segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Lugares Pitorescos de Manaus II


O espaço urbano, ao longo do tempo, não sofre mudanças apenas em sua fisionomia, no espaço construído, mas na relação que a sociedade mantêm com o meio. Nomenclaturas de origem popular, secularmente utilizadas como referência para praças, ruas, becos e formações geográficas, herança medieval longínqua, sucumbem às mudanças das ‘oficializações’, às integrações a outros bairros e ao esquecimento, subsistindo em alguns momentos na pena do jornalista ou do cronista de época. Nessa segunda parte do texto serão abordados os seguintes lugares: Costa D’ África, Beco do Rego da Maria Pia, Cidade das Palhas, Buraco do Pinto, Canto do Quintela, Bairro Preguiça, Bairro dos Bilhares e Curva da Morte.

Negros libertos fotografados em Manaus durante a Expedição Thayer (1865-1866), liderada por Louis e Elizabeth Agassiz.

Costa D’ África: A Costa D' África foi uma região existente em Manaus na época da província, com referências desde a década de 1860. Essa área, considerada um bairro na época, era habitada por africanos livres. Em 1866, Gustavo Ramos Ferreira, vice-presidente da Província do Amazonas, registrava que existiam no Amazonas cerca de "57 africanos livres, já de posse de suas respectivas cartas de emancipação" (SAMPAIO, 2005, p. 2). Os moradores desse bairro, já livres, conseguiram integrar-se, em parte, na sociedade da época, ocupando cargos públicos, militares e servindo de mão de obra em construções na capital. A Costa D' África estava localizada em terras ao Norte do antigo Cemitério de São José (área do Atlético Rio Negro Clube, em frente à Praça da Saudade), entre as ruas Leonardo Malcher e Luiz Antony. Os registros mais significativos desses africanos de Manaus foram feitos em uma casa da Estrada de Epaminondas durante a expedição de Louis e Elizabeth Agassiz e reproduzidas na obra Viagem ao Brasil (1865-66).

Passagem que leva ao Beco da Escola, atrás da E. E. Cônego Azevedo. Foto de 2014.

Beco do Rego da Maria Pia: De origem popular, o antigo Beco do Rego da Maria Pia está localizado no bairro de Aparecida, começando na rua Xavier de Mendonça e passando por trás da Escola Estadual Cônego Azevedo. Nesse beco, há décadas, morou uma avantajada senhora portuguesa de nome Maria Pia, que todos os dias, pela manhã, tinha o hábito de jogar os detritos de seu penico pela janela de casa. Adiciona-se o fato de que os detritos caiam em sua pequena horta, sendo que o que nela era plantado (frutas, legumes e verduras) era posteriormente vendido na feira do bairro. Esse beco também era chamado de Tapa-Guela e beco do Pai da Vida. O beco já não recebe mais essas nomenclaturas populares, sendo conhecido apenas como Beco da Escola.

Cidade das Palhas, atual bairro da Alvorada. Foto de 1974.

Cidade das Palhas: No início dos anos 1960, o Dr. Cezar Najar Fernandes, engenheiro agrônomo peruano, indignado com a situação dos moradores da Cidade Flutuante, grande favela fluvial existente desde a década de 1920, decidiu, junto de alguns amigos, criar um bairro em terras próximas do Estádio Vivaldo Lima, o qual ajudou a construir. Foram abertos caminhos, foi feita a topografia, o arruamento e a divisão dos lotes. Essas famílias que saíram da Cidade Flutuante começaram a construir casas de madeira e palha nesse local, que ficou conhecido como Cidade das Palhas.

Rua Ramos Ferreira, uma das vias que no passado formava o Buraco do Pinto. Foto de 2015.

Buraco do Pinto: O Buraco do Pinto foi uma depressão existente entre a rua Ramos Ferreira e as avenidas Joaquim Nabuco e Major Gabriel. Por essa depressão passavam os igarapés do Aterro e de Manaus. Por décadas essa região foi palco de acidentes de trânsito e de reclamação dos moradores do Centro, pois além de ser perigosa para o tráfego, servia de lixeira a céu aberto. Sobre a nomenclatura, diz o folclorista e historiador Mário Ypiranga Monteiro, existem duas versões sobre sua origem. A primeira, fantasiosa, seria a de que, em um dia de chuva, uma pessoa teria encontrado nessa depressão um pinto. A segunda seria a de que o nome teria origem em um taverneiro chamado Pinto, morador da Joaquim Nabuco. A nomenclatura, no entanto, ainda de acordo com Mário Ypiranga, teria por nome oficial Capitão Manuel Tomás Pinto Ribeiro, segundo Escriturário do Tesouro Estadual falecido em 02/06/1917. Coube à população dar o nome de ‘Buraco do Pinto’. A área sofreu um primeiro aterro em 1944, na administração municipal de Francisco do Couto Vale. Em 1957, na administração do governador Plínio Ramos Coelho, o Buraco do Pinto foi definitivamente aterrado e asfaltado.

Cruzamento das Avenidas Sete de Setembro e Joaquim Nabuco. Foto de 2017.

Canto do Quintela: O Canto do Quintela compreende o cruzamento das avenidas Sete de Setembro e Joaquim Nabuco, onde funcionou o primeiro supermercado CO (Casas do Óleo), da família Assayag. Bem antes de funcionar esse empreendimento, existiu nesse local a Mercearia Quintela, de proprietário português, que deu origem à nomenclatura popular. A referência mais antiga sobre essa mercearia data de 1906, através de um anúncio publicado no 'Almanaque Brinde Palais Royal (1906, p. 130), no qual lê-se o seguinte:

"Mercearia Quintella, de Quintella & Irmão - N' esta bem acreditada casa encontra-se sempre um repleto sortimento de todos os generos alimenticios quer nacionaes ou estrangeiros. Tem sempre em deposito grande sortimento de louças de barro como taes: FILTROS, TALHAS, POTES, BILHAS, vasos para plantas, etc. Variado e grande sortimento de louças finas de porcellana, pó de pedra, granito, como sejam: PRATOS, CHICARAS, TIGELLAS, etc. Especialidade em COPOS DE CHRYSTAL, VIDRO e CANDIEIROS DIVERSOS. Preços sem competência. Rua Municipal, 94 – Manáos".

Em notícia publicada no Jornal do Comércio, em 04/09/1917, dizia-se que “A rua Municipal, canto da mercearia Quintela, descia o bond numero oito, linha deavenida-circular1. Em outra notícia, de 25/01/1930, escrevia-se que “Por futil motivo Antonio Souza aggrediu hontem, ás dezenove horas, no canto do Quintela, a Manoel Sebastião da Silva”2. No Canto do Quintela viveu a violinista Ária Paraense Ramos, morta aos 19 anos em 17 de fevereiro de 1915 em um acidente no Ideal Clube.

