avistadas em apenas um dia e logo depois, quando o rio começou a subir, voltaram a ficar submersas. Além das gravuras que reproduzem rostos humanos, também são encontrados, na parte de cima do pedral, imagens de animais e representações das águas, além de cortes nas rochas que mostram resultados de oficinas líticas – significando que as ferramentas para as gravuras eram confeccionadas ali mesmo.

Embora as gravuras do sítio das Lajes nunca tenham sido estudadas, a avaliação cronológica pode ser estimada com estudos comparativos feitos no sítio arqueológico Caretas, no rio Urubu, no município de Itacoatiara (a 175 quilômetros de Manaus), por semelhanças que existem em comum. A arqueóloga Marta Sara Cavallini estudou este sítio, que tem as mesmas características às do sítio das Lajes, documentando as centenas de figuras gravadas nas rochas e procurando entender a antiguidade dos vestígios.

No sítio Caretas a hipótese do nosso trabalho é que essas gravuras podem ter sido produzidas entre 1.000 e 2.000 anos atrás. As ‘caretas’ das Lajes não foram estudadas, então se trata de dizer que sendo que o estilo é semelhante poderiam fazer parte do mesmo código de comunicação”, disse à Amazônia Real.

O arqueólogo Filippo Stampanoni Bassi, que pesquisou o sítio Caretas junto com Marta, afirma que datar as gravuras rupestres é um desafio particularmente complexo, mas sabe-se que nessa época havia populações indígenas que moravam em grandes aldeias em frente ao Encontro das Águas.

Esses locais, hoje sítios arqueológicos com terra preta, grandes quantidades de fragmentos de cerâmica e gravuras rupestres, contam a história indígena antiga da região e precisam ser considerados com respeito por todos nós que moramos hoje em Manaus”, disse o arqueólogo.

Marta e Felippo afirmam que os petróglifos do afloramento rochoso Lajes apresentam fortes semelhanças estilísticas com outras figuras em formato de cabeça que se encontram gravadas ao longo de numerosos pedrais ribeirinhos da Amazônia central. Os dois dizem que outras características compartilhadas entre esses sítios de arte rupestre são o fato de serem visíveis somente nas épocas de seca dos rios e de normalmente localizarem-se próximos de antigos assentamentos indígenas pré-coloniais.

Diferente do sítio Caretas, as gravuras do sítio das Lajes estão em paredes extensas e debaixo da água, o que torna seus estudos complexos, mas ao mesmo tempo lhes dão uma mística enigmática. Não se pode afirmar nem mesmo como as gravuras foram feitas ou se foi em uma época de grande seca ou se o rio, há mais de mil anos, tinha um nível mais baixo do que atualmente.

Essas coisas só aparecem de vez em quando. Tem duas hipóteses. Ou elas foram feitas numa época de grande seca ou houve alguns episódios de seca no passado. Só que as secas atuais acontecem num contexto de mudança climática, acompanhada de impactos das ações humanas”, diz o arqueólogo Eduardo Goes Neves, relatando os processos de degradação florestal causados por ação humana na região.

Segundo Neves, o sítio das Lajes é um patrimônio “super importante”, mas mal estudado. Para agravar a situação, o sítio é impactado e ameaçado por empreendimentos, como é o caso do projeto Porto da Lajes.

Quando as gravuras apareceram em 2010, Neves lembra que ele e outros especialistas chegaram a estimar que elas tinham 4 mil anos ou mais. “A gente achava que era bem antigo. Que devia ter uma época que era mais seca na Amazônia. Só que a Marta Cavallini encontrou umas coisas parecidas no rio Urubu e conseguiu fazer umas datações e a idade era de pouco mais de mil anos ou dois”, conta".

FARIAS, Elaíze. Seca em Manaus faz reaparecer gravuras rupestres milenares. Amazônia Real, 13/10/2023, Adaptado.

segunda-feira, 25 de março de 2024

Amazônia em textos: Quatro gêneros de coisas que há neste rio (1641)

Cacaueiro, 1806. Desenho de Charles Landseer. Fonte: Brasiliana Iconográfica.

O padre jesuíta espanhol Cristóbal de Acuña (1597-1675) foi o cronista da viagem de Pedro Teixeira ao Rio Amazonas, tendo nos legado a obra Nuevo Descubrimento Del Gran Río de Las Amazonas. No trecho abaixo ele fala sobre quatro gêneros da região com potencialidade econômica: madeiras, cacau, tabaco e cana-de-açúcar:

"Há neste grande Rio das Amazonas quatro gêneros que, cultivados, serão sem dúvida suficientes para enriquecer não a um mas a muitos Reinos. O primeiro são as madeiras, que além de haver muitas de tanta curiosidade e estima como o melhor ébano, há tantas das comuns para embarcações, que se poderiam mandar para outras regiões, certos sempre de que, por muito que se tirem, nunca se poderão esgotar. O segundo gênero é o cacau, de que suas margens estão tão cheias que algumas vezes as madeiras que se cortavam para o alojamento de todo o exército eram quasi exclusivamente as das árvores que produzem este tão estimado fruto da Nova Espanha, e de todos os lugares onde sabem o que seja o chocolate. Esse fruto beneficiado é de tanto proveito, que a cada pé de árvore correspondem de renda todos os anos, fora todos os gastos, oito reais de prata ; e bem se vê com que pouco trabalho se cultivam estas árvores neste Rio, pois sem nenhum benefício da arte, só a natureza as enche de abundantes frutos.

