domingo, 28 de janeiro de 2024

A ocupação da Amazônia

Artefatos expostos no Laboratório de Arqueologia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Foto: Bruno Kelly.

Os cronistas europeus que passaram pela Amazônia entre os séculos XVI e XVII deixaram interessantes e importantes relatos sobre as populações indígenas, auxiliando na reconstituição da demografia amazônica antes e durante a conquista. Frei Gaspar de Carvajal viu na província de Machifaro, ou Machiparo, na margem direita do Solimões, "[...] muitas e grandíssimas povoações que reúnem cincoenta mil homens, entre os trinta e setenta anos". A abundância de comida -  tartaruga, carne, peixe e biscoito - era tanta que "[...] daria para sustentar um batalhão de mil homens durante um ano".

Esses relatos demonstram que a Amazônia foi uma região densamente povoada, sofrendo um catastrófico decréscimo populacional nos dois primeiros séculos da colonização, causado pela violência da escravidão e pela letalidade das doenças. Quando começou a ocupação do território?

Segundo o arqueólogo Eduardo Góes Neves, a região começou a ser ocupada há cerca de 11 mil anos, mas essa presença pode ser ainda mais antiga. Na caverna de Pedra Pintada, localizada em Monte Alegre, no Pará, foram encontrados indícios datados de 9.200 a. C. Na gruta Lapa do Sol, na bacia do Guaporé, no Mato Grosso, foram encontrados resquícios de 12 mil a. C. O pesquisador explica que "De qualquer modo, diferentes partes da Amazônia já eram ocupadas em torno de 7000 a. C. As evidências vêm de locais tão diversos como a serra dos Carajás, no Pará; a bacia do rio Jamari, em Rondônia; a região do rio Caquetá (Japurá), na Colômbia; o baixo Rio Negro, próximo a Manaus, e o alto Orinoco, na Venezuela".

Apesar de os grupos nativos terem diferentes culturas e formas de sociabilidade, eles compartilhavam entre si a exploração sustentável da fauna e da flora, pescando, coletando, cultivando o solo e caçando animais de pequeno porte. De suas atividades restaram artefatos de pedra polida, fragmentos de pontas de lança, potes e vasilhames.

A arqueóloga estadunidense Betty Meggers defendia a tese de que o ambiente amazônico, pobre em nutrientes e sem animais de grande porte, teria impedido a formação de grandes contingentes populacionais, contribuindo para a "degeneração" de seus habitantes. Em contrapartida, a também arqueóloga estadunidense Anna Roosevelt defende que as terras baixas da região (várzeas), ricas em nutrientes e com grande fartura, foram o polo irradiador da povoação da Amazônia, abrigando cacicados complexos e sofisticados:

"Desta forma, enquanto habitat da ocupação humana pré-histórica, a Amazônia surge como mais rica, complexa e variada do que pensávamos. Mais significativo para a compreensão dos padrões da adaptação nativa e desenvolvimento cultural é, provavelmente, o fato de que existiram determinadas áreas nas quais a abundância de recursos sustentava populações caçadoras-coletoras, horticultoras e agricultoras durante longos períodos, e que nestas áreas se desenvolveram grandes populações indígenas".

Diferente da tradicional periodização da Pré-História europeia, dividida em Paleolítico, Mesolítico e Neolítico, a Pré-História da Amazônia é dividida em três fases distintas das propostas por Thomsem, Lubbock e Mortillet: fase Paleoindígena, fase Arcaica e fase da Pré-História Tardia. Isso se dá pelo fato de a Pré-História da região ainda não ter sido plenamente estudada e possuir suas próprias particularidades.

A fase Paleoindígena vai de 11.000 a 7.500 a. C. Os primeiros habitantes da Amazônia eram nômades, e sobreviviam da coleta de frutos, moluscos, da agricultura rudimentar e da caça de animais de pequeno porte. Nas regiões do norte do Rio Orenoco, no escudo e na costa da Guiana e no Rio Galera, no Mato Grosso, foram encontradas ferramentas de pedra como machados, pontas de lanças e raspadores. Apesar de as pontas de lanças terem sido encontradas, a caça de grande porte era rara. As gravuras rupestres desse período, segundo Anna Rosevelt, "[...] abrangem círculos rajados, faces humanas estilizadas ou máscaras, triângulos púbicos femininos, motivos baseados nos pés humanos, quadrúpedes, motivos geométricos sombreados e cavidades para trituramento e raspagem".

A fase arcaica compreende o período de 7.500 a. C. a 1.000 a. C., sendo caracterizada pela existência de complexos pré-cerâmicos, evidenciando a transição dos grupos coletores para grupos mais complexos que praticavam a agricultura de subsistência. Os sambaquis, depósitos artificiais de conchas, são as principais fontes dessa época. No sambaqui de Taperinha, em Santarém-PA, foram encontrados instrumentos de pedra lascada (machados, moedores e quebradores de grãos), de ossos e alguns exemplares de cerâmica avermelhada com desenhos geométricos. O tamanho dos sambaquis indica o aumento demográfico e o surgimento de grupos humanos que passaram a se fixar em um único local. "Nesse sentido", explica Roosevelt, "este estágio parece representar uma fase de intensificação da subsistência e do crescimento populacional similar àquela do Mesolítico no Velho Mundo".

A Pré-História Tardia vai de 1000 a. C. a 1000. d. C. Se desenvolvem, à margem dos principais rios da Amazônia, sociedades indígenas bastante complexas em aspectos demográficos, econômicos e políticos. Ela são conhecidas como cacicados complexos. Por volta do ano 1000 a. C. surgiram as culturas dos construtores de tesos, aterros artificiais inundáveis onde eram erguidas as aldeias. Elas foram sucedidas por sociedades mais desenvolvidas, divididas hierarquicamente, apresentando uma cerâmica altamente refinada, cujos melhores exemplares são encontrados na Ilha do Marajó e na região de Santarém-PA.

Quantos eram os indígenas antes da conquista? O professor William M. Denevan, do Departamento de Geografia da Universidade de Wisconsin-Madison, estimou para a Grande Amazônia (bacia Amazônica, leste e sul dos Andes e Amazônia Legal) uma população de 6 milhões e 800 mil, dos quais 5 milhões habitavam a bacia Amazônica. O historiador John Hemming, no final da década de 1970, estimou a população da bacia Amazônica no período pré-colonial em 3 milhões 625 mil indivíduos.

O antropólogo Antônio Porro registra que os grupos linguísticos que compunham a Amazônia antes da chegada dos europeus eram oito: Aruak, Karib, Tupi, Jê, Katukina, Pano, Tukana e Xiriana. Os povos que formam esses grupos, cerca de 90, encontram-se distribuídos pela bacia hidrográfica da região.

Os povos da língua Aruak estão localizados nos afluentes do rio Solimões. No rio Jutaí encontramos os Wairaku; no Juruá os Marawá e Kulína; no Purus os Purupurú, Paumari, Yamamadí, Ipurinân e Kanamari; no Içá os Pasé e Wainumá; no Japurá os Kayuixâna e Yumana; nos rios Negro e Içana os Manáo, Baré, Warekúna e Baníwa. Entre a Serra de Parima e a de Acaraí encontram-se os Guinaú, Wapitxana, Atoraí e Maopituan. Na Ilha de Marajó e na região litorânea do Amapá estão os Palikur, Arawak e Aruân.

Encontram-se no maciço das Guianas e arredores, nos afluentes ao norte do rio Amazonas e a leste do rio Negro os povos do grupo Karib. Nos maciços temos os Purukotó, Makiritare, Makuxí e Taulipang; no rio Branco, os Pauxiânia e Parauiana; no rio Jauaperi, os Yauaperí e Waimiri-Atruahí; no rio Jatapu, os Bonarí; no rio Nhamundá, os Xauianá e Piranya; no rio Trombetas, os Kaxuiana, Pauxi e Pianakotó; no rio Paru, os Apalaí, Wayana e Tirió; e no sul do Amazonas, os Arara, entre o Xingu e o Tocantins.

Os tupi têm localização semelhante à dos Karib, entre o sul do médio e baixo Amazonas. No rio Madeira encontram-se os Kawahíb, Arikên, Tuparí e Tupinambarâna; na bacia do rio Tapajós, os Mundurukú, Mawé, Apiaká, Kawahíb, Parintintim e Kayabí; no rio Xingu os Jurúna, Oyanpík, Asuriní e Xipáya; no rio Tocantins os Pakayá, Parakanân e Amanayé; no extremo leste do Pará, até o Maranhão, os Tupinambá, Tembé, Guajajára e Tobajára; no rio Paru os Apama; no rio Nhamundá os Apoto; e na área de várzea do Solimões os Kokâma, Omágua e Yurimágua.

Os povos da língua Jê são encontrados nas bacias do médio Xingu, Araguaia e Tocantins. São eles os Kayapó, Gorotíre, Gaviões, Apinayé e Timbíra. Nos rios Tapajós e Madeira os Nambikuára, Torá e Pakaánovas.

Segundo Edilene Coffaci de Lima, "Desde a primeira metade do século passado, os registros históricos produzidos por missionários, viajantes e agentes governamentais sobre as populações indígenas do rio Juruá fazem referência a grupos indígenas conhecidos pelo nome de Katukina". Os povos do grupo Katukina estão localizados entre os rios Purus e Juruá. São eles os Katukína, Katawixí e os que levam o sufixo Diapá.

Os povos do grupo Pano encontram-se entre os rios Juruá, Javari, Içá e Japurá. Entre os rios Juruá e Javari estão os Kaxinawá e Mayorúna. Entre os rios Içá e Japurá, os Tukúna, Yurí, Mirânia e Koerúna. Esses povos, no final do século XIX, foram obrigados a se refugiar em locais distantes na floresta por conta da invasão de suas terras durante a extração do látex das seringueiras. Muitos morreram em conflitos e outros foram escravizados.