Bairro do Preguiça: O bairro do/da Preguiça estava localizado entre as ruas Pico das Águas, Maceió e João Alfredo. A primeira versão de sua origem popular, diz Mário Ypiranga, é muito simples: em um afluente do Igarapé da Cachoeira Grande, passando pela parte de trás do Parque Amazonense, encontraram uma preguiça. O historiador, no entanto, após pesquisas, encontrou referências de que naquele local residiu um morador de nome José dos Santos Preguiça, operário pintor, tirador de goteiras e consertador de pontes, com referências de seus serviços desde 1899. Em 28 de julho de 1917, os moradores daquele bairro fizeram um abaixo-assinado pedindo que o nome fosse mudado para Nery da Fonseca3.

Atual Paróquia do bairro de São Geraldo. Foto de 2014.

Bairro dos Bilhares: O Bairro dos Bilhares corresponde ao atual bairro de São Geraldo, na zona Centro-Sul. O nome Bilhares fazia referência à Casa Bilhares, bar e casa de jogos propriedade do desembargador Floresta Bastos. O acesso se dava pelos bondes da Companhia de Transportes Villa Brandão (1893), que fazia a rota entre o Mercado Público e a Cachoeira Grande, no início do que viria a ser o bairro de São Jorge. O nome do bairro foi alterado para São Geraldo em 1950, por ação dos Padres Redentoristas. Em uma nota publicada no Jornal do Comércio em 07/10/1950 lê-se o seguinte: “Terá início, hoje, no bairro de São Geraldo, antigo Bilhares, a quermesse promovida pelos Padres Redentoristas, cujo produto reverterá em favor das obras da construção da capela”4. A Capela do Preciosíssimo Sangue foi inaugurada em 1953. Apesar da mudança, o nome Bilhares continuou sendo utilizado por um bom tempo como referência para aquele local, como atestam notícias até a década de 1980.

Avenida Castelo Branco com rua Ipixuna. Ano não identificado.

Curva da Morte: Existem menções à Curva da Morte pelo menos desde a década de 1950, sendo um indício de que os acidentes que popularizaram aquela parte do bairro da Cachoeirinha eram de longa data. O anúncio de uma peça teatral de 1959 informa que o espetáculo estava “situado na Av. Waupés, junto da Curva da Morte, bairro de Cachoeirinha, sob a direção de Walter Freitas”5. A Curva da Morte compreende o cruzamento da Av. Castelo Branco (antiga Waupés) e da rua Ipixuna. Por um bom tempo o bairro permaneceu sem pavimentação e entrecortado por igarapés, o que fazia os motoristas que vinham pela Castelo Branco, para evitar a Silves, ter que dobrar na Ipixuna, rua fechada e de difícil tráfego. Nesse cruzamento ocorreram graves acidentes com vítimas fatais entre as décadas de 1960, 1970 e 1980. Algumas eram vitimadas na frente de suas casas, tentando atravessar para a outra parte da via6. O número de mortos por acidentes de tráfego entre 1965 e a metade do ano de 1966 era de 67 pessoas7.

São vários os lugares pitorescos, de nomenclaturas curiosas, esquecidos ou não, que marcaram a população da cidade, que utilizava outras formas, um aspecto geográfico, um comércio, um morador ilustre, para se localizar no espaço e no tempo. Outros vão surgindo ao longo dos anos, como referência para ruas, becos, avenidas, praças e inúmeras invasões irregulares pela área urbana, que aos poucos tornam-se bairros. Daria para escrever um livro denso explicando as origens de cada um. São elementos de outras épocas, de outras mentalidades, de um cotidiano marcado por um ritmo mais lento de relações entre o homem e o meio.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

SAMPAIO, Patrícia Melo. Escravidão e Liberdade na Amazônia: notas de pesquisa sobre o mundo do trabalho indígena e africano. 3° Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, 2005.

MONTEIRO, Mário Ypiranga. Roteiro Histórico de Manaus. Manaus, Editora da Universidade do Amazonas, 1998.

BESSA, Roberto. Memorial Aparecida: síntese da história de um bairro. Manaus, Edições Muiraquitã, 2010.

ALLAN, Virgínia. São Geraldo – Uma História em duas conjugações: Passado e Presente. Manaus, Edições Muiraquitã, 2008.

FONTES:

Jornal do Comércio, 04/09/1917
Jornal do Comércio, 25/01/1930
Jornal A Capital, 28/07/1917
Jornal do Comércio, 07/10/1950
Almanaque Brinde Palais Royal, 1906

NOTAS:

1 Jornal do Comércio, 04/09/1917
2 Jornal do Comércio, 25/01/1930
3 Jornal A Capital, 28/07/1917
4 Jornal do Comércio, 07/10/1950
5 Jornal do Comércio, 19/12/1959
6 Maria Rejane Rocha, aos 13 anos, morreu ao ser atropelada pelo chofer Walmir Gonçalves Barros na frente de sua casa, na rua Ipixuna, n° 1081, enquanto tentava atravessar a via. Jornal do Comércio, 26/06/1972.
7 Mortos por acidentes de tráfego, 1966. A. Raposo & Cia.


CRÉDITO DAS IMAGENS:

Viagem ao Brasil (1865-1866)
Google Maps, 2014
Coronel Roberto Mendonça
Otoni Moreira Mesquita, 2015, 2017

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Manaus: Pequena Coletânea de Histórias e Estórias



Reúno, nesse texto, quatro histórias ou estórias de Manaus, algumas ocorridas em períodos incertos e outras entre as décadas de 1960 e 1980. São elas: São Lázaro aparece ao assassino de cachorros; A velha que virava porca; O morto-vivo do Morro da Liberdade; e O Diabo na casa de dança do São Francisco. Ambas tem fortes laços com o catolicismo popular, através da aparição de santos, da realização de orações e milagres, e do medo de seres sobrenaturais. Com exceção do caso do morto-vivo do Morro da Liberdade, amplamente divulgado nos jornais da época, e também o melhor trabalhado, todos os outros foram recuperados através da oralidade.