O terceiro é o tabaco, que se encontra em grande quantidade e muito crescido entre os moradores ribeirinhos; e se se cultivasse com o cuidado que pede esta semente, seria cios melhores do mundo, porque na opinião dos entendidos, a terra e clima formam tudo o que se pode desejar para grandiosa colheita. As maiores, que a meu ver, se deveriam empreender neste Rio, são as de açúcar, que é o quarto gênero que, como. o mais nobre, mais proveitoso, mais seguro e de maiores rendimentos para a Coroa Real, e do qual há tempos tanto diminuiu o tráfico no Brasil, mais se deveria tomar a peito, e procurar desde logo instalar muitos engenhos, que em breve tempo restaurassem as perdas daquela costa. Para o que não seria mister nem muito tempo nem muito trabalho, nem, o que hoje se receia, muita costa; pois a terra para cana doce é a mais famosa que há em todo o Brasil, como podemos testemunhar, os que percorremos aquelas regiões: porque é toda: ela um massapê contínuo, que é o que os lavradores desta planta tanto estimam e com as inundações do Rio, que nunca duram senão poucos dias, ficam tão fertilizadas que antes seria para temer o demasiado viço.

E não será novidade naquela terra levar cana doce, pois por todo este dilatado Rio, desde as suas nascentes, sempre a fomos encontrando, que parece dava desde logo mostras do muito que depois se multiplicará, quando se queiram fazer engenhos para tratá-la. Estes serão de mui pequeno custo, por haver, como disse, as madeiras à mão e a água em abundância, e só se precise de cobre, o que com muita facilidade fornecerá nossa Espanha, certa do bom pagamento que por ele havia de receber.

Não só estes gêneros podia prometer este novo mundo descoberto, com que enriquecer a todo o Orbe, mas também outros muitos, que, embora em menor quantidade, não deixariam de auxiliar com o seu quinhão para o enriquecimento da Coroa Real, como são o algodão, que se colhe em abundância, o urucú, com que se obtém um vermelho perfeito, que os estrangeiros estimam grandemente; a canafístula, a salsaparrilha, os óleos que competem com os melhores bálsamos para curar feridas, as gomas e resinas perfumadas, a pita, de que se tira o mais estimado fio, e da qual há grande abundância , e outras muitas coisas que cada dia a necessidade e a ambição virão trazendo à luz".

ACUÑA, Cristóbal de. Descobrimentos do Rio das Amazonas. São Paulo: Companhia das Letras, 1941, 193-195.

domingo, 28 de janeiro de 2024

A ocupação da Amazônia

Artefatos expostos no Laboratório de Arqueologia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Foto: Bruno Kelly.

Os cronistas europeus que passaram pela Amazônia entre os séculos XVI e XVII deixaram interessantes e importantes relatos sobre as populações indígenas, auxiliando na reconstituição da demografia amazônica antes e durante a conquista. Frei Gaspar de Carvajal viu na província de Machifaro, ou Machiparo, na margem direita do Solimões, "[...] muitas e grandíssimas povoações que reúnem cincoenta mil homens, entre os trinta e setenta anos". A abundância de comida -  tartaruga, carne, peixe e biscoito - era tanta que "[...] daria para sustentar um batalhão de mil homens durante um ano".

Esses relatos demonstram que a Amazônia foi uma região densamente povoada, sofrendo um catastrófico decréscimo populacional nos dois primeiros séculos da colonização, causado pela violência da escravidão e pela letalidade das doenças. Quando começou a ocupação do território?

Segundo o arqueólogo Eduardo Góes Neves, a região começou a ser ocupada há cerca de 11 mil anos, mas essa presença pode ser ainda mais antiga. Na caverna de Pedra Pintada, localizada em Monte Alegre, no Pará, foram encontrados indícios datados de 9.200 a. C. Na gruta Lapa do Sol, na bacia do Guaporé, no Mato Grosso, foram encontrados resquícios de 12 mil a. C. O pesquisador explica que "De qualquer modo, diferentes partes da Amazônia já eram ocupadas em torno de 7000 a. C. As evidências vêm de locais tão diversos como a serra dos Carajás, no Pará; a bacia do rio Jamari, em Rondônia; a região do rio Caquetá (Japurá), na Colômbia; o baixo Rio Negro, próximo a Manaus, e o alto Orinoco, na Venezuela".

Apesar de os grupos nativos terem diferentes culturas e formas de sociabilidade, eles compartilhavam entre si a exploração sustentável da fauna e da flora, pescando, coletando, cultivando o solo e caçando animais de pequeno porte. De suas atividades restaram artefatos de pedra polida, fragmentos de pontas de lança, potes e vasilhames.

