Tiago
José Cavalcanti Atroch nasceu em Recife, Pernambuco, em 1982, tendo
vindo para Manaus em 1999, onde graduou-se em Licenciatura Plena em
História pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM, 2009) e
titulou-se Mestre em História Cultural pela mesma instituição
(2012). Teve passagens por várias escolas públicas, estaduais e
municipais, atualmente ocupando os cargos de professor substituto na
graduação em História na Universidade Federal do Amazonas e de
professor de História na Escola Municipal Aristóteles Comte de
Alencar.
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Professor, conte-nos um pouco da sua infância em sua terra natal, da
sua família e do processo de mudança para Manaus.
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Eu já nasci dentro de uma universidade. Meu avô trabalhava na
Universidade Federal Rural de Pernambuco. Então há mais ou menos 60
anos minha família se mudou para o campus de Zootecnia para ficar
próxima dele, que cuidava de galinhas, coelhos, porcos e outros
animais de criação e também fazia bico de pedreiro. Ele colecionou
livros sobre ciência, dos quais consegui salvar três das sombras do
esquecimento e os conservo comigo. Atribuo quem eu sou academicamente
à posse desses livros.
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E sua infância e adolescência?
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Foram boas, mas passei boa parte delas viajando por muitas cidades.
Já vim para Manaus quase adulto, aos 17 anos. Vim de Minas Gerais
para cá.
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Algum motivo especial para a realização de tantas viagens?
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Talvez o fato de meu pai ser engenheiro agrônomo e ter se
especializado no cultivo do arroz, o que fez eu e minha mãe
acompanhá-lo para morar no então Projeto Jari (Jari Florestal e
Agropecuária). Depois fomos para Minas Gerais por conta do Mestrado
de meus pais. Antes disso, o Projeto Jari faliu e meu pai passou no
concurso da Embrapa, em Macapá. Viemos para Manaus porque nesse meio
tempo meu pai mudou do cultivo de arroz para o de guaraná.
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Ao chegar em Manaus, o senhor teve algum impacto geográfico ou
cultural?
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Acho que sair de uma média de 8 graus para 38. De resto, a Amazônia
já era uma velha conhecida.
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Parece uma pergunta clichê, mas desde quando o senhor nutre
interesse pela História? E como ele surgiu?
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Comecei com História Natural. Só depois me interessei pela história
dos homens. Bem depois, no fim da adolescência.
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O vestibular, para a maioria dos jovens, é a fase decisiva da vida.
Quando o senhor teve que escolher um curso a seguir, a história já
estava em primeiro plano ou existiam outras áreas de interesse?
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Eu pensei primeiro em Filosofia, mas disseram que eu não ia arranjar
emprego. Depois pensei na Psicologia, mas ficou 'cult', e na época
eu não queria ser 'cult' (risos). Depois eu pensei na História. É
que nesse tempo eu não curtia transformar paixão em trabalho, então
história não poderia ser a minha primeira opção.
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O ambiente familiar, de alguma forma, influenciou na escolha pela
graduação em História?
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Bom, não sei se pela escolha da História, mas me influenciou muito
no amor que sinto pela ciência, apesar de existirem muitas
historiadoras em minha família. Mas minha decisão foi independente
pois eu nem sabia que minhas primas eram historiadoras (risos).
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Como foram suas passagens como professor de História no ensino
público?
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Primeiro foi difícil. Depois eu consegui construir minhas
estratégias para dar aula aos desinteressados, e hoje sinto que o
que faço faz diferença positiva na sociedade.
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Quais as principais semelhanças e diferenças, em sua opinião,
entre os ambientes acadêmico e escolar básico?
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No ambiente acadêmico a pessoa está lá porque quer. No escolar,
geralmente, porque os pais obrigaram. Isso faz toda a diferença.
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Infelizmente as escolas públicas, estaduais e municipais, ainda são
vistas por boa parte das pessoas como depósitos de pequenos humanos.
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Isso, quase mini presídios. Nisso Foucault tem toda a razão: Os
ensinamos a ficar atrás das grades desde pequenos.
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Na Universidade o senhor já foi professor substituto de várias
disciplinas, mas é mais conhecido pelas de História Medieval I e
II, das quais tive a oportunidade de ser monitor. Quando e como o
senhor decidiu se dedicar a essa área?
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Foi com o Mestrado, quando comecei a estudar o Giordano Bruno e não
conseguia entender o que ele estava dizendo ou criticando sem uma
base muito boa de História Medieval. Eu sempre gostei de História
Medieval, mas até então ainda não conhecia o Professor Sínval. Só
no Mestrado o conheci, aí ele me ajudou a construir uma base,
Antiguidade-Medieval-Moderna.