I: São Lázaro aparece ao assassino de cachorros

Poucos sabem que, no local onde hoje está localizado o Grêmio Recreativo da Escola de Samba Mocidade Independente de Aparecida, em bairro homônimo, na Avenida Ramos Ferreira, funcionou até 1950 um forno de incineração de lixo. Ele era uma grande estrutura construída em 1913 na administração do prefeito Jorge de Moraes. Mas não nos interessa aqui a história dessa construção, mas sim uma estória antiga, de origem imprecisa, relacionada ao local, transmitida por Moacir Andrade (1927-2016) à pesquisadora e jornalista Elza Souza (65).

Diariamente os funcionários do forno de incineração recolhiam o lixo para ser eliminado. Em carros coletores ou carroças, o trabalho era realizado nas principais ruas da área central da capital. Crescia a necessidade da limpeza e da higiene pública.

Um desses funcionários, de nome não identificado, levou ao pé da letra a questão da limpeza e da higiene: Além de recolher o lixo, também recolhia cachorros de rua. Chegando no forno do bairro de Aparecida, possivelmente ainda dos Tocos, eliminava, de forma sádica, os animais nas chamas. Repetiu esse processo inúmeras vezes, sem ser, no entanto, repreendido por suas ações.

Em mais um dia de eliminação do lixo e dos animais, contam que São Lázaro, padroeiro dos pobres e protetor dos cachorros, apareceu diante desse funcionário, que desde esse acontecimento se arrependeu e parou de matar os animais. O forno foi desativado em 1950, sendo incerto o destino desse personagem.


II: A velha que virava porca

Uma das estórias mais conhecidas na cidade de Manaus, talvez com origem na região Nordeste, com registro nos estados do Maranhão, Ceará e Piauí, é a da velha que virava porca. O relato a seguir é de uma senhora de 66 anos, que afirma ter sido atacada pela mulher já transformada no animal: 

“Isso aconteceu quando eu tinha 15, 16 anos… morava na Comunidade do Barro Vermelho, hoje bairro de São Lázaro. Todo dia, de manhã e de tarde, na rua 09 de Maio, uma senhora bastante idosa, de baixa estatura, perambulava de um canto para o outro. Quando ela passava, as pessoas diziam: “Lá vai a velha que vira porca”. Quando meu pai via, dizia bem baixinho: olha a velha que vira porca”. Todos tinham medo dela. 

Um dia, já pela parte da noite, a velha passou em direção a uma poça de lama que existia no final da rua. Eu estava na porta de casa com uma amiga, quando começamos a ouvir, vindo de longe, um barulho forte de casco de animal batendo na terra. De repente, vimos uma porca muito grande, de cor preta, vindo em nossa direção. Ela saiu correndo atrás da gente, correndo, correndo... Pulamos o portão da casa e a trancamos. Mas a porca passou direto e sumiu na noite. No outro dia, a senhora passou em direção ao mesmo lugar (a poça de lama) como se nada tivesse acontecido... 

Continuamos vendo a velha, mas, com o passar dos anos, ela passou a aparecer cada vez menos, até que um dia desapareceu..." 

(Relato concedido a Fábio Augusto de C. Pedrosa em 02/05/2017) 

Assim como em outros estados, estando aí incluído o Pará, a “velha” se transformava na madrugada de quinta para sexta-feira. Dentro da tradição católica, as pessoas fazem orações como o Pai Nosso e Ave Maria para pedir proteção pessoal e para terceiros. A mulher que virava porca, no entanto, fazia essas orações ao contrário para pedir a infelicidade, o mal estar e até mesmo a destruição de outra (s) pessoa (s). Como consequência, contam os mais velhos, acabava, por forças ocultas associadas ao Diabo, se transformando no suíno, animal de casco fendido abominável na Bíblia (Deuteronômio 14).


III: O morto-vivo do Morro da Liberdade

Houve um tempo em que as pessoas tinham medo dos mortos, tempo esse em que a religião e o sobrenatural tinham maior relevância no cotidiano. Hoje, a abordagem de um vivo, um tudo bem ou um bom dia, causa certo espanto, dada a constante insegurança que nos ronda. O caso a seguir ocorreu no bairro Morro da Liberdade, na zona Sul de Manaus, em 1980. Acredito que a maioria dos leitores não o conhece, pois foi algo local, mas os elementos que nele estão inseridos, revelando parte da mentalidade de uma sociedade de determinada época, o torna digno de nota. 

Era sexta-feira, 08 de agosto de 1980. No Cemitério de São Francisco, no Morro da Liberdade, às 9:00 da manhã, um mausoléu começou a tremer, causando espanto nos presentes do local. No bairro e adjacências, espalhou-se o boato de que um homem tinha ressuscitado. Nesse mesmo dia, o Jornal do Comércio noticiava que cerca de 5 mil pessoas lotaram o Cemitério para ver esse "morto-vivo", sendo necessário o deslocamento de guarnições do Choque da Polícia Militar para conter a multidão. 

Nesse mausoléu, de n° 4642, localizado na quadra 10, estava enterrado Itamar Aristides da Silva, vítima de um atropelamento em 19 de junho de 1976. Tinha 36 anos quando do ocorrido. Sua esposa, Maria José da Silva, sabendo dessas manifestações na sepultura do marido, solicitou que um padre do bairro São Lázaro, possivelmente o Padre Bernardino Micce, rezasse uma missa no local. A presença do padre apenas fez aumentar o furor dos que observavam atentos qualquer movimento da sepultura. 

Alguns achavam que esse era um aviso divino. Outros, um tatu dos grandes a fazer seus buracos. O mais estranho foi o momento em que o padre terminou a missa, saindo de cabeça baixa e sem falar qualquer palavra. Até a noite, segundo consta no Jornal do Comércio, pelo menos mais 20 pessoas viram a sepultura se mexer. 

Milton Tavares da Silva, morador da rua Amazonas, no bairro onde ocorreu esse evento "sobrenatural", foi coveiro no São Francisco por 10 anos. Em entrevista ao Jornal, afirmou que aquela foi a primeira vez em décadas que se sentiu assombrado, pois foi uma das pessoas que viu a sepultura tremer. 

No dia 10 de agosto de 1980, o Jornal do Comércio noticiava que "continuava a romaria ao Cemitério de São Francisco", onde várias pessoas começavam a pedir graças ao túmulo, afirmando ser aquele evento um milagre. 

Ao que tudo indica, para o administrador do campo santo, José Maria da Silva, a COSAMA estava realizando obras perto do Cemitério, o que pode ter ocasionado o tremor nessa sepultura, não tendo o evento qualquer relação com o plano sobrenatural. Causos de outras épocas, quando o sobrenatural espantava mais que o terreno... 