A arqueóloga estadunidense Betty Meggers defendia a tese de que o ambiente amazônico, pobre em nutrientes e sem animais de grande porte, teria impedido a formação de grandes contingentes populacionais, contribuindo para a "degeneração" de seus habitantes. Em contrapartida, a também arqueóloga estadunidense Anna Roosevelt defende que as terras baixas da região (várzeas), ricas em nutrientes e com grande fartura, foram o polo irradiador da povoação da Amazônia, abrigando cacicados complexos e sofisticados:

"Desta forma, enquanto habitat da ocupação humana pré-histórica, a Amazônia surge como mais rica, complexa e variada do que pensávamos. Mais significativo para a compreensão dos padrões da adaptação nativa e desenvolvimento cultural é, provavelmente, o fato de que existiram determinadas áreas nas quais a abundância de recursos sustentava populações caçadoras-coletoras, horticultoras e agricultoras durante longos períodos, e que nestas áreas se desenvolveram grandes populações indígenas".

Diferente da tradicional periodização da Pré-História europeia, dividida em Paleolítico, Mesolítico e Neolítico, a Pré-História da Amazônia é dividida em três fases distintas das propostas por Thomsem, Lubbock e Mortillet: fase Paleoindígena, fase Arcaica e fase da Pré-História Tardia. Isso se dá pelo fato de a Pré-História da região ainda não ter sido plenamente estudada e possuir suas próprias particularidades.

A fase Paleoindígena vai de 11.000 a 7.500 a. C. Os primeiros habitantes da Amazônia eram nômades, e sobreviviam da coleta de frutos, moluscos, da agricultura rudimentar e da caça de animais de pequeno porte. Nas regiões do norte do Rio Orenoco, no escudo e na costa da Guiana e no Rio Galera, no Mato Grosso, foram encontradas ferramentas de pedra como machados, pontas de lanças e raspadores. Apesar de as pontas de lanças terem sido encontradas, a caça de grande porte era rara. As gravuras rupestres desse período, segundo Anna Rosevelt, "[...] abrangem círculos rajados, faces humanas estilizadas ou máscaras, triângulos púbicos femininos, motivos baseados nos pés humanos, quadrúpedes, motivos geométricos sombreados e cavidades para trituramento e raspagem".

A fase arcaica compreende o período de 7.500 a. C. a 1.000 a. C., sendo caracterizada pela existência de complexos pré-cerâmicos, evidenciando a transição dos grupos coletores para grupos mais complexos que praticavam a agricultura de subsistência. Os sambaquis, depósitos artificiais de conchas, são as principais fontes dessa época. No sambaqui de Taperinha, em Santarém-PA, foram encontrados instrumentos de pedra lascada (machados, moedores e quebradores de grãos), de ossos e alguns exemplares de cerâmica avermelhada com desenhos geométricos. O tamanho dos sambaquis indica o aumento demográfico e o surgimento de grupos humanos que passaram a se fixar em um único local. "Nesse sentido", explica Roosevelt, "este estágio parece representar uma fase de intensificação da subsistência e do crescimento populacional similar àquela do Mesolítico no Velho Mundo".

A Pré-História Tardia vai de 1000 a. C. a 1000. d. C. Se desenvolvem, à margem dos principais rios da Amazônia, sociedades indígenas bastante complexas em aspectos demográficos, econômicos e políticos. Ela são conhecidas como cacicados complexos. Por volta do ano 1000 a. C. surgiram as culturas dos construtores de tesos, aterros artificiais inundáveis onde eram erguidas as aldeias. Elas foram sucedidas por sociedades mais desenvolvidas, divididas hierarquicamente, apresentando uma cerâmica altamente refinada, cujos melhores exemplares são encontrados na Ilha do Marajó e na região de Santarém-PA.

Quantos eram os indígenas antes da conquista? O professor William M. Denevan, do Departamento de Geografia da Universidade de Wisconsin-Madison, estimou para a Grande Amazônia (bacia Amazônica, leste e sul dos Andes e Amazônia Legal) uma população de 6 milhões e 800 mil, dos quais 5 milhões habitavam a bacia Amazônica. O historiador John Hemming, no final da década de 1970, estimou a população da bacia Amazônica no período pré-colonial em 3 milhões 625 mil indivíduos.

O antropólogo Antônio Porro registra que os grupos linguísticos que compunham a Amazônia antes da chegada dos europeus eram oito: Aruak, Karib, Tupi, Jê, Katukina, Pano, Tukana e Xiriana. Os povos que formam esses grupos, cerca de 90, encontram-se distribuídos pela bacia hidrográfica da região.

Os povos da língua Aruak estão localizados nos afluentes do rio Solimões. No rio Jutaí encontramos os Wairaku; no Juruá os Marawá e Kulína; no Purus os Purupurú, Paumari, Yamamadí, Ipurinân e Kanamari; no Içá os Pasé e Wainumá; no Japurá os Kayuixâna e Yumana; nos rios Negro e Içana os Manáo, Baré, Warekúna e Baníwa. Entre a Serra de Parima e a de Acaraí encontram-se os Guinaú, Wapitxana, Atoraí e Maopituan. Na Ilha de Marajó e na região litorânea do Amapá estão os Palikur, Arawak e Aruân.