No rio Uaupés estão localizados os grupos dos Tukána, que são os Takána, Desàna e Wanâna. Os antropólogos Stephen Hugh-Jones e Aloisio Cabalzar explicam que "Os Tukano compartilham uma área geográfica contínua e um mesmo modo de vida básico, que inclui a caça e a coleta, mas no qual predomina a pesca e a agricultura de coivara, sendo a "mandioca brava" o principal produto".

Em Roraima são encontrados os representantes do grupo Xiriâna, que são os Xiriâna e Waiká. De acordo com Otto Zerries, trata-se de um subgrupo Yanomami. Waiká significa "pessoa braba" e Xiriana "pessoa mansa". Essas nomenclaturas, vistas pelos indígenas como apelidos, não são aceitas pelos Yanomami.

Como podemos ver, Amazônia, até 1500-1600, abrigava grandes populações indígenas organizadas em grupos linguísticos com culturas distintas que habitavam a igualmente rica bacia hidrográfica da região. Aqui exploraram as matas e os rios, cultivaram o solo e produziram uma refinada cerâmica que impactou cronistas e arqueólogos por sua qualidade e riqueza de detalhes. O primeiro tiro de espingarda deu início à ruína dessas sociedades.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CARVAJAL, Frei Gaspar de. Descobrimento do Rio das Amazonas. Traduzidos e anotados por C. de Melo-Leitão. São Paulo; Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1941.

FREIRE, José Ribamar Bessa (org.); PINHEIRO, Geraldo P. Sá Peixoto; TADROS, Vânia Maria Tereza Novoa; SANTOS, Francisco Jorge dos; SAMPAIO, Patrícia Maria Melo; COSTA, Hideraldo Lima da. A Amazônia Colonial (1616-1798). 4° ed. Manaus: Editora Metro Cúbico, 1991.

HUGH-JONES, Stephen; CABALZAR, Aloisio. Tukano (verbete). Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Tukano.

LIMA, Edilene Coffaci de. Katukina Pano (verbete). Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Katukina_Pano.

NEVES, Eduardo Góes. Arqueologia da Amazônia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.

PORRO, Antônio. O povo das águas: ensaios de etno-história amazônica. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.

ROOSEVELT, Anna Curtenius. Arqueologia Amazônica. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras; Secretaria Municipal de Cultura; FAPESP, 1992.

ZERRIES, Otto. Los Waika (Yanoama), indígenas del Alto Orinoco 1954-1974. Indiana 3: 147-150, 1975.

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

A ocupação da América

Esquema de ocupação da América. Fonte: Letícia Fuentes.

Quando os europeus chegaram ao continente que seria denominado América, se depararam com milhares de habitantes, com formas de organização, línguas e culturas diferentes das suas. O impacto, de ambos os lados, foi imenso. Os invasores começaram a se questionar quais as origens daquelas pessoas. Teriam nascido ali? Vieram de outro lugar?

O linguista Benito Arias Montano (1527-1598), autor da Bíblia Poliglota, registrou, em uma perspectiva religiosa, que a América foi povoada por personagens bíblicos: Ophis colonizou a região nordeste do continente, enquanto Jobal colonizou o Brasil.

Desde a segunda metade do século XIX, pesquisadores das mais variadas áreas, como História, Antropologia e Arqueologia, elaboraram hipóteses e criaram teorias sobre a ocupação do continente americano: teoria asiática, teoria malaio-polinésia e teoria africana.

Teoria Asiática

Essa teoria afirma que grupos de homens e mulheres caçadores e coletores chegaram à América através do Estreito de Bering, região que separa o extremo leste da Ásia do extremo oeste da América do Norte, há cerca de 18-20 mil a.C., período em que ocorreram profundas mudanças climáticas.

Esses povos saíram de suas regiões de origem em busca de melhores condições de vida, atravessando essa passagem entre a Ásia e a América, em diferentes ondas migratórias, durante a última Era do Gelo, momento em que as camadas de gelo se elevaram e, consequentemente, os níveis dos oceanos diminuíram, formando uma ponte terrestre entre os dois continentes.

Através da análise de milhares de amostras de DNA, geneticistas mostraram que povos como os incas, astecas e iroqueses, entre as Américas do Sul e do Norte, eram geneticamente semelhantes aos dos povos da Sibéria, uma extensa região do norte da Ásia que compreende o Cazaquistão, a Mongólia e a China.

O historiador Fausto Evaldo Strassburger afirma que "O pressuposto de que o homem teria vindo unicamente a pé, atravessando a Beríngia, atrás dos rebanhos de animais que migravam, não faz justiça à capacidade intelectual humana, reduzindo o homem americano a um descendente de um animal não mais capaz que os camelos, mastodontes e bisões que migravam para a América".

Teoria Malaio-Polinésia

Essa teoria defende que grupos de caçadores e pescadores, hábeis na arte da navegação, teriam vindo da Polinésia, da Melanésia e da Austrália (regiões da Oceania), entre 10 e 4 mil anos a.C. para a América através do Oceano Pacífico, utilizando embarcações rústicas de pequeno porte, tendo aproveitado as correntes marinhas em direção à costa do continente americano.

Da costa da América do Sul eles se espalharam pelo restante do território. Em sítios arqueológicos peruanos foram encontrados vestígios de aves marinhas, mariscos, peixes, moluscos, ferramentas e habitações, com forte indício de terem pertencido a pescadores, dado o tipo de dieta e materiais encontrados.

O etnólogo francês Paul Rivet (1876-1958), criador dessa teoria, não descarta as migrações pelo Estreito de Bering, afirmando que os humanos podem ter chegado à América através de mais de uma rota em diferentes momentos. Análises genéticas constataram que o DNA de grupos nativos da América do Sul possui semelhanças com povos da Oceania.

Teoria Africana

Uma outra teoria, defendida principalmente por pesquisadores brasileiros, afirma que os povos americanos descendem de africanos que teriam migrado para a América através do Estreito de Bering, em data ainda incerta. Essa teoria tem como base o estudo dos crânios de indígenas brasileiros e de outras partes do continente, que após análise mostraram ter semelhança com os de povos da África.

Arqueólogos brasileiros, europeus e estadunidenses, ao fazerem a análise craniométrica, demonstraram que eles não possuíam traços asiáticos, mas sim africanos. Para o arqueólogo Walter Neves, a América foi ocupada primeiramente por povos africanos e não-mongolóides (não asiáticos).

O exemplar mais antigo foi encontrado no Brasil em 1974. Trata-se do fóssil de uma mulher, batizada como Luzia, datado com 11.500 anos de idade. Seu crânio possui fortes traços africanos, o que pode indicar que a chegada desse grupo foi anterior à dos asiáticos. Os cientistas acreditam que os grupos asiáticos, por conta da disputa por alimentos e território, exterminaram os africanos.

Concordado com o historiador Fausto Strassburger que "[...] pessoalmente acredita-se que possam ter sido várias ondas migratórias de diferentes lugares do mundo e que formaram esta diversidade de tipos genealógicos observados nos ameríndios, já que em algumas populações indígenas atuais da América observam-se traços característicos da etnia mongólica, noutras de aborígines australianos, noutras de polinésios, noutras de africanos, enfim, compondo uma variedade morfológica que dificilmente teria sido formada pelo concurso de apenas uma etnia".

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:

FIGUEIREDO, Aguinaldo Nascimento. História do Amazonas. Manaus: Editora Valer, 2011.

STRASSBURGER, Fausto Evaldo. Ocupação humana no continente americano. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) - Universidade Federal da Fronteira Sul, Curso de Licenciatura em História, Erechim, RS, 2020.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

A Amazônia Pombalina

Retrato do Marquês de Pombal. Pintura de Louis-Michel van Loo e Claude Joseph Vernet, 1766.

A Amazônia começou a passar por transformações profundas na segunda metade do século XVIII. Em Portugal, subiu ao trono em 1750 o Rei D. José I, conhecido como O Reformador, que botou em prática um projeto de transformação política e econômica no reino e nas colônias, nomeando o Marquês de Pombal (Sebastião José de Carvalho e Melo), para empreender essa tarefa.

Portugal era uma nação pobre e dependente da Inglaterra. Para superar essa condição, o Marquês de Pombal elaborou um ambicioso projeto de modernização das instituições. A Amazônia, que até então era uma região, no cenário colonial, subalterna, passou a fazer parte dos quadros de desenvolvimento mercantilista.

Numa tentativa de reordenação e aperfeiçoamento da manutenção das fronteiras, é criado em 1751 o Estado do Grão-Pará e Maranhão, formado pelas capitanias do Pará, Maranhão, Piauí e Rio Negro, com capital em Belém.

As aldeias tiveram suas nomenclaturas alteradas, recebendo nomes portugueses. Exemplos: Mariuá – Barcelos; Taracuatíua – Fonte Boa; Saracá – Silves; Abacaxis – Itacoatiara; Trocano – Borba; Caiçara – Alvarães; São Paulo dos Cambebas – Vila de São Paulo de Olivença.

Em 03 de março de 1755 é criada a Capitania de São José do Rio Negro, desmembrada do Estado do Grão-Pará e Maranhão. A criação dessa nova unidade política colonial tinha três objetivos. O primeiro, facilitar a administração portuguesa na Amazônia, pois as dimensões geográficas da região faziam com que as decisões tomadas em São Luís, no Maranhão, e Belém, no Pará, chegassem de forma tardia nas localidades mais interioranas, extremamente distantes dos centros das decisões políticas. O segundo, facilitar a catequização dos indígenas. O terceiro, garantir a soberania portuguesa frente as ameaças de espanhóis, ingleses, holandeses e franceses.

O rei de Portugal, Dom José I, autorizou, no Alvará de 04 de abril de 1755, o casamento entre portugueses e indígenas, com amplos benefícios para os casais constituídos e seus descendentes, súditos a partir de agora com forte ligação com a metrópole portuguesa. Essa política de união entre brancos e indígenas começou a surtir efeito cedo, como fica claro em uma carta de Mendonça Furtado para o rei, onde ele transmite que conseguiu que “naquele pouco espaço se contrahissem não menos de 78 matrimonios no Ryo Negro”.