FONTES: 

Jornal do Comércio, 09/08/1980
Jornal do Comércio, 10/08/1980
História da Paróquia São Lázaro (1956-1991) - Documento recuperado.


IV: O Diabo na casa de dança do São Francisco

A estória abaixo foi recuperada por meu amigo Maurício Castelo Branco, dono do blog São Francisco Bairro, no qual interage e divulga informações variadas com a população desse bairro da capital.

Em meados de 1985 existia uma casa de festas chamada Telhadão, que era localizada na Praça de São Francisco, por trás de onde hoje funciona uma loja de materiais de construção. Segundo relatos, na época, pessoas do Cafundó, Morro, Mossoró, Vila Mamão, gente de todos os cantos do bairro se reunia nos fins de semana no local para a diversão ao som de músicas eletrônicas, flashback, house e outros gêneros. 

Em decorrência disso o ápice do sucesso do lançamento de Thriller, de Michael Jackson, não parava de tocar em qualquer casa de festas em Manaus. Bem como dizia, no Telhadão não era diferente, mas, em uma noite de fim de semana, uma aparição de uma criatura/demônio/capeta/etc/ se deu justamente no decorrer da dita música. 

O monstro tinha o rosto semelhante ao de um dragão, com olhos vermelhos, nariz com focinho de cachorro, alguns furos perto da boca e com um par de chifres na altura da testa. A estatura juntamente com o corpo era de um homem, mas as mãos e pés eram iguais as patas de um boi. No momento da aparição, a correria foi intensa dentro do local, as pessoas desesperadas se entupiram na saída que era apenas uma porta pequena. Alguns gritavam por socorro. Enquanto isso a criatura permanecia parada, mas durante um tempo teve muita fumaça ao seu redor, ficou quase impossível de enxergá-la. No fim da confusão ninguém conseguiu explicar o que houve, alguns dizem que o boato foi para prejudicar o evento, outros dizem que o que aconteceu foi real.


CRÉDITO DAS IMAGENS:

Encyclopédie du Paranormal
Jornal do Comércio, 09/08/1980
www.wjhirten.com

domingo, 1 de outubro de 2017

A Cozinha Amazonense

Quem já teve a oportunidade de experimentar os pratos da cozinha amazonense, seja em Manaus ou em outro município do estado, sabe como seus sabores ficam marcados na memória gustativa. O ácido, o doce de frutas únicas, o gosto incomparável de carnes de caça, de peixes e quelônios diversos, motivos de grande celebração, os caldos, ervas e outros temperos, acompanhados de farinhas torradas e saborosas, são apenas alguns dos exemplos que formam essa que é sem dúvida uma das cozinhas mais variadas e exóticas do Brasil, quiçá do mundo. Reproduzo, abaixo, os escritos de Luiz de Miranda Corrêa sobre a culinária amazonense publicados no livro Roteiro Histórico e Sentimental da Cidade do Rio Negro (1969), interessante guia histórico e turístico da época da Zona Franca.

Banca de tambaqui no Mercado Adolpho Lisboa, em Manaus. Foto de 1968.

A cozinha amazonense é das mais ricas, e sem dúvida, a mais exótica do país. Basicamente indígena, recebeu grande contribuição portuguesa, e já nos dias da borracha, foi enriquecida por certos elementos africanos trazidos pelos imigrantes oriundos do Pará, Maranhão e Ceará.

Inicialmente é necessário que falemos nos peixes do Amazonas. A variedade é tão grande - peixes de pele, de escamas ou de casca - que o amazonense selecionou um pequeno número para seu uso. Deles o mais famoso é o pirarucu, espécie de bacalhau da água doce, que se come fresco ou seco, de mil e uma maneiras. Filé de pirarucu fresco é um pitéu excelente, mas o pirarucu seco preparado na brasa, chamado "do céu" ou "de casaca", não lhe fica nada atrás. O mais nobre entre todos os peixes é, talvez, o tucunaré, que se pode encontrar em dimensões gigantescas, quase do mesmo tamanho dos pirarucus. A melhor maneira de se preparar um tucunaré é separá-lo em postas e cozinhá-lo, ou então de forno, recheado de ervas exóticas e farinha suruí. Entre os peixes de grande porte, destaca-se também, o tambaqui. Espécime deliciosamente gordo, com poucas espinhas faz os encantos dos gourmets amazonenses, especialmente em caldeiradas ou moqueado, que é uma maneira de churrascar o peixe. A pescada é um peixe fino e fica muito bem em caldeiradas, preparadas com requinte, parecendo sopa à Leão Veloso. Já o jaraqui é peixe popular, de grande aceitação pelo paladar esquisito, apesar do grande número de espinhas. O curimatã, outro peixe popular, é mais saboroso e o mais indicado para a moqueação. Para quem gosta de peixe frito, os dois melhores são o pacu e a sardinha, esta última trazida pelos conquistadores portugueses. E o nativo de paladar mais exigente delicia-se com o bodó, peixe cascudo de cara feia mas de gosto estranho e apetitoso. A variedade de peixes é imensa. Quantas espécies registradas? 2.000? 3.000? Mais ou menos isso.

Farofa de tracajá, servida no casco do animal.

O prato mais amazonense entre todos é a tartaruga. Hoje em dia, com a pesca sob controle do Governo Federal, atinge preços astronômicos e, em Manaus, é sinônimo de festa nacional. O cuidado do Governo, entretanto, é fácil de justificar e mesmo de louvar. Comiam-se os ovos (um paladar requintado jamais esquecerá o sabor do ovo de tartaruga, comido cru, com farinha d' água), usavam-se as tartarugas pequenas para decoração em aquários ou souvenirs para turistas, e comiam-se as grandes, em tal quantidade, que a espécie estava ameaçada de extinção.

Como pescar uma tartaruga? Como prepará-la?

A pesca da tartaruga é conhecida como viração. Aguarda-se a vazante dos rios, quando se formam belíssimas praias onde os quelônios vem desovar. Então os índios e os caboclos ficam na espreita, e após a desova correm atrás das tartarugas virando-as de casco para baixo. Pescou-se, então, a tartaruga e, dependendo do tamanho do animal, um ou mais homens carregam-na, para a canoa. O destino final é o curral onde são guardadas, em grande quantidade, para a venda paulatina.

O preço de mercado é caro. Mas uma tartaruga de bom tamanho pode alimentar mais de 40 pessoas. Dela se fazem vários pratos diferentes. O sarapatel, o pachicá, o filé (às vezes ao tucupi), o picadinho e o guizado. O picadinho, por exemplo, é servido no peito e é o prato de mais fácil aceitação pelos não iniciados. O picadinho e o filé. E mixira de tartaruga é alimento de guardar por muito tempo.