Encontram-se no maciço das Guianas e arredores, nos afluentes ao norte do rio Amazonas e a leste do rio Negro os povos do grupo Karib. Nos maciços temos os Purukotó, Makiritare, Makuxí e Taulipang; no rio Branco, os Pauxiânia e Parauiana; no rio Jauaperi, os Yauaperí e Waimiri-Atruahí; no rio Jatapu, os Bonarí; no rio Nhamundá, os Xauianá e Piranya; no rio Trombetas, os Kaxuiana, Pauxi e Pianakotó; no rio Paru, os Apalaí, Wayana e Tirió; e no sul do Amazonas, os Arara, entre o Xingu e o Tocantins.

Os tupi têm localização semelhante à dos Karib, entre o sul do médio e baixo Amazonas. No rio Madeira encontram-se os Kawahíb, Arikên, Tuparí e Tupinambarâna; na bacia do rio Tapajós, os Mundurukú, Mawé, Apiaká, Kawahíb, Parintintim e Kayabí; no rio Xingu os Jurúna, Oyanpík, Asuriní e Xipáya; no rio Tocantins os Pakayá, Parakanân e Amanayé; no extremo leste do Pará, até o Maranhão, os Tupinambá, Tembé, Guajajára e Tobajára; no rio Paru os Apama; no rio Nhamundá os Apoto; e na área de várzea do Solimões os Kokâma, Omágua e Yurimágua.

Os povos da língua Jê são encontrados nas bacias do médio Xingu, Araguaia e Tocantins. São eles os Kayapó, Gorotíre, Gaviões, Apinayé e Timbíra. Nos rios Tapajós e Madeira os Nambikuára, Torá e Pakaánovas.

Segundo Edilene Coffaci de Lima, "Desde a primeira metade do século passado, os registros históricos produzidos por missionários, viajantes e agentes governamentais sobre as populações indígenas do rio Juruá fazem referência a grupos indígenas conhecidos pelo nome de Katukina". Os povos do grupo Katukina estão localizados entre os rios Purus e Juruá. São eles os Katukína, Katawixí e os que levam o sufixo Diapá.

Os povos do grupo Pano encontram-se entre os rios Juruá, Javari, Içá e Japurá. Entre os rios Juruá e Javari estão os Kaxinawá e Mayorúna. Entre os rios Içá e Japurá, os Tukúna, Yurí, Mirânia e Koerúna. Esses povos, no final do século XIX, foram obrigados a se refugiar em locais distantes na floresta por conta da invasão de suas terras durante a extração do látex das seringueiras. Muitos morreram em conflitos e outros foram escravizados.

No rio Uaupés estão localizados os grupos dos Tukána, que são os Takána, Desàna e Wanâna. Os antropólogos Stephen Hugh-Jones e Aloisio Cabalzar explicam que "Os Tukano compartilham uma área geográfica contínua e um mesmo modo de vida básico, que inclui a caça e a coleta, mas no qual predomina a pesca e a agricultura de coivara, sendo a "mandioca brava" o principal produto".

Em Roraima são encontrados os representantes do grupo Xiriâna, que são os Xiriâna e Waiká. De acordo com Otto Zerries, trata-se de um subgrupo Yanomami. Waiká significa "pessoa braba" e Xiriana "pessoa mansa". Essas nomenclaturas, vistas pelos indígenas como apelidos, não são aceitas pelos Yanomami.

Como podemos ver, Amazônia, até 1500-1600, abrigava grandes populações indígenas organizadas em grupos linguísticos com culturas distintas que habitavam a igualmente rica bacia hidrográfica da região. Aqui exploraram as matas e os rios, cultivaram o solo e produziram uma refinada cerâmica que impactou cronistas e arqueólogos por sua qualidade e riqueza de detalhes. O primeiro tiro de espingarda deu início à ruína dessas sociedades.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CARVAJAL, Frei Gaspar de. Descobrimento do Rio das Amazonas. Traduzidos e anotados por C. de Melo-Leitão. São Paulo; Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1941.

FREIRE, José Ribamar Bessa (org.); PINHEIRO, Geraldo P. Sá Peixoto; TADROS, Vânia Maria Tereza Novoa; SANTOS, Francisco Jorge dos; SAMPAIO, Patrícia Maria Melo; COSTA, Hideraldo Lima da. A Amazônia Colonial (1616-1798). 4° ed. Manaus: Editora Metro Cúbico, 1991.

HUGH-JONES, Stephen; CABALZAR, Aloisio. Tukano (verbete). Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Tukano.

LIMA, Edilene Coffaci de. Katukina Pano (verbete). Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Katukina_Pano.

NEVES, Eduardo Góes. Arqueologia da Amazônia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.

PORRO, Antônio. O povo das águas: ensaios de etno-história amazônica. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.

ROOSEVELT, Anna Curtenius. Arqueologia Amazônica. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras; Secretaria Municipal de Cultura; FAPESP, 1992.

ZERRIES, Otto. Los Waika (Yanoama), indígenas del Alto Orinoco 1954-1974. Indiana 3: 147-150, 1975.