Os jesuítas foram expulsos da Amazônia em 1759. Essa ação fazia parte da obra modernizadora iluminista de Pombal, que previa a atuação ampliada do Estado sobre todos os setores da sociedade. Afirmava-se que os jesuítas estavam criando um "Estado dentro do Estado", oferecendo riscos à soberania portuguesa.

Com o fim da União Ibérica (1580-1640), período de domínio da Espanha sobre Portugal, foi necessário estabelecer novos tratados de limites. Três foram assinados durante o período Pombalino: Tratado de Madri (1750), Tratado de El Pardo (1761) e Tratado de Santo Ildefonso (1777).

No Tratado de Madri ficou acertado que Portugal reconhecia a soberania da Espanha sobre a Colônia de Sacramento, fundada pelos portugueses em 1680, e o território do Rio da Prata, enquanto a Espanha entregava a Portugal os Sete Povos das Missões, no Rio Grande do Sul, e os territórios da Amazônia e Mato Grosso. Para ficar com essas terras, Portugal invocou a tese do Uti Possidetis, segundo a qual a terra pertence a quem a ocupa e desenvolve.

Esse tratado foi anulado em 1761 pelo Tratado de El Pardo por conta das Guerras Guaraníticas, encabeçadas pelos indígenas e jesuítas espanhóis que se recusaram a deixar as terras dos Sete Povos das Missões e pela falta de demarcação dos limites na Amazônia.

Em 1777 é assinado o Tratado de Santo Idelfonso, que determinou, de forma definitiva, que Portugal ficava com a região Amazônica, e a Espanha ficava com a Colônia de Sacramento e os Sete Povos das Missões, no Sul. O Tratado de Badajós, de 1801, autenticou essas decisões. A Amazônia, ocupada e desbravada pelos portugueses, agora lhes pertencia de fato.

Visando a dinamização da produção e comércio das drogas do sertão, o desenvolvimento da agricultura e a introdução de escravizados africanos, foi criada em 1755 a Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, com sede em Lisboa.

Portugal buscou utilizar a mão de obra indígena, integrando os nativos à cultura europeia, os transformando, pela força, em braços úteis ao progresso econômico. Em 06 de junho de 1755 a escravidão indígena foi abolida, sendo os nativos igualados aos portugueses. Dois anos depois o trabalho forçado foi regulamentado através do Diretório dos Índios (1757).

O Diretório determinou que os indígenas ficariam sob domínio dos Diretores, que deveriam zelar pela administração das comunidades. Os indígenas foram proibidos de falar suas línguas e o nheengatu, língua geral criada pelos jesuítas, devendo falar apenas a língua portuguesa e utilizar sobrenomes em português. Suas casas deveriam ser construídas como a dos brancos, com divisões para quarto, cozinha etc.

Os indígenas deveriam se dedicar à agricultura de exportação, mas também eram obrigados a cultivar mandioca, feijão, milho e arroz para consumo próprio e para abastecer os moradores das cidades. A atividade comercial sofreu interferência, com a padronização de pesos e medidas. Os povoados próximos aos mares e rios deveriam se dedicar à salga de peixe para a exportação.

Nos povoados e arredores onde existissem drogas do sertão, os indígenas que tivessem finalizado o cultivo de suas roças seriam arregimentados pelo Diretor para sua exploração, com fiscalização do Cabo das Canoas, que evitaria que o diretor se beneficiasse do trabalho dos nativos.

Os indígenas eram obrigados a pagar o dízimo, que era a décima parte do que produzissem e adquirissem, ficando o diretor responsável pela cobrança. Este último tinha como salário a sexta parte do cultivo e produtos adquiridos pelos indígenas, estes últimos não devendo ser produtos comestíveis.

Nesse novo contexto de trabalho compulsório os indígenas eram distribuídos pelos diretores entre os habitantes dos povoados e vilas, os ajudando na extração das drogas do sertão e nas lavouras. Uma parte deles ficava retida em suas próprias povoações para a defesa do território e os serviços prestados à coroa. O diretório foi abolido em 1798.

Uma nova divisão territorial foi feita em 1772. O Estado do Grão-Pará e Maranhão foi dividido em dois estados independentes: a Capitania do Grão-Pará e Rio Negro, com capital em Belém, e o Estado do Maranhão e Piauí, com capital em São Luís.

A Era Pombalina chegou ao fim em 1777, quando o Rei D. José I faleceu e sua filha, Maria I, demitiu o Marquês de Pombal do cargo de ministro.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:

FREIRE, José Ribamar Bessa (coord.); PINHEIRO, Geraldo P. Sá Peixoto; TADROS, Vânia Maria Tereza Novoa; SANTOS, Francisco Jorge dos; SAMPAIO, Patrícia Maria Melo; COSTA, Hideraldo Lima. A Amazônia Colonial (1616-1798). Manaus: Editora Metro Cúbico, 1991.

SANTOS, Francisco Jorge dos. História do Amazonas. 1° ed. Rio de Janeiro: MEMVAVMEM, 2010.

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

O xote, o baião e a esperança em dias melhores: a presença nordestina em Manaus

Soldados da borracha. Fonte: O Cruzeiro, 1944.

A região Nordeste é formada pelos estados da Bahia, Paraíba, Ceará, Alagoas, Maranhão, Piauí, Pernambuco, Sergipe e Rio Grande do Norte. Dona de uma rica diversidade cultural, foi berço da colonização portuguesa e palco dos primeiros grandes ciclos econômicos, o do pau Brasil e do açúcar. Até 1763 a cidade de Salvador, na Bahia, foi a capital e principal porto do país. Milhares de nordestinos, entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, migraram em uma verdadeira epopeia para a Amazônia, influenciando imensamente nossa economia e cultura.

Atraídos para uma região tão vasta, em busca de um refúgio contra as secas que assolavam seus estados de origem, logo se viram frente a uma das piores faces da economia gomífera: o regime de servidão. Em teoria, o seringueiro era um trabalhador livre, mas trazia, desde sua viagem para a região, uma dívida com o dono do seringal. Chegando ao local de trabalho, extraía o látex até pagar o que devia ao seringalista. Só que isso raramente acontecia, pois todos os utensílios para o trabalho e bens de consumo deveriam ser comprados no barracão, também de propriedade do seringalista.

Assim, esse trabalhador, explorado em um regime de trabalho que começava entre 4:00-5:00 horas, percorrendo vários quilômetros para encontrar seringueiras, ficava em um ciclo eterno de fazer e pagar dívidas. Se tentasse comprar em outro lugar, falsificar o peso das pélas de borracha ou fugir do seringal, era eliminado pelo patrão, que controlava o lugar com mãos de ferro.

Samuel Benchimol, no livro Amazônia – Formação Social e Cultural (1999), faz um minucioso levantamento da entrada de imigrantes nordestinos na região. Durante as secas de 1877 e 1878, foi registrada a entrada de 19.910 imigrantes. Em 1892 entraram mais 13.593. Entre 1898 e 1900 aportaram em Belém e Manaus, posteriormente com destino aos seringais, 88.709. De 1900 até a crise da economia gomífera, foram contabilizados 150.000 nordestinos. De 1877 a 1920, estima o sociólogo, migraram 300.000 pessoas.

Alguns conseguiam, mesmo em meio à brutalidade da selva, galgar melhores posições. Ainda de acordo com Benchimol, parte dos seringalistas tinha origem nordestina. Eles começavam a vida como seringueiros 'brabos', sem experiência, e aos poucos, com a ajuda dos seringueiros ‘mansos’, ascendiam socialmente, assumindo diferentes cargos no seringal – mateiro, comboieiro, pesador, classificador, capataz, auxiliar de escrita, gerente de barracão, arrendatário de estradas e colocações – até chegar ao topo, tornando-se seringalistas, proprietário de seus próprios seringais.

Durante a Segunda Guerra Mundial, com o bloqueio das colônias asiáticas que produziam borracha pelo Japão, matéria prima necessária na indústria armamentista, os Aliados voltaram seus olhos para a Amazônia. Entre 1943 e 1945 foram recrutados cerca de 60.000 mil trabalhadores de diferentes estados da região Nordeste para a extração de látex. Estes ficaram conhecidos como Soldados da Borracha. Os governos estadunidense e brasileiro esperavam elevar a produção ao número de 70.000 mil toneladas anuais até onde a Guerra durasse.

Muitos deles ficaram em Manaus, atuando em outras atividades como o comércio ou realizando trabalhos braçais. O historiador Arthur Cezar Ferreira Reis registra, em História do Amazonas (1989), que ao final da década de 1870, “o governo, procurando recebê-los e localizá-los como contribuições preciosas ao progresso da Província, criou colônias em vários pontos do interior, núcleos agrícolas, duas das quais nas cercanias de Manaus”. A mais célebre foi a Colônia Maracaju, que recebeu centenas de retirantes.

A partir da década de 1920, com a crise econômica, e após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a presença na capital se intensificou, pois deixaram os seringais falidos em busca de melhores condições de vida. Eles vão se instalar e fundar bairros como Colônia Oliveira Machado, Praça 14 de Janeiro, São Francisco, São Lázaro, Santa Luzia, Crespo e São Jorge. Não é difícil encontrar famílias manauaras com antepassados cearenses, pernambucanos, alagoanos, baianos e norte riograndenses.

Mas, claro, como ocorre nesses movimentos migratórios, o preconceito se fez presente nos primeiros tempos. Alguns jornais se referiam a eles pejorativamente como arigós, pessoas ríspidas e perigosas. O jornal Diário da Tarde, em 1944, descreveu Antônio Dionísio como “paraibano, solteiro, vagabundo, sem profissão, sem residência, freguês da dormida no pátio interno da Delegacia Auxiliar”. Nesse mesmo ano comemorou a “boa safra” de prisões, destacando as de Francisco Ignácio da Silva, rio grandense do norte, e Manuel Caetano Pereira, paraibano, por terem promovido distúrbios na Estrada de Constantinópolis, também conhecida como Estrada dos Arigós.