Ir ao mercado, em Manaus, é mais do que uma obrigação doméstica, é, pode-se dizer, uma festa. [...] Na parte reservada a mercadorias diversas, bem na ala central do prédio, nas várias divisões, pode-se encontrar legumes e verduras, desde os tomates e as couves até o exótico jambu, tão necessário ao tacacá e ao pato no tucupi. Frutas, variando das laranjas, melancias e melões, às bananas gigantescas e aos tucumãs, umaris, sorvas, pupunhas, taperabás, graviolas, abacaxis e ananases, doces de fazer inveja aos seus parentes do Havaí. Existem também as barracas das farinhas, variando das secas, como a suruí, à farinha d' água, à farinha do uarini, cor de gema de ovo, tão certinha que parece feita à máquina. Encontra-se, também a farinha de tapioca, excelente para bolos, mingaus e pudins, empregada nas casas tradicionais da cidade para fazer "bolos podres" e "tapioquinhas de coco".

Uma feirante de Manaus exibindo a variedade de frutas da região

Outros pratos amazonenses tem características mais amazônicas e são saboreados de Belém do Pará ao Acre. Entre eles o pato ao tucupi e o tacacá. O tucupi é um caldo extraído da mandioca e seu paladar lembra ligeiramente o curry indiano. Usa-se como caldo no pato assado, misturado ao jambu, legume exótico que faz a língua tremer, levemente afrodisíaco. Pode-se usar também o tucupi como molho para caças e pescados e, como já dissemos acima, para a tartaruga.

O tacacá também é feito na base do tucupi. Servido em cuias pretas e muito quente, lembra uma sopa em que o tucupi é misturado à goma, preparada com polvilho. A essa mistura junta-se o jambu e o camarão seco do Maranhão. Está pronta a beberagem que se degusta ao cair da tarde nas esquinas de Manaus.

Peixe, tartaruga e comidas preparadas na base do tucupi são os ingredientes básicos da comida amazonense, uma das mais deliciosas e exóticas do país.

CORRÊA, Luiz de Miranda. Roteiro Histórico e Sentimental da Cidade do Rio Negro. Manaus, Artenova, 1969, p. 85/95, 97.


CRÉDITO DAS IMAGENS:

Tibor Jablonsky e Orlando Valverde, 1968. Biblioteca do IBGE
Heard Country Parks & Recreation
Acervo A Crítica


Casas Peculiares de Manaus

Casa Bolo Confeitado, na Avenida Joaquim Nabuco, no Centro. Foto de 2017.

Casa, nossa fortaleza, nosso refúgio. Na maioria das vezes, expressão máxima de uma conquista individual ou de uma família, pois boa parte de nossas vidas é dedicada à sua construção ou aquisição. Um olhar mais atento por nossa cidade nos permite descobrir algumas residências peculiares, seja por suas arquiteturas, seja pelas histórias que carregam por trás do concreto, do ferro e de outros materiais. Nesse texto, escolhi três casas que se destacam por suas arquiteturas, cafonas para alguns, exóticas para outros: Casa Bolo Confeitado, na Avenida Joaquim Nabuco, no Centro; Casa da Borboleta, no Beco São Lázaro, no bairro de São Geraldo; e a Casa Carro, na Avenida Kako Caminha, também no bairro de São Geraldo.

Casa ‘Bolo de Noiva’, ‘Bolo Confeitado’,’Carmen Miranda’. Esses são alguns dos nomes dados a essa residência, talvez uma das mais chamativas da cidade, localizada na Avenida Joaquim Nabuco, no Centro, próximo do Edifício Novoa. Seu estilo, kitsch, é caracterizado pelo exagero de ornamentos e mistura de estilos arquitetônicos que resultam em uma obra que foge do tradicional. Ela foi construída entre 1930 e 1940, tendo sido um presente do comerciante Ermindo Barbosa, dono da casa de aviamento J. A. Leite & Cia, vítima do acidente com o avião Constellation da Panair do Brasil em 1962, para sua filha Edith Barbosa, que estava completando 15 anos. Na sua época, era uma das poucas construções que fugia dos padrões arquitetônicos até então em voga, oriundos do início do século XX. Do lado esquerdo da casa, existe o que parecia ser a residência original da família, com a data de 1902 gravada no portão. No entanto, fui informado de que esta é a antiga residência do Major Cyrillo Neves.

Escultura do jardim da Casa Bolo Confeitado. Foto de 2013.

Além da construção em si, chama a atenção dos transeuntes da Avenida Joaquim Nabuco a escultura localizada no jardim daquela casa. A peça, em ferro, representa uma senhora, possivelmente uma empregada, vestida com trajes típicos da Europa, lavando uma criança à força. O conjunto foi importado de uma casa de fundição inglesa. A casa continua de pé, imponente, sendo administrada de longe por descendentes da família Barbosa. Nela, por muitas décadas, dona Edith viveu alegremente com sua companheira Judith. A casa, assim como sua dona, desafiou os padrões de uma época, triunfando no final.

Casa Borboleta, no Beco São Lázaro, bairro de São Geraldo. Foto de 2017.

A Casa Borboleta está localizada no Beco São Lázaro, paralelo à Avenida Kako Caminha, no bairro de São Geraldo. Uma grande borboleta, cheia de detalhes e feita a partir da técnica de mosaico com azulejos, se projeta na fachada dominando a paisagem. Até o ano passado, ela era desconhecida por boa parte das pessoas. Na parte de trás, a estrutura é de madeira e parece ser habitada. Sua arquitetura tem ares modernistas, podendo ter sido construída entre as décadas de 1950 e 1960, pois alguns moradores daquela área afirmam que em 1970 ela já existia. A técnica de mosaico com pedaços de azulejo se tornou bastante popular no Brasil nessa época, principalmente na construção civil. As famílias os adquiriam a preços baixos nas fábricas, aplicando-os nas fachadas das casas, nas calçadas ou em outros ornamentos.

Casa Carro, na Avenida Kako Caminha, também no bairro de São Geraldo. À esquerda, uma foto de 2005. À direita, uma foto de 2017.

Vizinha da Casa Borboleta, a Casa Carro, na Avenida Kako Caminha, foi construída em 1953 pela Construtura Lima, responsável por outras obras na cidade, para ser a residência do Sr. Bonifácio Azevedo, que não sabia dirigir e não tinha automóvel. Ela fez parte do imaginário de várias gerações, que se maravilhavam com um carro, na contramão, na fachada de uma residência. Atualmente ela é propriedade de Maria de Azevedo Alves, filha de Bonifácio Azevedo.