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

A ocupação da América

Esquema de ocupação da América. Fonte: Letícia Fuentes.

Quando os europeus chegaram ao continente que seria denominado América, se depararam com milhares de habitantes, com formas de organização, línguas e culturas diferentes das suas. O impacto, de ambos os lados, foi imenso. Os invasores começaram a se questionar quais as origens daquelas pessoas. Teriam nascido ali? Vieram de outro lugar?

O linguista Benito Arias Montano (1527-1598), autor da Bíblia Poliglota, registrou, em uma perspectiva religiosa, que a América foi povoada por personagens bíblicos: Ophis colonizou a região nordeste do continente, enquanto Jobal colonizou o Brasil.

Desde a segunda metade do século XIX, pesquisadores das mais variadas áreas, como História, Antropologia e Arqueologia, elaboraram hipóteses e criaram teorias sobre a ocupação do continente americano: teoria asiática, teoria malaio-polinésia e teoria africana.

Teoria Asiática

Essa teoria afirma que grupos de homens e mulheres caçadores e coletores chegaram à América através do Estreito de Bering, região que separa o extremo leste da Ásia do extremo oeste da América do Norte, há cerca de 18-20 mil a.C., período em que ocorreram profundas mudanças climáticas.

Esses povos saíram de suas regiões de origem em busca de melhores condições de vida, atravessando essa passagem entre a Ásia e a América, em diferentes ondas migratórias, durante a última Era do Gelo, momento em que as camadas de gelo se elevaram e, consequentemente, os níveis dos oceanos diminuíram, formando uma ponte terrestre entre os dois continentes.

Através da análise de milhares de amostras de DNA, geneticistas mostraram que povos como os incas, astecas e iroqueses, entre as Américas do Sul e do Norte, eram geneticamente semelhantes aos dos povos da Sibéria, uma extensa região do norte da Ásia que compreende o Cazaquistão, a Mongólia e a China.

O historiador Fausto Evaldo Strassburger afirma que "O pressuposto de que o homem teria vindo unicamente a pé, atravessando a Beríngia, atrás dos rebanhos de animais que migravam, não faz justiça à capacidade intelectual humana, reduzindo o homem americano a um descendente de um animal não mais capaz que os camelos, mastodontes e bisões que migravam para a América".

Teoria Malaio-Polinésia

Essa teoria defende que grupos de caçadores e pescadores, hábeis na arte da navegação, teriam vindo da Polinésia, da Melanésia e da Austrália (regiões da Oceania), entre 10 e 4 mil anos a.C. para a América através do Oceano Pacífico, utilizando embarcações rústicas de pequeno porte, tendo aproveitado as correntes marinhas em direção à costa do continente americano.

Da costa da América do Sul eles se espalharam pelo restante do território. Em sítios arqueológicos peruanos foram encontrados vestígios de aves marinhas, mariscos, peixes, moluscos, ferramentas e habitações, com forte indício de terem pertencido a pescadores, dado o tipo de dieta e materiais encontrados.

O etnólogo francês Paul Rivet (1876-1958), criador dessa teoria, não descarta as migrações pelo Estreito de Bering, afirmando que os humanos podem ter chegado à América através de mais de uma rota em diferentes momentos. Análises genéticas constataram que o DNA de grupos nativos da América do Sul possui semelhanças com povos da Oceania.

Teoria Africana

Uma outra teoria, defendida principalmente por pesquisadores brasileiros, afirma que os povos americanos descendem de africanos que teriam migrado para a América através do Estreito de Bering, em data ainda incerta. Essa teoria tem como base o estudo dos crânios de indígenas brasileiros e de outras partes do continente, que após análise mostraram ter semelhança com os de povos da África.

Arqueólogos brasileiros, europeus e estadunidenses, ao fazerem a análise craniométrica, demonstraram que eles não possuíam traços asiáticos, mas sim africanos. Para o arqueólogo Walter Neves, a América foi ocupada primeiramente por povos africanos e não-mongolóides (não asiáticos).

O exemplar mais antigo foi encontrado no Brasil em 1974. Trata-se do fóssil de uma mulher, batizada como Luzia, datado com 11.500 anos de idade. Seu crânio possui fortes traços africanos, o que pode indicar que a chegada desse grupo foi anterior à dos asiáticos. Os cientistas acreditam que os grupos asiáticos, por conta da disputa por alimentos e território, exterminaram os africanos.

Concordado com o historiador Fausto Strassburger que "[...] pessoalmente acredita-se que possam ter sido várias ondas migratórias de diferentes lugares do mundo e que formaram esta diversidade de tipos genealógicos observados nos ameríndios, já que em algumas populações indígenas atuais da América observam-se traços característicos da etnia mongólica, noutras de aborígines australianos, noutras de polinésios, noutras de africanos, enfim, compondo uma variedade morfológica que dificilmente teria sido formada pelo concurso de apenas uma etnia".

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:

FIGUEIREDO, Aguinaldo Nascimento. História do Amazonas. Manaus: Editora Valer, 2011.