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Aproveitando que o senhor citou o professor Sínval, boa parte do corpo docente atual da
graduação é o mesmo que formou a sua geração. Qual ou quais
professores influenciaram ou continuam influenciando sua trajetória
intelectual/profissional?
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(Risos) Acho que todos contribuíram, por exemplo o professor
Auxiliomar sempre deve ser citado, mas os fundamentais para mim foram
o Sínval, o Morga, o Almir e a Maria Eugênia. A professora Márcia
também ajudou muito, mas estes três aí me ajudaram a procurar um
campo de estudo. Também devo citar o professor Aloysio Nogueira,
pois sem ele eu nem entenderia o que é dialética.
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Pelos nomes que o senhor citou, com exceção de alguns, dá para
perceber o peso da História Cultural em sua formação, na qual o
senhor foi titulado Mestre em 2012.
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É, eu acho que desde o início do curso eu me atraí pela História
Cultural, pela Antropologia.
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Acredito que nós, voltados para a História Cultural, temos uma
relação mais profunda com a Antropologia do que outras áreas da
História. Quais autores foram influentes em seus estudos?
- Sim.
Muitos, mas destaco o Gilbert Durand, autor de 'As estruturas
antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia
geral', e também Mircea Eliade, com 'O Sagrado e o Profano', que já
vai na vertente da Filosofia das Religiões.
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Sua dissertação de Mestrado versa sobre uma obra de Giordano Bruno
(1548-1600). Como ocorreu o contato com os escritos do frade
dominicano italiano?
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Devo confessar que foi obra do acaso. Eu comprei o livro e achei
interessante a ponto de tentar desvendá-lo. O professor Sínval me
incentivou, pois no Brasil o 'Tratado da Magia' era quase
desconhecido.
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Então pode-se dizer que seu trabalho é uma das contribuições
recentes para a compreensão do pensamento desse autor italiano no
Brasil?
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Sim, ao menos no que diz respeito ao 'Tratado da Magia' em nosso
país. Eu apenas tentei organizar o conhecimento que encontrei para
auxiliar o iniciante. Nosso país tem estudiosos sobre Giordano
Bruno. Patrícia Lessa, professora da Unicamp, escreveu sobre ele, e
também Luiz Carlos Bombassaro, professor da UFRGS. Minha intenção
era colocar a magia em foco durante o surgimento da ciência,
utilizando o livro de Giordano, e assim captar alguns ecos de
permanência medieval na Europa do final do Renascimento.
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Permanências me fazem lembrar a História de Longa Duração, a
estrutura temporal inaugurada por Fernand Braudel e que se tornou uma
tendência marcante nos estudos de História Medieval. Acredito que
seja a melhor forma de se encontrar a continuidade de certos
elementos na estrutura social ao longo do tempo.
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Eu também acho.
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Nas conversas que já tivemos, o senhor mostra ter uma grande
preferência pela escrita de ensaios em relação aos textos
monográficos acadêmicos. Isso se dá pela maior liberdade que o
ensaio oferece ou por outros motivos?
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É porque quando passo artigo para os alunos acabo reprovando muitos
pela ausência das regras da ABNT, e parece não adiantar advertir
sobre isso (risos).
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Por falar em artigos, ano passado, em História Medieval II, tivemos
algumas surpresas ao passar a produção de artigos como uma das
notas da disciplina. No geral, o que o senhor achou do que foi
produzido?
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Achei que li muita coisa com potencial para virar pesquisa.
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Os alunos que decidiram adiantar a disciplina, na minha opinião,
apresentaram os artigos mais interessantes. Isso seria o reflexo de
uma precocidade para a escrita ou uma guinada voltada mais para o
caráter de pesquisa do curso?
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Talvez seja as duas coisas.
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O senhor percebe isso nas turmas pelas quais passou a partir de 2017?
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Não em todas. A sua turma e a de História Antiga, assim como a
turma passada, eram muito boas, enquanto outras são menos
interessadas.
Além
de historiador, o senhor também é artista plástico. São duas
áreas que possuem uma relação mais do que próxima, se vermos o
historiador como um criador de narrativas, ou “tecelão dos
tempos”, como diria Durval Muniz; e o artista plástico como alguém
que dá forma à diferentes matérias. Os dois têm a
capacidade de “dar vida”.
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Eu creio que sim. Acho que um acaba alimentando o outro, a Arte e a
História.
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Professor, eu costumo dizer que se Eric Hobsbawm (1917-2012) ainda
estivesse vivo ele já teria publicado a obra “O Ano dos Extremos”,
dado os recentes acontecimentos na política nacional e
internacional. Algumas pessoas acham que nós, historiadores,
gostamos de ser os “sabe tudo”. No entanto, como partimos da
relação presente-passado, não podemos deixar de analisar o
contexto em que vivemos. Quais cenários o senhor vê sendo
delineados em um futuro não muito distante?