Casa Bolo Confeitado, Casa Borboleta, Casa Carro. Essas residências exóticas, cafonas para uns e encantadoras para outros, parecem ser a materialização dos desejos de seus proprietários, sejam eles desejos de infância (Casa Borboleta), desejos não alcançados (Casa Carro) ou o desejo de encaminhar o futuro dos descendentes (Casa Bolo Confeitado). Não sendo um saudosista, pois acredito que o homem é filho de seu tempo, mas é perceptível que a arquitetura atual perdeu a criatividade e a preocupação com a estética. Isso, claro, reflexo de tempos corridos que exigem nossa praticidade.


CRÉDITO DAS IMAGENS:

Germaneo Toloto
Fábio Augusto
Otoni Moreira Mesquita
Rodrigo Zannotto.




quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Filme: Aguirre, a Cólera dos Deuses



País: Antiga Alemanha Ocidental
Direção: Werner Herzog
Roteiro: Werner Herzog
Elenco: Klaus Kinski, Helena Rojo, Ruy Guerra e Del Negro
Ano: 1972
Duração: 90 minutos


Aguirre, a Cólera dos Deuses (Aguirre, der Zorn Gottes), é uma das melhores produções do diretor alemão Werner Herzog, contando com a magistral atuação do também alemão Klaus Kinski no papel de Don Lope de Aguirre (1510-1561), el tirano, el loco, conquistador espanhol do século XVI.

O filme, um drama histórico, retrata, com algumas alterações significativas, os desdobramentos da Expedição de Pedro de Ursúa e Lope de Aguirre (1560-1561), dois conquistadores que, após notícias dos sobreviventes da expedição de Orellana, reavivaram a crença da existência das ricas províncias de Omágua e El Dorado. Os cenários, entre o Peru e o Rio Amazonas, dão o tom de naturalidade ao filme, com vários enquadramentos que captam o enfrentamento entre homens europeus de valores cristãos medievais e a natureza selvagem, desconhecida e indomável, habitada por povos igualmente desconhecidos.

Klaus Kinski conseguiu transpor nessa obra a personalidade de Lope de Aguirre, marcante na historiografia da conquista da América: louco, sádico, disposto a tudo para liderar a expedição e alcançar os mais altos postos na Coroa Espanhola. Na América, além da busca por ouro e outras pedras preciosas, buscou-se o que dificilmente esses homens encontrariam na metrópole: a ascensão social. Uma pequena ou inexistente nobreza, às vezes imaginária, buscava por suas ações na conquista o reconhecimento, um alicerce e inserção no mundo das cortes.

Acreditando que organizaria uma rica colônia, Aguirre ordena aos soldados que o sigam numa rebelião contra a Coroa Espanhola, assassinando quem não concordasse. Auxiliomar Silva Ugarte afirma que, na segunda etapa da expedição, ela [...] "mergulharia em sangue, pois Lope de Aguirre, utilizando-se de todos os meios de que dispunha, eliminando opositores reais ou imaginários, pôs fim às buscas a Omágua e Dorado e deu início a uma das mais sangrentas rebeliões do período" (UGARTE, 2003, p. 26). Aguirre (Klaus Kinski) usa uma das melhores armas no processo de conquista após os instrumentos bélicos: a imposição psicológica, que vai criando temores tanto entre os tripulantes de sua expedição quanto entre os nativos que vão sendo encontrados ao longo dos rios.

Apesar de a expedição retratada incluir personagens históricos que não faziam parte dela, e de apresentar um desfecho idealizado por Aguirre, o filme consegue exemplificar as relações de poder e os modos de agir característicos do processo de Conquista da América Espanhola, lembrando la espada, la cruz e la hambre que iam dizimando a família selvagem, como bem escreveu Pablo Neruda. Devidamente contextualizado, partindo de um elemento micro (a expedição) para um elemento macro (o processo de conquista entre os séculos XVI e XVII), é um filme vale a pena ser assistido e analisado, do ponto de vista dos mecanismos e mentalidades da Conquista Colonial.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

UGARTE, Auxiliomar Silva. Margens Míticas: a Amazônia no Imaginário Europeu do século XVI. In:  DEL PRIORI, Mary; GOMES, Flávio dos Santos (org). In: Os Senhores dos Rios: Amazônia, Margens e Histórias. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003.


CRÉDITO DA IMAGEM:

maumiranda.wixsite.com

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

História da Criminalidade: O Caso Jairzinho

A atual Paróquia do bairro de São Francisco.

Esse é um daqueles casos cujos desdobramentos se arrastam por anos e, de forma abrupta, desaparecem dos noticiários. O Caso Jairzinho, diferente de casos como o do Monstro da Colina, tem uma construção narrativa mais difícil, pois até hoje, de acordo com aqueles que foram contemporâneos ao crime, teve uma conclusão envolta de incertezas.

Bairro de São Francisco, 28 de dezembro de 1991. O natal já tinha passado e esperava-se o ano novo. Mal sabiam os moradores daquele bairro que o início do novo ano seria macabro: No dia 01 de janeiro de 1992 o corpo de Jair de Figueiredo Guimarães, o ‘Jairzinho’, uma criança de oito anos, foi encontrado em uma cova rasa nas proximidades do pátio da Igreja de São Francisco. Esse crime juntava-se a outros infanticídios registrados naquela última década, deixando a população do bairro de São Francisco em alerta. Manoel Brandão Neto (32), antigo morador do bairro, lembra que os “avós, pais e demais responsáveis não deixavam que se brincasse no local onde o corpo foi achado”. Os adultos, ainda de acordo com esse depoente, diziam para as crianças que aquela situação era como na novela Carrossel, uma fantasia, para tentar minimizar o terror que passou a reinar naquele local.

Marizete Brandão, moradora do bairro há mais de 50 anos, lembra bem desse dia:

lembro como se fosse hoje, dia 31 de dezembro. Passei na rua ao lado por volta de 13.00 hrs, era um mal cheiro horrível. Falei para meu marido que parecia carniça. Dia primeiro foi o maior alvoroço, tinham achado o corpo. O pavor era tão grande que minha filha não quis mais ir para a igreja. Mães já não deixavam seus filhos brincarem na rua”.