Uma parte dos nordestinos vindos para Manaus tinha ensino superior, formados em instituições prestigiadas como a Faculdade de Medicina da Bahia e a Faculdade de Direito do Recife, realizando suas especializações em universidades europeias. Estes passaram a trabalhar como profissionais liberais e também assumiram importantes cargos no funcionalismo público e na política. Eles chegaram a fundar agremiações como o ‘Club União Cearense’ (1890), que tinha como objetivo “agremiar os cearenses rezidentes no Estado do Amazonas no pensamento de bem servir a pátria”.

O Amazonas deve seu desenvolvimento aos nordestinos, nomes ilustres que homenageiam ruas e praças de Manaus: Theodureto Carlos de Faria Souto (1841-1893) - Natural de Ipu, no Ceará, foi Presidente da Província do Amazonas em 1884, sendo responsável pela assinatura da libertação dos escravos no Amazonas em 10 de julho de 1884. Eduardo Gonçalves Ribeiro (1862-1900) - Natural de São Luís, no Maranhão, foi militar e Governador do Estado do Amazonas entre 1890 e 1891 e 1892 e 1896, sendo responsável pela transformação urbana da capital.

Aprígio Martins de Menezes (1844-1891) - Natural de Salvador, na Bahia, foi médico, poeta e historiador, sendo o primeiro autor a sistematizar a História do Amazonas. Astrolábio Passos (1862-1926) - Natural de Jeromenha, no Piauí, foi médico, um dos fundadores e primeiro reitor da Escola Universitária Livre de Manáos, hoje Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Adriano Augusto de Araújo Jorge (1879-1948) - Natural de Alagoas, foi médico, jornalista, escritor, membro fundador e primeiro Presidente da Academia Amazonense de Letras (AAL).

As influências são várias. Na gastronomia, incorporamos ao consumo de peixe com farinha, alimentos tipicamente indígenas, o baião de dois, prato típico do Ceará. Complementamos com banana frita e vinagrete. Impossível encontrar alguma peixaria em Manaus que não sirva seus pratos acompanhados de baião. Os prestamistas que percorrem nossas ruas e avenidas são ou têm descendência nordestina. A festa em torno do boi, animal que dá sustento e alimento, introduzidas pelos colonizadores, foi introduzida na região através de migrantes oriundos do Maranhão e do Ceará, aqui ganhando novas roupagens. Sem os nordestinos Manaus não seria Manaus.

Texto publicado na edição de 23 e 24 de outubro de 2023 do Jornal do Commercio de Manaus.

terça-feira, 5 de setembro de 2023

De Capitania de São José do Rio Negro à Província do Amazonas

 
Trecho da Lei n° 582 de 05 de Setembro de 1850. Fonte: Collecção das Leis do Império do Brasil de 1850. Tomo XI, parte I, p. 271. Acervo da Câmara dos Deputados.

No dia 05 de Setembro comemora-se a Elevação do Amazonas à categoria de Província. É a data maior do nosso estado. Para entendermos esse acontecimento é preciso compreender primeiro o processo de constituição política do Amazonas.

O embrião político do Estado do Amazonas foi a Capitania de São José do Rio Negro, criada pelo Império Português em 03 de março de 1755 e instalada oficialmente em 07 de maio de 1758. O historiador Arthur Cézar Ferreira Reis ensina que ela foi criada para dinamizar a administração da região Amazônica, facilitar a catequese dos indígenas e garantir a soberania portuguesa, pois as dimensões continentais do Estado do Maranhão e Grão-Pará, cuja administração estava centrada em São Luís e Belém, era um problema para a manutenção da autoridade nessa porção do território. Nada melhor do que a criação de uma nova unidade política (REIS, 1989, p. 119).

A Amazônia, é sempre bom lembrar, era um território autônomo que respondia diretamente à Portugal. Em 1621, durante a União Ibérica, foi criado o Estado do Maranhão e Grão-Pará, separado do Estado do Brasil, visando a defesa e a colonização da parte setentrional da América Portuguesa e o desenvolvimento da coleta das drogas do sertão. Em 1751, dada a ascensão metórica do Pará, o nome foi alterado para Estado do Grão-Pará e Maranhão e, em 1772, o Maranhão torna-se uma capitania independente, passando a existir o Estado do Grão-Pará e Rio Negro, com a Capitania de São José do Rio Negro subordinada à do Grão-Pará.

A Capitania de São José do Rio Negro foi crescendo lentamente, enfrentando dificuldades técnicas e financeiras, o baixo povoamento e a dependência política e econômica do Grão-Pará. No entanto, no final do século XVIII, entre 1788 e 1799, surgiu um fio de esperança em dias melhores. Nesse período assumiu seu governo o militar português Manuel da Gama Lobo d’Almada, responsável por introduzir uma série de melhoramentos. Em 1791 transferiu a capital de Barcelos para o Lugar da Barra (Manaus), por considerá-lo estratégico entre os rios Negro e Solimões, facilitando a defesa e o comércio. Construiu fábricas de panos e tecidos, padarias, cordoarias, olarias, açougues, engenhos e introduziu gado no Vale do Rio Branco (MONTEIRO, 1994, p. 51). Esses foram os anos mais prósperos da capitania.

“A inveja e o despeito, porém, preparavam um golpe fatal para a obra de Almada”, escreveu o historiador Agnello Bittencourt sobre as medidas tomadas pelo governo do Grão-Pará para conter a rápida ascensão do Rio Negro. Assustado com o crescimento da capitania e temendo a perda de seu cargo para Lobo d’Almada, o governador da Capitania do Grão-Pará, D. Francisco de Sousa Coutinho, com apoio de seu irmão, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, ministro em Portugal, passa a perseguir Lobo d’Almada, determinando o retorno da capital para Barcelos, cortando as verbas para a capitania e o acusando de usurpar o erário. Com a honra ferida e anos de trabalho arruinados, Almada falece em 1799 (BITTENCOURT, 1985, p. 262-263; REIS, 1989, p. 146-148). O cenário era aterrador: “O Rio Negro ia atravessar um longo período de amarguras. As vilas e povoados principiaram a viver novamente dias miseráveis. A população diminuída, as lavouras e as indústrias entrariam a definhar. O censo de 1799 acusou 15.480 almas. Os cômputos anteriores assinalavam maior total” (REIS, 1989, p. 149).

De acordo com Agnello Bittencourt, por volta de 1820 já “fervilhavam nas intenções políticas da Capitania as ideias autonomistas”. Essas ideias, afirma Arthur Reis, foram bem recebidas pela população, que ansiava pela independência em relação ao Grão-Pará. A situação do Rio Negro a cada dia tornava-se insustentável, e pouco era feito pela autoridade instituída em Belém. Silves, Vila Nova da Rainha e Barcelos, em 1818, solicitaram à D. João VI a separação (BITTENCOURT, 1985, p. 263; REIS, 1989, p. 151). Em 1820 estoura em Portugal a Revolução Liberal do Porto, movimento que pedia o retorno de D. João VI e a recolonização do Brasil, desde 1815 elevado à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves. Participaram dos trabalhos nas Cortes Gerais deputados favoráveis à emancipação da Capitania de São José do Rio Negro. Em 29 de Setembro de 1821 Dom João transformou as capitanias em províncias, com o Rio Negro subordinado ao Grão-Pará. Na Constituição Política da Monarquia Portuguesa consta o nome da Província do Pará e Rio Negro.

D. João deixou seu filho, D. Pedro, como Príncipe Regente. As Cortes exigiam o retorno do regente para poder recolonizar o território. Com apoio da elite brasileira, D. Pedro rompeu relações com Portugal e proclamou a Independência em 7 de Setembro de 1822. O Grão-Pará continuou fiel à antiga metrópole. Sabendo da resistência que encontraria em regiões com fortes laços econômicos, políticos e culturais com Portugal, o agora Imperador Dom Pedro I contratou, para impor a adesão ao Império, os militares Thomas John Cochrane e John Pascoe Grenfell, da Marinha Real Britânica, especialistas em processos de independência. Grenfell, sob comando de Cochrane, se dirigiu ao Grão-Pará. Chegou em Belém no dia 10 de agosto de 1823. Intimou o governo a aderir ao Império Brasileiro. No dia seguinte, receando um ataque à capital, a independência foi reconhecida, sendo o auto de juramento lavrado em 15 de agosto. A notícia da adesão foi chegando lentamente aos povoados e vilas, chegando ao Lugar da Barra (Manaus) em 09 de novembro.

A adesão à Independência ocorreu no Largo da Trincheira (Praça IX de Novembro), lugar simbólico onde localizavam-se a Fortaleza, a Igreja e o Cemitério, na manhã do dia 09 de novembro. A Câmara de Serpa instalou-se na Barra no dia 19, com o juramento de fidelidade à D. Pedro I realizado na manhã do dia 22. No dia seguinte foi eleita uma Junta Governativa formada por Bonifácio João de Azevedo, Raymundo Barroso de Bastos, Plácido Moreira de Carvalho, Luiz Ferreira da Cunha e João da Silva Cunha. Os dirigentes do Amazonas esperavam que a adesão trouxesse a tão sonhada autonomia (REIS, 1989, p. 156).

Conforme André Roberto de Arruda Machado, no projeto da Constituição para o Império do Brasil o Rio Negro constava como uma de suas províncias (MACHADO, 2006, p. 48). Arthur Reis, comentando a carta magna outorgada em 1824, registrou que “O Rio Negro, naturalmente, estava incluído. Apesar da clareza do texto da lei magna, logo a seguir, marcando o governo o número de deputados ao Parlamento que convocou e nomeando os presidentes para as Províncias, não incluía o Amazonas, considerando-o, tacitamente, uma dependência do Pará” (REIS, 1989, p. 157). Para Agnello Bittencourt, a Independência de 1822 “[…] não ergue da oppressão a Capitania do Rio Negro […] provocando tal situação várias explosões de ânimo” (BITTENCOURT, 1985, p. 264). Mesmo “feridos”, os amazonenses juraram fidelidade à Constituição Imperial em 1825.