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Olha, Fábio, se você leu os comentários do último texto que eu
postei (risos), viu que o povo está em pé de guerra. Não sou
otimista. O mundo está aplaudindo o massacre do povo palestino.
Trump no poder nos Estados Unidos, Vladimir Putin na Rússia e
Bolsonaro liderando as pesquisas no Brasil. Eu temo pela minha vida.
Não quero acabar numa sala de tortura ou morto e jogado em uma vala
comum. Mas, infelizmente, parece que é justamente isso que vai
acontecer no futuro. Deus me livre! Eu não posso me calar, e não
vou.
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Alguns autores sempre tentam nos lembrar do lado “doce” do ofício
do historiador, mas sempre acabamos nos vendo diante da máxima do
historiador iluminista britânico Edward Gibbon (1737-1794), autor de
'História do Declínio e Queda do Império Romano', de que a
História é "pouco mais que o registro de crimes, loucuras e
desventuras da humanidade".
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É por aí. Tento ter otimismo mas o mundo mostra que devo ter
cautela. E muita!
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O senhor, diferente de outros professores, parece não ser o que
poderíamos chamar de militante extremado. Esses extremos, em
qualquer linha de pensamento ideológico, nunca terminam em coisas
boas. O senhor crê em um atual colapso da esquerda no mundo
Ocidental?
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Mais do que isso, Fábio. Eu vejo um colapso do Humanismo no mundo
Ocidental. O que a direita chama de esquerda é o humanismo. Vejo as
pessoas querer matar e ficando chateadas quando a lei não lhes
permite fazer justiça com as próprias mãos. A esquerda enquanto
tal entrou em colapso com a queda da URSS, mas a social democracia,
um capitalismo mais humanizado, é o que vem sendo atacado sob o
símbolo "esquerda".
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E sobre os recentes ataques à educação (devo dizer novos, pois ela
sempre foi atacada), em especial às Ciências Humanas, o senhor
também acredita em um futuro desolador?
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A curto prazo sim. Nós mostramos o que a sociedade não quer ver,
mas a longo prazo, acho que essa volta à direita, à ditadura e
esses ataques às Ciências Humanas vão acabar desacreditados, pois
sempre levam à ruína do país e do mundo. O que me preocupa é por
quanto tempo esse surto de loucura vai durar.
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Nessas últimas partes da entrevista, ficou fácil para os leitores
identificarem sua vertente política/ideológica (risos). No que diz
respeito ao conservadorismo, aos costumes e práticas de nossa
sociedade, o senhor considera importante cultivar alguns dos
elementos anteriormente citados?
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Claro que sim. Não sou um iconoclasta. Mas sempre na medida do bom
senso. Perder as referências nunca foi bom para sociedade nenhuma.
Mas, quanto à passagem do tempo, alguns valores devem ser adaptados,
mas não acho que devemos desvalorizar as raízes da sociedade.
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Disciplina em sala de aula seria um desses elementos tradicionais que
deveriam ser mantidos de forma atemporal (risos)?
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Com certeza. Autoridade é importante. Repare que eu falei
autoridade, não autoritarismo (risos).
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Algum novo projeto de pesquisa ou planos para a carreira?
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Estou escrevendo meu projeto de Doutorado. Vou voltar à fonte e
ver se o meu plano é exequível (risos).
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Do que trata o seu projeto de Doutorado?
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Ainda estou analisando escrever sobre isso, mas trata-se do papel dos
sonhos nos escritos herméticos da Renascença. Na realidade em dois
escritos, no 'Tratado da Magia' e no extenso livro de Cornelius
Agrippa (1486-1535).
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Então o senhor vai continuar seguindo a linha do imaginário e das
representações?
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Sim. Creio que com mais probidade. Quero levar o debate com o Malleus
Maleficarum a um nível maior. Eu ensaiei isso no Mestrado, mas
timidamente.
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Como disse em outras perguntas, o senhor é o professor do
Departamento com o qual mais tenho contato. Em nossas conversas mais
recentes, discutimos as condições de trabalho dos professores
substitutos. O que o senhor tem a dizer para os leitores sobre esse
trabalho?
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Para mim é sempre uma honra lecionar na UFAM. Mas sabendo que o
leitor possivelmente é historiador, digo para perseverar em nossa
disciplina. Acho que, nesse momento pelo qual o nosso país passa,
temos um papel central a desempenhar, no caso como mantenedores da
História e da Memória.
Manaus, 08/05/18 - 18/05/18