Após as análises do perito da Universidade de Campinas, o médico Nelson Mansini, o mesmo que realizou a perícia do assassinato de Chico Mendes, foi constatado que Jair de Figueiredo Guimarães foi morto estrangulado pelo método do torniquete, processo bastante utilizado para estancar hemorragias. Antes, um dos suspeitos afirmara que matou a criança com um forte golpe na cabeça. Outras pessoas, como Sullivan Nascimento, afirmavam que o garoto fora estuprado e teve o órgão genital cortado, e que seu assassino jogou soda cáustica ou ácido para disfarçar o odor do cadáver. Foi “um dia sinistro”, conta Anderson P. de Souza. Ainda de acordo com a perícia, no dia em que o corpo foi encontrado já haviam se passado 11 ou 12 dias do assassinato.


OS SUSPEITOS


No Jornal do Comércio de 07 de fevereiro de 1992, a principal manchete informava que 'o suspeito do crime está preso'. Era o lanterneiro Afrânio Cardoso de Moraes, de 19 anos. Ele foi preso em uma blitz de rua após ter comentado com uma pessoa que tinha sido o autor do golpe que matou Jairzinho. Levado à Delegacia, confessou que cometeu o crime a mando de Frei Silvestre, da paróquia daquele bairro.

Afrânio disse que, passando em frente a Igreja de São Francisco, foi chamado pelo Frei que perguntou se este não queria ganhar algum dinheiro. Perguntando qual era o serviço, ouviu do religioso que era para pegar um garoto que estava jogando bola e levá-lo para os fundos da Igreja. Afrânio afirmou que, quando recebeu aquele pedido, estava embriagado, aceitando-o sem qualquer objeção. Chegando ao local, disse que o Frei disse o seguinte para a criança: “Eu não disse que você estava me devendo uma”? Jairzinho disse que não sabia de nada. Foi nesse momento que Frei Silvestre ordenou que Afrânio golpeasse o menor. O lanterneiro disse que não bateu com força, saindo correndo da cena do crime. Soube dias depois que Jairzinho tinha morrido. Ao delegado, dizia-se arrependido e que não tinha intenção de matar.

O possível envolvimento de um membro do clero causou grande reboliço nas lideranças católicas da cidade, com o monsenhor da capital afirmando que “há alguém por trás fazendo com que a Igreja Católica seja desacreditada”. O Arcebispo Metropolitano de Manaus não quis se pronunciar a respeito do caso. Dias após essa matéria, a Arquidiocese de Manaus, O Centro de Defesa dos Direitos Humanos da CNBB Norte I e outras entidades da Igreja Católica se manifestaram sobre os rumos que as investigações estavam tomando. Para esses grupos, elas atingiram “pessoas e instituições, causaram prejuízos morais, retardando a elucidação do crime e confundindo a opinião pública”. Afirmavam também que estavam sendo forjados suspeitos e culpados.

Também foi investigado um senhor dono de um mercado próximo ao local do crime, mas contra ele nada foi comprovado.

Em 29 de dezembro de 1994, após três anos do assassinato de Jairzinho, mais um suspeito era investigado: Jair de Figueiredo Guimarães, técnico em eletrônica, morador da rua Valério Botelho de Andrade, em frente a Igreja. Quem era ele? O pai da criança assassinada. Nesse mesmo dia, os moradores do bairro protestavam em frente a sua casa, fixando faixas e cartazes pedindo justiça. 

Jair Guimarães, negando a todo momento o crime, teve decretada a prisão preventiva, sendo levado para a Cadeia Pública Raimundo Vidal Pessoa. Mas como se chegou a mais esse suspeito? O frei Silvestre foi ouvido pela Polícia, sendo constatado que nada havia contra ele. O que levou Jair Guimarães à prisão foi a existência de uma carta na qual o pai da criança pedia uma grande soma de dinheiro para sequestrar o próprio filho. Desconfiado, o titular da Delegacia Especializada de Homicídios e Sequestros solicitou um exame grafológico, no qual foi confirmado que aquela carta fora escrita pelo pai de Jairzinho. Dessa forma, o representante do Ministério Público do 1° Tribunal do Júri Popular, ao denunciar Jair Guimarães, enquadrou-o nas sanções de homicídio qualificado com o agravante da ocultação de cadáver. Moradores de São Francisco afirmavam que ele era alcoólatra e viciado em drogas. Em 1995 o Promotor João Bosco Valente reviu o caso, pensando seriamente em pedir o arquivamento do processo pela confusão e falta de provas. Uma pessoa, que não quis se identificar, afirma que, anos depois, ouviu por uma rádio que uma pessoa tinha se entregado, afirmando ter matado a criança porque seu pai lhe devia dinheiro. 

Falta de paciência de um Frei, por causa das brincadeiras de uma criança? As ações de um comerciante, com motivações ainda não esclarecidas? Um pai em um momento de descontrole? Acerto de contas? Quem, de fato, matou Jairzinho naquele final de ano de 1991? Essa é uma de várias perguntas cujas respostas nem o tempo foi capaz de dar…

FONTES: 

Jornal do Comércio, 07 de fevereiro de 1992.
Jornal do Comércio, 29 de dezembro de 1994.
Jornal do Comércio, 29 de abril de 1995.

DEPOIMENTOS:

Manoel Brandão, 18/06/17.
Marizete Brandão, 18/06/17.
Anderson P. de Souza, 18/06/17.
Sullivan Nascimento, 18/06/17.


CRÉDITO DA IMAGEM:

Rederiomar.com.br

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Manaus das Catraias

O texto a seguir foi publicado entre 23 e 24 de outubro de 2005 no Jornal do Comércio pelo escritor, artista plástico e imortal da Academia Amazonense de Letras Moacir Andrade (1927-2016), por ocasião do aniversário da cidade. Em Manaus das Catraias, Moacir Andrade, através de pesquisas e de memórias que vão da década de 1940 até 1980, tece um breve histórico desse antigo meio de transporte que por séculos fez parte do cotidiano da cidade.

Moacir Andrade


Passageiros em uma catraia. Foto de 1964.