Entre as décadas de 1820 e 1840 foram apresentados diferentes projetos pela emancipação do Rio Negro. Políticos paraenses como João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha – que foi o primeiro presidente da província do Amazonas – Frei José dos Inocentes e D. Romualdo Antônio Seixas foram as principais vozes favoráveis à transformação do Amazonas em unidade política independente, argumentando que o governo paraense, dada a extensão continental do território, não conseguiria dar a devida atenção à região, que tinha um enorme potencial econômico. Os políticos contrários afirmavam que o Amazonas possuía uma população rarefeita, carência de mão de obra especializada, rendas públicas e produção insignificantes (FREITAS, 2010).

O maior exemplo das “explosões de ânimo” foi o levante militar de 1832, ocorrido no Lugar da Barra (Manaus). Conforme pesquisa da historiadora Letícia Pereira Barriga, o movimento foi iniciado por praças de 1° e 2° linhas que reivindicavam o pagamento dos salários atrasados. Eles tomaram o Trem de Guerra, os armamentos e as munições, assassinando o comandante militar do Rio Negro, coronel Joaquim Filipe dos Reis. “De levante militar por insatisfação de pagamentos atrasados”, registra Barriga, “o movimento ampliou-se e assumiu um caráter separatista”. Em 22 de junho os revoltosos proclamam a Província do Rio Negro (BARRIGA, 2015, p. 02). O levante, em poucos meses, foi sufocado por tropas militares vindas de Belém, que ocuparam o Lugar da Barra em 12 de agosto, pondo fim à província (LOUREIRO, 1989, p. 14). O Código do Processo Criminal, promulgado pela Regência em 1832, transformou o Rio Negro em Comarca do Alto Amazonas, uma das três que compunham a Província do Pará, formada pelos municípios de Tefé, Luseia, Mariuá (Barcelos) e Manaus, este último elevado à vila (BITTENCOURT, 1985, p. 264; LOUREIRO, 1989, p. 14).

A criação da província vai ser postergada por várias décadas. A situação vai mudar quando, a partir da segunda metade do século XIX, a soberania sobre a Amazônia tornou-se uma questão de primeira ordem, pois era grande o interesse de outras nações sobre as riquezas da região. Para evitar futuras ameaças estrangeiras – sobretudo da Inglaterra, a potência industrial e política da época – e assegurar a soberania sob esse vasto território, o Império acelerou o processo de criação da Província do Amazonas (LOUREIRO, 1989, p. 16). André Luiz dos Santos Freitas afirma que é provável que a Cabanagem (1835-1840) tenha exercido influência sobre a criação da província, pois o estabelecimento de uma nova autoridade poderia evitar revoltas semelhantes (FREITAS, 2010). O deputado paraense João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha apresentou uma indicação em 1844: “Indico que se dirija á Assembléa Geral uma representação para que a Comarca do Alto Amazonas seja elevada à cathegoria de Província. Pará, 7-11-1844” (BITTENCOURT, 1985, p. 271). 

Seis anos depois, o Imperador Dom Pedro II homologou a Lei n° 582 de 5 de Setembro de 1850, elevando a Comarca do Alto Amazonas à categoria de Província do Amazonas, tendo como capital a Cidade de Nossa Senhora da Conceição da Barra do Rio Negro, atual Manaus. Seu primeiro presidente foi João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha, nomeado por Carta Imperial de 07 de junho de 1851. Fábio Augusto de Carvalho Pedrosa registra que a instalação ocorreu somente em 01 de Janeiro de 1852. Ela teve lugar em um sobrado localizado entre as ruas Oriental (posteriormente rua da Instalação), Frei José dos Inocentes e Henrique Antony, que funcionava como a Casa da Câmara Municipal. Estiveram presentes autoridades civis, militares e eclesiásticas, bem como grande número de populares. A população da cidade era estimada em pouco mais de 4.000 habitantes (PEDROSA, 2021).

A criação da Província do Amazonas, um sonho antigo dos tempos da Capitania, representou a autonomia dos amazonenses, que agora poderiam crescer sem depender do controle, muitas vezes autoritário, do governo paraense e suas elites; e a garantia da soberania do Império Brasileiro em terras distantes e quase esquecidas, mas tão cobiçadas por outras nações. O 5 de Setembro é uma data que fala sobre a identidade do amazonense.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BITTENCOURT, Agnello. Corografia do Estado do Amazonas. Manaus: ACA – Fundo Editorial, 1985. [original de 1925].

BARRIGA, Letícia Pereira. Espírito de revolta e separação – o Rio Negro e sua luta por uma nova província na primeira metade do XIX. XVIII Simpósio Nacional de História – Lugares dos Historiadores: velhos e novos desafios, 27-31 jul. 2015.

FREITAS, André Luiz dos Santos. O Gigante Abatido: O Longo Processo de Constituição da Província do Amazonas (1821-1850). Dissertação (Mestrado em História), PUC-SP, 2010.

LOUREIRO, Antonio José Souto. O Amazonas na Época Imperial. Manaus: T. Loureiro, 1989.

MONTEIRO, Mário Ypiranga. Fundação de Manaus. 3° ed. Manaus: Editora Metro Cúbico, 1994.

MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades: a crise política do Antigo Regime português na província do Grão-Pará (1821-1825). Tese (Doutorado em História). USP, 2006.

PEDROSA, Fábio Augusto de Carvalho. A antiga Casa da Câmara Municipal e a Instalação da Província do Amazonas. Blog História Inteligente, 04/09/2023. Disponível em: https://historiainte.blogspot.com/2021/09/a-antiga-casa-da-camara-municipal-e.html fbclid=IwAR3qUcvV7Ixt0Bu_mUKXQkqYzHdlNQE2NEHZCZlfKcFzCqvoAMRq4HTAS_k

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

"Imitadores do belo sexo": travestis na Manaus da Belle Époque

Darwin, o travesti mais famoso do Brasil no início do século XX. Em 1916 realizou algumas apresentações em Manaus. Fonte: Revista de Theatro e Sport, RJ, 26/08/1916.

Travesti, de acordo com a empresa de consultoria em diversidade Transcendemos, “é uma pessoa que foi designada homem no seu nascimento, mas se entende como uma figura feminina”. Por muito tempo a palavra, de maneira pejorativa e transfóbica, esteve associada à prostituição (TRANSCENDEMOS, s. d.). Com o avanço da luta de grupos LGBTQIAPN+, ele vem sendo ressignificado como uma forma de resistência. O Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. Em 2022, conforme levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), foram assassinadas 131 pessoas trans, mas é possível que o número seja ainda maior dada a sub notificação. Escrevi esse texto buscando compreender como elas eram vistas e viviam na Manaus do início do século XX, período marcado por um turbilhão de transformações.

Por muito tempo a homossexualidade e a travestilidade foram analisados apenas do ponto de vista religioso, entendidos como pecados que atentavam contra a obra do criador. A partir da segunda metade do século XIX, tornaram-se objetos de estudo da medicina, que as definiu como “distúrbio, anomalia, carecendo de cura, correção” (MOREIRA, 2012, p. 263). O professor Adailson Moreira, em estudo sobre a homossexualidade no Brasil do século XIX, registra que “As práticas sexuais passaram dos domínios da religião para os da ciência, com sua postura higienista” (MOREIRA, 2012, p. 256). Naquele contexto de transformações políticas, econômicas e urbanas, os “desvios” deveriam ser combatidos em nome de uma sociedade sadia, burguesa e heteronormativa.

Uma das primeiras apresentações de transformistas em Manaus ocorreu em 1899. Em 18 de janeiro daquele ano os jornais Commercio do Amazonas A Federação noticiaram que se apresentaria brevemente no Teatro Amazonas o transformista português José Minuto, discípulo do artista italiano Leopoldo Fregoli (1867-1936). O espetáculo ocorreu no dia 23 de janeiro. Dentre os inúmeros personagens, Minuto interpretou mulheres. Os dois periódicos publicaram críticas diferentes entre si. O Commercio do Amazonas informou que a presença de público foi pequena e que o transformista “representou muito correctamente, colhendo enthusiasticos applausos” (COMMERCIO DO AMAZONAS, 26/01/1899, p. 02). A Federação afirmou que o público manauara desconhecia o gênero apresentado, estando bastante ansiosa para vê-lo. Em tom de lamento, registrou que a apresentação ficou muito abaixo do esperado: “Minuto, porém, pelo que ante-hontem tivemos occasião de ver, não merece quanto delle por ahi se apregôa” (A FEDERAÇÃO, 25/01/1899, p. 01).

O Carnaval era uma época propícia para a inversão dos sexos sem medo da repressão policial, pois tratava-se apenas de uma “brincadeira”. Em uma sociedade que reprimia com violência o diferente, era o momento perfeito para se libertar das amarras. O jornal Correio do Norte, em crônica sobre as festividades de 1906 em Manaus, registrou a presença de um travesti em um carro alegórico que passava pela avenida Eduardo Ribeiro: “Um máscara, em trajes femininos, saltou em terra. Trajava um vestido liso, de cor escura, e sobre elle um bello avental de tiras bordadas, sombreadas de azul. Um lenço de seda branco, dobrado em diagonal, occultava-lhe os cabellos, - systema usado pelas criadas estrangeiras” (CORREIO DO NORTE, 15/04/1906, p. 01).