STRASSBURGER, Fausto Evaldo. Ocupação humana no continente americano. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) - Universidade Federal da Fronteira Sul, Curso de Licenciatura em História, Erechim, RS, 2020.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

A Amazônia Pombalina

Retrato do Marquês de Pombal. Pintura de Louis-Michel van Loo e Claude Joseph Vernet, 1766.

A Amazônia começou a passar por transformações profundas na segunda metade do século XVIII. Em Portugal, subiu ao trono em 1750 o Rei D. José I, conhecido como O Reformador, que botou em prática um projeto de transformação política e econômica no reino e nas colônias, nomeando o Marquês de Pombal (Sebastião José de Carvalho e Melo), para empreender essa tarefa.

Portugal era uma nação pobre e dependente da Inglaterra. Para superar essa condição, o Marquês de Pombal elaborou um ambicioso projeto de modernização das instituições. A Amazônia, que até então era uma região, no cenário colonial, subalterna, passou a fazer parte dos quadros de desenvolvimento mercantilista.

Numa tentativa de reordenação e aperfeiçoamento da manutenção das fronteiras, é criado em 1751 o Estado do Grão-Pará e Maranhão, formado pelas capitanias do Pará, Maranhão, Piauí e Rio Negro, com capital em Belém.

As aldeias tiveram suas nomenclaturas alteradas, recebendo nomes portugueses. Exemplos: Mariuá – Barcelos; Taracuatíua – Fonte Boa; Saracá – Silves; Abacaxis – Itacoatiara; Trocano – Borba; Caiçara – Alvarães; São Paulo dos Cambebas – Vila de São Paulo de Olivença.

Em 03 de março de 1755 é criada a Capitania de São José do Rio Negro, desmembrada do Estado do Grão-Pará e Maranhão. A criação dessa nova unidade política colonial tinha três objetivos. O primeiro, facilitar a administração portuguesa na Amazônia, pois as dimensões geográficas da região faziam com que as decisões tomadas em São Luís, no Maranhão, e Belém, no Pará, chegassem de forma tardia nas localidades mais interioranas, extremamente distantes dos centros das decisões políticas. O segundo, facilitar a catequização dos indígenas. O terceiro, garantir a soberania portuguesa frente as ameaças de espanhóis, ingleses, holandeses e franceses.

O rei de Portugal, Dom José I, autorizou, no Alvará de 04 de abril de 1755, o casamento entre portugueses e indígenas, com amplos benefícios para os casais constituídos e seus descendentes, súditos a partir de agora com forte ligação com a metrópole portuguesa. Essa política de união entre brancos e indígenas começou a surtir efeito cedo, como fica claro em uma carta de Mendonça Furtado para o rei, onde ele transmite que conseguiu que “naquele pouco espaço se contrahissem não menos de 78 matrimonios no Ryo Negro”.

Os jesuítas foram expulsos da Amazônia em 1759. Essa ação fazia parte da obra modernizadora iluminista de Pombal, que previa a atuação ampliada do Estado sobre todos os setores da sociedade. Afirmava-se que os jesuítas estavam criando um "Estado dentro do Estado", oferecendo riscos à soberania portuguesa.

Com o fim da União Ibérica (1580-1640), período de domínio da Espanha sobre Portugal, foi necessário estabelecer novos tratados de limites. Três foram assinados durante o período Pombalino: Tratado de Madri (1750), Tratado de El Pardo (1761) e Tratado de Santo Ildefonso (1777).

No Tratado de Madri ficou acertado que Portugal reconhecia a soberania da Espanha sobre a Colônia de Sacramento, fundada pelos portugueses em 1680, e o território do Rio da Prata, enquanto a Espanha entregava a Portugal os Sete Povos das Missões, no Rio Grande do Sul, e os territórios da Amazônia e Mato Grosso. Para ficar com essas terras, Portugal invocou a tese do Uti Possidetis, segundo a qual a terra pertence a quem a ocupa e desenvolve.

Esse tratado foi anulado em 1761 pelo Tratado de El Pardo por conta das Guerras Guaraníticas, encabeçadas pelos indígenas e jesuítas espanhóis que se recusaram a deixar as terras dos Sete Povos das Missões e pela falta de demarcação dos limites na Amazônia.

Em 1777 é assinado o Tratado de Santo Idelfonso, que determinou, de forma definitiva, que Portugal ficava com a região Amazônica, e a Espanha ficava com a Colônia de Sacramento e os Sete Povos das Missões, no Sul. O Tratado de Badajós, de 1801, autenticou essas decisões. A Amazônia, ocupada e desbravada pelos portugueses, agora lhes pertencia de fato.

Visando a dinamização da produção e comércio das drogas do sertão, o desenvolvimento da agricultura e a introdução de escravizados africanos, foi criada em 1755 a Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, com sede em Lisboa.

Portugal buscou utilizar a mão de obra indígena, integrando os nativos à cultura europeia, os transformando, pela força, em braços úteis ao progresso econômico. Em 06 de junho de 1755 a escravidão indígena foi abolida, sendo os nativos igualados aos portugueses. Dois anos depois o trabalho forçado foi regulamentado através do Diretório dos Índios (1757).