Dois grandes igarapés cortam a cidade no sentido norte sul; o igarapé de São Raimundo, que separa aquele populoso bairro por uma largura de aproximadamente duzentos metros, próximo a sua foz, segundo, o igarapé de Educandos que tem três tributários, o da primeira ponte, também conhecido como igarapé de Manaus, cuja nascente despontava nas proximidades da rua Tarumã e desembocava ao lado do Palácio Rio Negro, no chamado de igarapé da segunda ponte, teve o seu curso interrompido várias vezes, ao longo de seu comprimento por aterros executados pela Prefeitura de Manaus, para dar lugar ao procedimento das ruas Apurinã, Tarumã, Leonardo Malcher, cujo trecho se chamava "Buraco do Pinto", Ramos Ferreira, avenida Ipixuna e finalmente a avenida 7 de Setembro, por onde desliza sob uma ponte de pedra em estilo romano. A segunda a partir da sua foz, no entroncamento com os igarapés da segunda ponte, também denominado de igarapé da rua Jonathas Pedrosa, e o igarapé da Cachoeirinha, o trecho até a sua confluência com o Rio Negro, que era livre de pontes ou aterros, daí, a necessidade dos catraieiros. A palavra catraia é de origem portuguesa e veio para Manaus, com os primeiros navios a vela que aportaram aqui, com a abertura dos nossos portos para o mundo. Originalmente a catraia era um pequeno barco a vela que servia os transportes fluviais em Portugal e colônias. Possuía um mastro central com velas de painel em um mastro e outro mastro na popa para vela catita, onde se içava também a bujarrona.

O uso efetivo da catraia tornou-se necessidade imperiosa a partir da grande e permanente afluência de navios estrangeiros que mensalmente aportavam as águas das nossas praias fronteiras no fim do século passado, para transportar borracha, castanha e madeira, couro e óleos vegetais produzidos no chamado ciclo áureo da borracha.

Aí por volta de 1885 não havia ancoradouro, nem muros de arrimo, de cais flutuantes, e os navios que chegavam a Manaus para receber a borracha baixavam a âncora muito distante das praias livres que contornavam a margem esquerda do Rio Negro em toda sua extensão desde o igarapé dos Educandos até São Raimundo.

No princípio do século , todos ou quase todos os catraieiros eram portugueses da província da Póvoa de Varzim, de onde trouxeram esse tipo característico de veículos e se aglomeravam na antiga praia da Imperatriz, em frente a Igreja da Matriz, onde hoje está construído o cais flutuante da Portobras, antiga Manáos Harbour. Naquela época as catraias eram de extrema necessidade, pois os passageiros e cargas só poderiam desembarcar através desses veículos fluviais que eram pequenos barcos com aproximadamente 8 metros de comprimento, dotados de um banco inteiriço de mais ou menos 35 centímetros de largura em volta do barco, onde os passageiros se acomodavam sentados. A popa era adornada com uma placa de madeira, de forma semi-circular, onde estavam escritos os nomes das pequenas embarcações, geralmente de origem portuguesa, talvez como recordação da terra distante. Todos os barcos portavam uma bandeirinha com nome do proprietário ou da entidade que servia, eram pintados de cores múltiplas lembrando barcos que singram o rio Tejo, ou barcos pesqueiros das praias de Póvoa de Varzim e Nazaré em Portugal. As catraias originais ficavam esperando os seus eventuais fregueses ao longo da praia fronteiriça à Igreja da Matriz até o aterrado igarapé do Espírito Santo, exatamente no trecho onde ancoravam os navios que aqui aportavam. Com a construção do muro de arrimo e também do lado da ponte do igarapé em que o povo chegava rente as catraias, e do cais flutuante, pela antiga Manáos Harbour, as catraias se aglomeravam ao longo do trecho do cais que liga a parte que recebe os grandes navios e o continente. Aí se podiam ver as pequeninas e policrômicas embarcações balouçarem ao sabor das ondas do Rio Negro, num bonito espetáculo de balé aquático.

Seus tripulantes e proprietários, todos portugueses, usavam camisa de mangas compridas e geralmente quadriculadas, à moda dos pescadores de Póvoa de Varzim, com a cabeça sempre coberta com um boné de lã portuguesa. A construção do moderno cais pelos ingleses determinou a extinção dos catraieiros, porque já não necessitavam mais desse pequeno barco que tanto e inestimáveis serviços prestaram ao Amazonas e ao Brasil, no tempo em que no Amazonas se "amarrava cachorro com linguiça" e se "acendia charuto com nota de 100.000 réis". Eu mesmo cheguei a conhecer muitos portugueses que trabalharam nesse meio de transporte no ano de 1946, entre eles: Maravalhas Campos, Aurélio e Milhases, alguns já na quarta geração trabalhando no mesmo serviço, o Maravalhas e o Campos, só que agora a prestação de serviços é feita somente para firmas como Abraham Pazuello, Isaac Benzecry Serfaty, Sefair J. A. Leite, JG Araújo, J. S. Amorim, Abrahim & Irmãos e Booth Line, entre outras. Os remanescentes dos antigos barcos são: "Luz do dia", "Sempre Federal", "União", "Maravalhas", "Campos", "Aurélio", "Portugal", "Brasil", entre outros que continuam levando e trazendo trabalhadores para o serviço de estivas em navios ancorados e onde é feito o serviço de escolha e seleção de castanha para embarque.

Outro tipo de serviço de catraia que agora está se extinguindo, é o feito diariamente nos igarapés de São Raimundo e Educandos, trazendo principalmente trabalhadores para o Centro da cidade, e do Centro da cidade para os referidos bairros. Muita gente pensava que com a construção da ponte de São Raimundo que liga a cidade ao bairro de Santo Antônio através da avenida Leopoldo Neves, o serviço de catraia iria desaparecer, o que não aconteceu, embora tenha diminuído muito com a quantidade de pessoas que se deslocam utilizando esse tipo de transporte. No bairro de São Raimundo o serviço de catraia é ininterrupto, se desloca da rua 5 de Setembro sobre o igarapé de mesmo nome até a rua Doutro Aprígio do lado norte da serraria Hore. Os catraieiros se revezam trabalhando 24 horas por dia numa escala determinada por portaria da Capitania dos Portos do Amazonas, Acre e territórios federais de Rondônia e Roraima.

No bairro de Educandos, embora a Prefeitura Municipal de Manaus tenha construído recentemente uma ponte de concreto armado sobre o referido igarapé, ligando a rua Quintino Bocaiuva, no Centro de Manaus, ao bairro de Educandos, o serviço de catraia continua da Manoel Urbano até a rua dos Andradas ao lado da cidade, também nas mesmas condições, isto é, revezando-se ininterruptamente de acordo coma determinação da Capitania dos Portos.

O pagamento de cada passagem custa um terço do preço da passagem de ônibus, a razão por que da escolha do grande público que prefere se transportar em catraia ao utilizar o serviço de ônibus, três vezes mais caro, principalmente para os que moram nas proximidades dos igarapés de Educandos e São Raimundo.


FONTE:

ANDRADE, Moacir. Manaus das Catraias. Manaus, Jornal do Comércio, 23 e 24 de outubro de 2005.

CRÉDITO DA IMAGEM:

Instituto Durango Duarte