Na edição de 08 de novembro de 1916, o Jornal do Commercio, na seção Diversões, anunciou que na próxima semana estrearia, no Cine Polytheama, a “troupe de variedades” dirigida por Alfredo Albuquerque. Uma de suas atrações era Darwin, famoso “imitador do bello sexo” (JORNAL DO COMMERCIO, 08/11/1916, p. 01). No dia 11 o periódico voltaria a divulgar o evento, descrevendo Darwin como “notavel imitador do bello sexo”, dono de um “lindíssimo guarda-roupa” (JORNAL DO COMMERCIO, 11/11/1916, p. 04). As expectativas para sua apresentação eram grandes, pois àquela altura ele era considerado o melhor travesti do país. Um dia antes do acontecimento, o JC publicou que “O celebre e admiravel artista Darwin, o mais perfeito e luxuoso imitador do bello sexo, estreará, amanhã, no palco desse theatro” (JORNAL DO COMMERCIO, 17/11/1916, p. 01). No dia 18 ele publicou um anúncio com a foto do artista:

Colossal e estrondoso sucesso com a grandiosa estréa do celebre artista de fama mundial DARWIN o mais perfeito e admiravel imitador do bello sexo, com um repertorio de primeira ordem e luxuosissimo guarda roupa. DARWIN é simplesmente admirável! NÃO TEM RIVAL!! Números novos todas as noites!

E’ de tal ordem a perfeição do trabalho de DARWIN que um jornal da Capital Federal termina assim um dos seus elogios ao grande artista: “E’ o caso de perguntar-se: Darwin será realmente um homem imitando a mulher em scena ou será uma mulher fazendo-se passar por homem fora do palco?” (JORNAL DO COMMERCIO, 18/11/1916, p. 04).

Por que utilizo o artigo 'o' e não 'a' travesti? O utilizo levando em conta a trajetória de Darwin e a forma como se identificava. Nas entrevistas que deu a jornais do Rio de Janeiro, onde realizou suas principais apresentações, nunca se identificou com o gênero feminino. Dizia sempre estar feliz com o seu sexo, apesar das especulações, como registrou o Jornal do Brasil (KOCH, 2022).

No dia 20 Darwin participou de um espetáculo em homenagem à colônia italiana da cidade. No dia seguinte o JC escreveu que ele se apresentaria novamente no palco do Polytheama, e que estava obtendo “ruidoso sucesso” (JORNAL DO COMMERCIO, 21/11/1916, p. 01). Ele fez novas apresentações nos dias seguintes, como consta em anúncio de 24 de novembro de 1916: “Darwin. O celebre e inexcedivel imitador do bello sexo em novos e deslumbrantes numeros do seu encantador repertorio” (JORNAL DO COMMERCIO, 24/11/1916, p. 04). A apresentação do dia 24 foi a última referência encontrada sobre sua passagem por Manaus. De acordo com as publicações do Jornal do Commercio, ele foi bastante aclamado pelos espectadores, dando provas do estrondoso sucesso que vinha fazendo no Sul do país e na Europa.

Anúncio da apresentação de Darwin no Cine Polytheama. Fonte: Jornal do Commercio, Manaus, 18/11/1916.

Entre 1919 e 1928 foram exibidos no Cine Polytheama filmes protagonizados pelo transformista estadunidense Julian Eltinge (1881-1941): o drama A Tentadora Condessa, um deleite “Para os que apreciam o transformismo, que, quando feito com esmero é uma verdadeira arte” (JORNAL DO COMMERCIO, 03/09/1919, p. 04); Madame Carfax, “na qual aquelle habil transformista americano tem uma extraordinaria creação no sexo opposto” (JORNAL DO COMMERCIO, 01/01/1920, p. 04); e Madame Charlston, descrito como “Uma encantadora história de amor” (JORNAL DO COMMERCIO, 31/10/1928, p. 04).

Julian Eltinge (1881-1941), protagonista de filmes exibidos em Manaus entre 1919 e 1928. Fonte: memoriascinematograficas.com.br.

A travestilidade, deve-se destacar, só era tolerada a nível artístico, em cinemas, teatros e boates. O historiador Wellington do Rosário de Oliveira, em estudo sobre travestilidade e gênero, afirma que “O problema é que a tensão aumentava à medida em que esses indivíduos deixavam esses espaços para se tornarem figuras públicas. Com isso, coube à polícia intervir e a imprensa remediar com o intuito de “limpar a cidade” contra os “maus costumes” (OLIVEIRA, 2021, p. 85). Fora dos palcos, os travestis e homens afeminados eram sistematicamente perseguidos e criticados respectivamente. Na seção de moda do Jornal do Commercio de Manaus, foi publicado em 1926 um artigo sobre as roupas femininas e masculinas. O autor criticou com bastante veemência a aparência dos novos chapéus masculinos, afirmando que eles estavam parecidos com os das mulheres: “O que se dá com os vestidos acontece com os chapéos, sendo mais notavel o facto de querer o sexo barbado tambem adoptar o systema ridículo para imitar as mulheres” (JORNAL DO COMMERCIO, 16/05/1926, p. 06).

No Código Penal Brasileiro de 1890, promulgado em 11 de outubro pelo presidente Marechal Deodoro da Fonseca, foi determinado no artigo 379 do sétimo capítulo, intitulado Do uso de nome supposto, titulos indevidos e outros disfarces, que “Disfarçar o sexo, tomando trajos improprios do seu, e trazel-os publicamente para enganar” (DECRETO N° 847, 11/10/1890) era crime, punível com prisão de 15 a 60 dias.

Os jornais atuavam como órgãos defensores do saneamento moral da sociedade, apresentando às autoridades soluções para acabar com as “classes perigosas” (pobres, doentes, prostitutas, negros, homossexuais). A Marreta considerava, em 1912, que “Os invertidos de Manáos são de indole perversa, corruptos de natureza, excessivos e bandidos”, e apresentava o isolamento como resposta: “Pode-se arranjar uma ilha, e nella colocar os invertidos, obrigando-os a trabalhos forçados” (A MARRETA, 03/11/1912, p. 01). Para O Chicote, em 1913, a homossexualidade era um vício cujo crescimento estava desenfreado na cidade. Ela “desce do alto, arrasta na onda a infância inexperiente e atira para as esquinas dos cinemas e sombras propicias dos jardins publicos as figuras amarellentas e repulsivas dos “brizas”. Em tom de apelo, afirmou que era necessário bani-los da cidade, uma “urbs” aquatica para uns e Sodoma e Gomorrha para outros” (O CHICOTE, 02/08/1913, p. 01).

Travestis como Darwin, que encantou os palcos brasileiros e manauaras no início do século XX, só eram “aceitos” enquanto objetos de curiosidade e divertimento. A partir do momento que quiseram viver livremente, deixar suas marcas do mundo e desenvolver suas próprias sociabilidades, passaram a ser vistos como uma ameaça, um mal a ser debelado a qualquer custo. Quantas mudanças em mais de um século. Em 2017 foi fundada em Manaus a Associação de Travestis, Transexuais e Transgêneros do Estado do Amazonas (ASSOTRAM), uma importante vitória fruto de décadas de lutas. Hoje travestis ocupam lugares de destaque na sociedade: realizam pesquisas nas universidades, militam em associações e fiscalizam o governo na câmara dos deputados federais.

FONTES:

Commercio do Amazonas, 26/01/1899.

A Federação, 25/01/1899.

Correio do Norte, 15/04/1906.

A Marreta, 03/11/1912.

O Chicote, 02/08/1913.

Jornal do Commercio, 08/11/1916.

Jornal do Commercio, 11/11/1916.

Jornal do Commercio, 17/11/1916.

Jornal do Commercio, 18/11/1916.

Jornal do Commercio, 21/11/1916.

Jornal do Commercio, 24/11/1916.

Jornal do Commercio, 03/09/1919.

Jornal do Commercio, 01/01/1920.

Jornal do Commercio, 16/05/1926.

Jornal do Commercio, 31/10/1928.

131 pessoas trans foram assassinadas no Brasil, aponta dossiê. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2023/janeiro/131-pessoas-trans-perderam-a-vida-em-2022-no-brasil-aponta-dossie.

Decreto n° 847, de 11 de outubro de 1890. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

MOREIRA, A. S. A homossexualidade no Brasil no século XIX. Bagoas: Revistas de Estudos Gays, v. 6, p. 253-279, 2012.

OLIVEIRA, Wellington do Rosário de. Travestismo, gênero e arte do disfarce: uma análise das narrativas periódicas sobre sujeitos em travesti no Rio de Janeiro (1912-1927). Revista Semina, Passo Fundo, vol. 20, n. 3, p. 75-00, set-dez 2021. Semestral.

O que é uma pessoa travesti? Disponível em: https://transcendemos.com.br/transcendemosexplica/trans/.

KOCH, Jandiro. Darwin: "imitador do belo sexo" transita pelos teatros brasileiros. Grafia Drag, 07/02/2022. Disponível em: https://www.ufrgs.br/grafiadrag/tag/darwin/

sexta-feira, 21 de julho de 2023

Entrevista: Professor Dr. Bruno Miranda Braga

Bruno Miranda Braga nasceu em Manaus, Amazonas. Historiador e geógrafo, tem graduação em História pelo Centro Universitário do Norte (Uninorte) e Geografia pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA), com especializações em Gestão e Produção Cultural pela UEA e Estudos Amazônicos pela Universidade de Brasília (UnB), mestrado em História pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e doutorado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Foi professor substituto na graduação em História da UFAM e pesquisador no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, o MASP, no Projeto MASP Pesquisa. Atualmente é membro do Núcleo de Estudos em História Social da Cidade – NEHSC, da PUC-SP, e do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), ocupando a cadeira n° 38, cujo patrono é o etnólogo alemão Karl von den Steinen.

Primeiramente, muito obrigado por ter aceitado o convite para conceder essa entrevista, que faz parte de um projeto de conversas com historiadores amazonenses. Para iniciarmos, que tal você falar um pouco sobre sua origem e família?