O Diretório determinou que os indígenas ficariam sob domínio dos Diretores, que deveriam zelar pela administração das comunidades. Os indígenas foram proibidos de falar suas línguas e o nheengatu, língua geral criada pelos jesuítas, devendo falar apenas a língua portuguesa e utilizar sobrenomes em português. Suas casas deveriam ser construídas como a dos brancos, com divisões para quarto, cozinha etc.

Os indígenas deveriam se dedicar à agricultura de exportação, mas também eram obrigados a cultivar mandioca, feijão, milho e arroz para consumo próprio e para abastecer os moradores das cidades. A atividade comercial sofreu interferência, com a padronização de pesos e medidas. Os povoados próximos aos mares e rios deveriam se dedicar à salga de peixe para a exportação.

Nos povoados e arredores onde existissem drogas do sertão, os indígenas que tivessem finalizado o cultivo de suas roças seriam arregimentados pelo Diretor para sua exploração, com fiscalização do Cabo das Canoas, que evitaria que o diretor se beneficiasse do trabalho dos nativos.

Os indígenas eram obrigados a pagar o dízimo, que era a décima parte do que produzissem e adquirissem, ficando o diretor responsável pela cobrança. Este último tinha como salário a sexta parte do cultivo e produtos adquiridos pelos indígenas, estes últimos não devendo ser produtos comestíveis.

Nesse novo contexto de trabalho compulsório os indígenas eram distribuídos pelos diretores entre os habitantes dos povoados e vilas, os ajudando na extração das drogas do sertão e nas lavouras. Uma parte deles ficava retida em suas próprias povoações para a defesa do território e os serviços prestados à coroa. O diretório foi abolido em 1798.

Uma nova divisão territorial foi feita em 1772. O Estado do Grão-Pará e Maranhão foi dividido em dois estados independentes: a Capitania do Grão-Pará e Rio Negro, com capital em Belém, e o Estado do Maranhão e Piauí, com capital em São Luís.

A Era Pombalina chegou ao fim em 1777, quando o Rei D. José I faleceu e sua filha, Maria I, demitiu o Marquês de Pombal do cargo de ministro.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:

FREIRE, José Ribamar Bessa (coord.); PINHEIRO, Geraldo P. Sá Peixoto; TADROS, Vânia Maria Tereza Novoa; SANTOS, Francisco Jorge dos; SAMPAIO, Patrícia Maria Melo; COSTA, Hideraldo Lima. A Amazônia Colonial (1616-1798). Manaus: Editora Metro Cúbico, 1991.

SANTOS, Francisco Jorge dos. História do Amazonas. 1° ed. Rio de Janeiro: MEMVAVMEM, 2010.

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

O xote, o baião e a esperança em dias melhores: a presença nordestina em Manaus

Soldados da borracha. Fonte: O Cruzeiro, 1944.

A região Nordeste é formada pelos estados da Bahia, Paraíba, Ceará, Alagoas, Maranhão, Piauí, Pernambuco, Sergipe e Rio Grande do Norte. Dona de uma rica diversidade cultural, foi berço da colonização portuguesa e palco dos primeiros grandes ciclos econômicos, o do pau Brasil e do açúcar. Até 1763 a cidade de Salvador, na Bahia, foi a capital e principal porto do país. Milhares de nordestinos, entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, migraram em uma verdadeira epopeia para a Amazônia, influenciando imensamente nossa economia e cultura.

Atraídos para uma região tão vasta, em busca de um refúgio contra as secas que assolavam seus estados de origem, logo se viram frente a uma das piores faces da economia gomífera: o regime de servidão. Em teoria, o seringueiro era um trabalhador livre, mas trazia, desde sua viagem para a região, uma dívida com o dono do seringal. Chegando ao local de trabalho, extraía o látex até pagar o que devia ao seringalista. Só que isso raramente acontecia, pois todos os utensílios para o trabalho e bens de consumo deveriam ser comprados no barracão, também de propriedade do seringalista.

Assim, esse trabalhador, explorado em um regime de trabalho que começava entre 4:00-5:00 horas, percorrendo vários quilômetros para encontrar seringueiras, ficava em um ciclo eterno de fazer e pagar dívidas. Se tentasse comprar em outro lugar, falsificar o peso das pélas de borracha ou fugir do seringal, era eliminado pelo patrão, que controlava o lugar com mãos de ferro.

Samuel Benchimol, no livro Amazônia – Formação Social e Cultural (1999), faz um minucioso levantamento da entrada de imigrantes nordestinos na região. Durante as secas de 1877 e 1878, foi registrada a entrada de 19.910 imigrantes. Em 1892 entraram mais 13.593. Entre 1898 e 1900 aportaram em Belém e Manaus, posteriormente com destino aos seringais, 88.709. De 1900 até a crise da economia gomífera, foram contabilizados 150.000 nordestinos. De 1877 a 1920, estima o sociólogo, migraram 300.000 pessoas.