Eu que agradeço o convite, Fábio. Então, eu sou manauara, filho de uma parintinense (por isso meu amor pelo Caprichoso, risos) e um manauara. Bem, minha mãe Sônia Miranda é professora de educação básica, foi por anos alfabetizadora e mais tarde graduou-se em Letras Língua e Literaturas Portuguesa e Espanhola. Hoje não exerce mais o magistério. Já meu pai, Valmir Braga, é funcionário público aposentado, foi industriário boa parte da vida, depois foi funcionário público do estado até se aposentar. Eu sou o filho caçula dos dois. Desde cedo quis ser professor, demorei a decidir as áreas da Licenciatura que queria, mas durante meus tempos de Ensino Médio, cursado no IEA, a opção pela História e pela Geografia se confirmou. Sempre friso que não era História ou Geografia, porém História e Geografia, e assim o fiz!

A escolha das carreiras de docente e pesquisador foi uma influência familiar, já que sua mãe foi professora?

É inegável que a escolha pelo magistério teve sim profunda ligação com mamãe que é professora. Reitero que desde muito cedo, ainda criança, escolhi o magistério como mister, motivado por minha mãe. Já a questão da pesquisa foi algo que surgiu ao longo da minha graduação em história. Quando adentrei a universidade meu desejo era me formar professor. Como todo calouro, não sabia o que era “ser/ter” lato sensu, strictu sensu, menos ainda como proceder em pesquisa. Ao final da graduação já após ter feito pesquisa para minha monografia, a pesquisa foi paulatinamente tomando vez em minha vida e carreira.

O vestibular é um dos momentos mais tensos na vida dos jovens, que enfrentam pressões da família e da sociedade. Muitos ainda não fazem ideia de qual área escolher. Como você encarou esse processo?

Comigo o mais difícil foi definir a aérea da Licenciatura. Já sabia que queria ser professor só não sabia de que: pensei em Pedagogia, Letras, Artes. Mas sempre na habilitação para o magistério. Sempre costumo dizer para os vestibulandos que o que mais importa é a sua realização e a sua inserção e seu gosto. Não adianta o aluno querer cursar Direito se não gosta de História ou de Ciências Políticas, ou querer cursar Medicina se não gosta de Biologia ou Anatomia. Então sempre destaco que o aluno deve considerar isso, o Ensino Médio em nosso país foi pensado para isso também, de apresentar um leque de ciências que no universo acadêmico são presença constante. Vale sempre a pena considerar suas vontades e gostos, até mesmo para no futuro não se frustrar com tanta matemática ou com tanta história na grade de seu curso. Uma dica que vale muito é verificar as grades curriculares, eu mesmo fiz isso, e dizia a meus colegas “meu curso não pode ter Matemática ou Química ou Física” que eram as temidas, por mim, exatas (risos). Então, vestibulando, veja as grades, se tem perfil para aquele métier, e considera muito sua vontade. Pois serão 4 ou 5 anos lendo, pesquisando e estudando aquela área. E se não for algo prazeroso acarretará sua eminente desistência.

A graduação é outro grande impacto. Nos deparamos com novos conhecimentos, novas abordagens, novas visões de mundo. Em outras palavras, somos praticamente desconstruídos. Conte-nos como foi o início de sua formação.

Interessante abrir um parêntese: como eu fiz duas graduações, cada uma teve um impacto diferente. Primeiramente cursei História. História de cara é um curso que a gente entra e pensa “mas cadê o Renascimento? Cadê a Segunda Guerra Mundial?” Aí vem Marc Bloch, Chartier, Boris Fausto e os autores/teóricos. Ai caímos por terra e vemos que a História por nós pensada é uma coisa, já a graduação é outra, aí começamos a aprender. Costumo dizer que sempre gostei de Teoria da História e Historiografia sem falar em História da Amazônia, tiveram assim disciplinas que foram para mim amadas, outras nem tanto (Medieval que o diga) mas de um todo a História nos impele a ser e ler mais! Creio que a leitura no Curso de História foi primordial para meu encantamento pela ciência. Adorava e ainda prezo muito em ler os textos, fazer comentários, enfim, sentir o texto. E isso fez e faz a História ser fascinante para mim. Durante a graduação foram muitos fichamentos, uns que dava raiva sim de ter de fazê-los, mas foram fundamentais. O exercício do historiador começa na nossa graduação com os fichamentos.

E por falar em textos e fichamentos, quais autores foram marcantes nesse período?

Essa pergunta é difícil viu… Muitos textos nos marcam seja pela complexidade seja pela facilidade. Mas vou te citar os que ainda hoje são referências quase em tudo que produzo: Apologia da História ou Ofício de Historiador, de Marc Bloch. A nossa Bíblia. A veemência do autor nesse texto, o amor pela História é atemporal, o capítulo da crítica histórica é para mim uma lição eterna de como ler documentos; A invenção do cotidiano I: artes de fazer, de Michel de Certeau. Tive uma dificuldade enorme em entender esse autor, mas a teoria dos “usos e práticas” me seduziu de uma maneira única, quando o autor fala em “resistência silenciosa” como sendo “mais perigosa que a barulhenta” me fez pensar que a história é sempre feita de lutas, mas que nem todos veem outros tipos de lutas e propostas de insurreições; Os fios de Ariadne: fortunas e hierarquias na Amazônia do século XIX – Patrícia Melo. O Capítulo intitulado “Bens e homens no mundo das águas” é para mim um dos maiores escritos sobre a história da Amazônia, me marcou muito, lembro que lemos na disciplina de Amazônia II, e dali em diante sabia que queria pesquisar o século XIX; A Ilusão do Fausto – Edinea Mascarenhas. Existem textos que não morrem. A Ilusão do Fausto é um deles. Obra revolucionária, quando li também em Amazônia II me confirmou a vontade de escrever algo sobre Manaus na Belle Époque, mas noutras perspectivas. Edinea nos brinda nesse texto de maneira ousada e comprometida.

Além dos célebres autores, é impossível passar pela academia sem ser marcado pelos professores e professoras, tanto positivamente quanto negativamente em alguns casos. Qual foram aqueles que você viu e pensou: quero ser assim quando crescer?

Sem dúvidas na graduação em História me marcaram os Drs. Arcangelo Ferreira e José Vicente Aguiar, ambos foram meus professores de História da Amazônia em diferentes temporalidades, e me ensinaram muito, sendo e fazendo. A Mestra Cristiane Manique foi quem me introduziu a Ciência histórica de fato. Foi minha professora de Introdução aos Estudos Históricos, Metodologia da História, Teoria da História e Laboratório do Ensino e da Pesquisa em História. Com ela em suas diferentes aulas aprendi o “grosso” da nossa ciência, como pesquisar e produzir a narrativa historiográfica, além do mais foi minha orientadora de Monografia histórica, marcando-me até o presente. Mestra Elisângela Maciel e Dra. Adriana Brito também me marcaram bastante. Mantenho ainda hoje boas relações com ambas se tornando amigas de profissão com muita cordialidade.

Você tem formação em História e Geografia, duas das principais ciências humanas, que mantém um diálogo bastante profundo. Como enxerga essa relação?

Penso que uma completa a outra e ambas completam a cultura e a sociabilidade. História se dedica aos homens no tempo, Geografia, os homens no espaço. Tempo e Espaço são indispensáveis para pensar as diferentes formas de ser/fazer da humanidade. São duas categorias presentes em qualquer pesquisa. Lembro que um dia num congresso sobre a História Indígena, a conferencista falou “assim como há uma história, há também uma geografia indígena”, parafraseando-a penso que para tudo há uma história e uma geografia, e isso concerne boa parte das ciências humanas e sociais que as duas disciplinas englobam. Sou suspeito pra falar de ambas, em minha formação as duas foram primaz para pensar e estruturar meu pensamento e vertente teórico-metodológico.

Até hoje você é lembrado por sua passagem como professor substituto na graduação em História da UFAM, tido como bastante atencioso aos alunos e com uma didática e domínio do conteúdo de dar inveja. Como foram as primeiras experiências como professor?

As minhas primeiras experiências como professor de história foram desafiantes e instigantes. Comecei ministrando aulas em um famoso curso preparatório para vestibular da cidade e ali, o domínio do conteúdo e da didática se tornam essenciais. Depois me tornei professor do Plano Nacional de Formação de Professores para a Educação Básica, o PARFOR da UEA, e surgiram mais desafios: o PARFOR nos ensina muito, a dinâmica, o ritmo da viagem para o Alto Rio Negro, Alto Solimões, Calha Média do Solimões já se torna um desafio, então saber que tinham pessoas me esperando fazia-me querer ser mais, ensinar sendo, como eu gosto de apontar. Na UFAM eu concretizei no meu período de substituto uma tentativa de tornar as “disciplinas pedagógicas e didáticas” interessante aos alunos, uma vez que o curso é uma Licenciatura e muitos, ainda hoje pouco apreciam as disciplinas da formação docente, mais um desafio, fazer os alunos se interessarem pelas disciplinas didáticas. O resultado foi muito bom. Então assim, ao longo da minha breve (até aqui) carreira eu procurei e procuro verificar maneiras de ensinar sendo, a partir daí vem o domínio do conteúdo, a dinâmica, mas o ponto primevo é a didática, é pensar algo que os alunos pensem “poxa quero fazer isso quando eu lecionar”. Meus primeiros anos foram desafiantes, mas com o sentimento de estar feliz fazendo aquilo que sempre quis.

Sua dissertação de mestrado, Manáos uma Aldeia que virou Paris: saberes e fazeres indígenas na Belle Époque Baré 1845-1910, defendida em 2016, hoje é uma referência para os estudos sobre a constituição do espaço urbano de Manaus e as tentativas de apagamento e a resistência dos 'excluídos da história'. Percebo que ela dialoga com premissas postuladas por Edinea Mascarenhas Dias em a A Ilusão do Fausto, mas você buscou ir além. Qual foi o caminho trilhado em sua produção?

Sem sombras de dúvidas o proposto pelo clássico da nossa historiografia A Ilusão do Fausto da professora Edinea foi leitura inspiradora para tal feito. É uma história bem peculiar: tudo iniciou antes mesmo de eu estar na Faculdade de História. Ainda aluno no IEA, um dia olhando a Eduardo Ribeiro, a Cúpula do Teatro Amazonas e todo seu entorno das janelas da minha sala pensei “como seria isso aqui tudo no século de sua criação? Como os indígenas viviam aqui?” E fiquei com aquela questão, lembro que comentei com o professor Laerte, ícone das humanas no IEA sobre e ele me indicou o texto da professora Edinea. Li sem entender muito, era um garoto de 16 anos. Me fascinaram as imagens do texto. Já na faculdade tudo foi definido. O caminho seria o mesmo que Edinea definiu: não negar o Fausto, mas destacar que ele não foi para todos, porém todos estavam naquele espaço/tempo: indígenas, negros, escravizados, prostitutas, mendigos, doentes… o foco foi destacar o elemento indígena, que era o mais visível e o que mais tentavam esconder, porém o que mais permanecia. E na guisa da Edinea mostrar que “pobres” na Belle Époque manauara, era um termo genérico: era pobre o trabalhador urbano, o indígena, o negro, a prostituta, o doente, o migrante nordestino, o seringueiro, tudo que contrariava o belo, era pobre. E desse termo genérico, disse “vou focar nos indígenas e nos seus saberes e fazeres”, em diante tudo fluiu e foi acontecendo, começaram a aparecer nas minhas fontes indígenas de diferentes grupos, realizando diferentes coisas na cidade: sendo batizados, fugindo das obras da Igreja Matriz, tomando banho no Igarapé de São Vicente, atirando flechas no Porto, vendendo doces e “encantamentos” no Mercado, etc. A cidade estava assim para o indígena como este estava para a cidade.

Anos mais tarde você ingressou no doutorado em História na PUC-SP. Sua tese de doutorado Chão de vidas, rios de memórias: histórias indígenas do Amazonas Imperial 1845-1888, defendida em 2022, é monumental. Nela você buscou compreender o cotidiano indígena do Amazonas na época imperial, desnudando aquela ideia tradicional do 'índio genérico', como se cada comunidade não tivesse suas especificidades. Conte-nos como foi sua produção.

Foi desafiadora ao máximo. Eu sempre disse a mim mesmo que quando fosse cursar doutoramento seria com o propósito de responder antes de tudo inquietações minhas. Quando escrevi o projeto de tese me propus a compor não uma história, mas diferentes histórias que se encontravam num elemento comum: esse elemento comum eram as populações indígenas. Era uma inquietação particular em desvendar como eram/estavam os mundos indígenas no Amazonas Provincial. Se até antes nos séculos XVII E XVIII grandes historiadores já haviam mostrados os xamanismos, as lideranças, as práticas de cura e o cotidiano de diferentes etnias, me perguntava “cadê esse povo no XIX? É consenso entre os historiadores do Brasil Imperial que a questão indígena para aquele século ainda é um campo em plena construção, é algo em andamento. Nisso me filiei plenamente na História Indígena que usa de certa “sensibilidade antropológica” como diz o mestre John Manuel Monteiro, e a História Cultural, e procurei na minha tese fazer uma História dos sentimentos e sensibilidades indígenas, dei ao indígena além da voz protagonista, a ação de sujeito histórico. Sempre ouvimos falar que “os índios eram os braços do Amazonas provincial”, que “eles dependiam da província” e inverti a lógica: era a província que dependia dos indígenas para tudo: eles eram os trabalhadores das obras públicas, os guias dos rios e matas seja dos naturalistas, seja das expedições demarcatórias do Império e da Província, eles que dominavam o conhecimento das ervas e fármacos da floresta, dos peixes e frutos bons, do manejo do solo e das estações sazonais dos rios do Amazonas. Nessa lógica procurei entender como os indígenas trabalhavam, estudavam, lideravam, dançavam e festejavam. Para o Brasil oitocentista como um todo se criou uma coisa que chamo de “discurso da aniquilação” que simplesmente sumiu com os povos indígenas no XIX, atrelando a eles o estigma de “ociosos, vagabundos e preguiçosos” simplesmente pelo fato de seus fazeres serem a outros modos. Então busquei nas fontes dizer “quem eram eles”, dar nomes, aí me apareceram macuxi, wapixana, baré, werekena, parintintim, sateré, tikuna, matsé, e uma gama de povos. Procurei mostrar como cada um agia e demonstrava suas organizações. E isso está na fonte. E não precisamos, como muitíssimo bem disse John Manuel Monteiro “forçar a mão” para escrever essa história. Eles, os povos indígenas, estão nas fontes, tudo é uma questão de perspectiva de leitura e construção da narrativa. Logo me “casei” numa portentosa união com a antropologia e fiz História Cultural Indígena mostrando sobretudo sua presença em todo o Amazonas do oitocentos.

Você se define como um Historiador Cultural. A palavra cultura tem um peso fortíssimo, pois é polissêmica, dando margem a diversas interpretações e gerando debates acalorados. No entanto, sabemos que a História Cultural é um campo historiográfico que nos apresenta inúmeras possibilidades. Foi essa variedade de temas que lhe atraiu?

Então o campo da cultura é polissêmico por “abraçar tudo” como dizem alguns colegas de outras vertentes da História. As inúmeras possibilidades da História Cultural tendem a complementar os vazios do Político, do Econômico e do Social. O que mais me atraiu na História Cultural foi sua amplitude teórico-metodológica. Diferente de suas “irmãs mais velhas” como diz o historiador inglês Peter Burke, a História Cultural parte de um exercício semântico da sensibilidade: o exercício da narrativa historiográfica não tende apenas a destacar nomes, valores, monumentos e esfinges, mas verificar cheiros, sabores, rostos. Isso me seduziu na História Cultural: a possibilidade de escrever história pelos ritmos, pelas danças, pelos sentidos dos rituais indígenas, pelos rostos desses… então o que mais me atraiu e continua atraindo é essa possibilidade quase como que uma encantriz de narrar a partir de coisas que não estão grafadas, mas estão nas fontes, especialmente nas fontes imagéticas, que gosto muito de utilizar.

No início de 2022 você foi eleito membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), ocupando a cadeira n° 38 cujo patrono é o etnólogo alemão Karl von den Steinen, tomando posse hoje. Fizeram parte dessa instituição pesquisadores renomados como Arthur Cézar Ferreira Reis, Mário Ypiranga Monteiro e Agnello Bittencourt. Quais são suas expectativas ao adentrar nessa casa centenária e de que forma pretende contribuir para sua aproximação com a comunidade?

Primeiro quero destacar a alegria e honra que é tomar posse de uma cadeira nesse estimado espaço da cultura e da pesquisa da nossa cidade, a mais antiga instituição do gênero. O IGHA está presente em todos os meus textos, trabalhos e pesquisas. Seu acervo é um dos que mais utilizo desde a monografia da licenciatura. A cadeira que passarei a me assentar era a que sempre quis: Karl von den Steinen, proeminente etnógrafo alemão que em nosso país muito contribuiu para o conhecimento dos povos indígenas. Sem dúvidas é um desafio estar a posteriori dos nomes que você citou pela carga grandiosa que as pesquisas destes nos legaram. Ainda hoje é quase inconcebível findar um curso de História sem ter lido algo de Arthur Reis, de Mário Ypiranga. É difícil estudar Amazônia e não ter lido Agnello. Estar no local que eles estiveram um dia é se apropriar e gerar novidades, uma vez que eles em seus tempos nos brindaram com essas novidades. A expectativa é grande e auspiciosa, pretendo junto ao Instituto potencializar aquilo que temos e ser/fazer mais, considerar a longevidade do IGHA é apontar para as vindouras realizações do Silogeu. Espero que estando ali a comunidade acadêmica e interessada em nossa história avance, seja e faça mais. Temos tanto a pesquisar e apresentar ainda sobre nossa capital e nosso estado. Então a expectativa é de cada vez sermos mais.

Quais são seus planos futuros?

Então a pesquisa é algo que nunca para, atualmente eu estou como Especialista Visitante do CNPq num projeto educacional do Museu da Amazônia MUSA, e está sendo uma experiência muito boa. Meu plano maior é voltar ao magistério, que é minha realização maior, voltar também a “amores que deixei no caminho” por conta da tese, ou seja, finalizar umas pesquisas que ainda não findei. Colaborar com o engrandecimento do IGHA, que passará a ser minha eterna casa de pesquisa histórica. E esperar, uma das coisas que aprendi ao longo dessa minha breve trajetória até aqui, é saber esperar. Não somos nós que escolhemos a ciência, é ela que nos escolhe e acolhe. Então esperar o que a história reserva a mim (risos).

Para finalizarmos, você é um historiador jovem, mas com uma bagagem cultural e experiência imensos. Quais conselhos você dá para aqueles que almejam ser historiadores?

Leia, reserve um tempo pra você, e se atualize! Ser historiador é estar aberto a muitas possibilidades e não fechar portas. Invista em você e no seu crescimento, faça cursos, adquira livros, participe de congressos, ouse. Para mim ser historiador hoje é ousar, é saber a partir da leitura da palavra mundo, como ensinou Paulo Freire, o que dizer, o que narrar e como narrar. Ousando construímos narrativas novas, conhecemos problemas novos e concebemos metodologias novas, então ouse! Vão te criticar, vão, mas também irão te aplaudir e dizer “olha ela fez isso, ele trouxe isso…” Sempre digo que o bom historiador lê muito e nessa leitura ele constrói aliados. A importância da leitura em nosso mister é conhecer, então leia, mesmo àqueles autores/teóricos que por alguma razão tu não concordas, leia. Logo, o conselho é leia, conheça, ouse e faça! Seja a diferença e construa uma boa narrativa histórica. Não invente, não caia em sensacionalismos, o bom historiador foge disso, mas, faça um texto que ao lerem as pessoas aprendam.