Alguns conseguiam, mesmo em meio à brutalidade da selva, galgar melhores posições. Ainda de acordo com Benchimol, parte dos seringalistas tinha origem nordestina. Eles começavam a vida como seringueiros 'brabos', sem experiência, e aos poucos, com a ajuda dos seringueiros ‘mansos’, ascendiam socialmente, assumindo diferentes cargos no seringal – mateiro, comboieiro, pesador, classificador, capataz, auxiliar de escrita, gerente de barracão, arrendatário de estradas e colocações – até chegar ao topo, tornando-se seringalistas, proprietário de seus próprios seringais.

Durante a Segunda Guerra Mundial, com o bloqueio das colônias asiáticas que produziam borracha pelo Japão, matéria prima necessária na indústria armamentista, os Aliados voltaram seus olhos para a Amazônia. Entre 1943 e 1945 foram recrutados cerca de 60.000 mil trabalhadores de diferentes estados da região Nordeste para a extração de látex. Estes ficaram conhecidos como Soldados da Borracha. Os governos estadunidense e brasileiro esperavam elevar a produção ao número de 70.000 mil toneladas anuais até onde a Guerra durasse.

Muitos deles ficaram em Manaus, atuando em outras atividades como o comércio ou realizando trabalhos braçais. O historiador Arthur Cezar Ferreira Reis registra, em História do Amazonas (1989), que ao final da década de 1870, “o governo, procurando recebê-los e localizá-los como contribuições preciosas ao progresso da Província, criou colônias em vários pontos do interior, núcleos agrícolas, duas das quais nas cercanias de Manaus”. A mais célebre foi a Colônia Maracaju, que recebeu centenas de retirantes.

A partir da década de 1920, com a crise econômica, e após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a presença na capital se intensificou, pois deixaram os seringais falidos em busca de melhores condições de vida. Eles vão se instalar e fundar bairros como Colônia Oliveira Machado, Praça 14 de Janeiro, São Francisco, São Lázaro, Santa Luzia, Crespo e São Jorge. Não é difícil encontrar famílias manauaras com antepassados cearenses, pernambucanos, alagoanos, baianos e norte riograndenses.

Mas, claro, como ocorre nesses movimentos migratórios, o preconceito se fez presente nos primeiros tempos. Alguns jornais se referiam a eles pejorativamente como arigós, pessoas ríspidas e perigosas. O jornal Diário da Tarde, em 1944, descreveu Antônio Dionísio como “paraibano, solteiro, vagabundo, sem profissão, sem residência, freguês da dormida no pátio interno da Delegacia Auxiliar”. Nesse mesmo ano comemorou a “boa safra” de prisões, destacando as de Francisco Ignácio da Silva, rio grandense do norte, e Manuel Caetano Pereira, paraibano, por terem promovido distúrbios na Estrada de Constantinópolis, também conhecida como Estrada dos Arigós.

Uma parte dos nordestinos vindos para Manaus tinha ensino superior, formados em instituições prestigiadas como a Faculdade de Medicina da Bahia e a Faculdade de Direito do Recife, realizando suas especializações em universidades europeias. Estes passaram a trabalhar como profissionais liberais e também assumiram importantes cargos no funcionalismo público e na política. Eles chegaram a fundar agremiações como o ‘Club União Cearense’ (1890), que tinha como objetivo “agremiar os cearenses rezidentes no Estado do Amazonas no pensamento de bem servir a pátria”.

O Amazonas deve seu desenvolvimento aos nordestinos, nomes ilustres que homenageiam ruas e praças de Manaus: Theodureto Carlos de Faria Souto (1841-1893) - Natural de Ipu, no Ceará, foi Presidente da Província do Amazonas em 1884, sendo responsável pela assinatura da libertação dos escravos no Amazonas em 10 de julho de 1884. Eduardo Gonçalves Ribeiro (1862-1900) - Natural de São Luís, no Maranhão, foi militar e Governador do Estado do Amazonas entre 1890 e 1891 e 1892 e 1896, sendo responsável pela transformação urbana da capital.

Aprígio Martins de Menezes (1844-1891) - Natural de Salvador, na Bahia, foi médico, poeta e historiador, sendo o primeiro autor a sistematizar a História do Amazonas. Astrolábio Passos (1862-1926) - Natural de Jeromenha, no Piauí, foi médico, um dos fundadores e primeiro reitor da Escola Universitária Livre de Manáos, hoje Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Adriano Augusto de Araújo Jorge (1879-1948) - Natural de Alagoas, foi médico, jornalista, escritor, membro fundador e primeiro Presidente da Academia Amazonense de Letras (AAL).

As influências são várias. Na gastronomia, incorporamos ao consumo de peixe com farinha, alimentos tipicamente indígenas, o baião de dois, prato típico do Ceará. Complementamos com banana frita e vinagrete. Impossível encontrar alguma peixaria em Manaus que não sirva seus pratos acompanhados de baião. Os prestamistas que percorrem nossas ruas e avenidas são ou têm descendência nordestina. A festa em torno do boi, animal que dá sustento e alimento, introduzidas pelos colonizadores, foi introduzida na região através de migrantes oriundos do Maranhão e do Ceará, aqui ganhando novas roupagens. Sem os nordestinos Manaus não seria Manaus.

Texto publicado na edição de 23 e 24 de outubro de 2023 do Jornal do Commercio de Manaus.