sábado, 5 de abril de 2014

Um Tesouro no bairro de Educandos

Tirando a fiação, que polui a paisagem, é um belo prédio entre as esquinas da rua Manoel Urbano e Boulevard Sá Peixoto.

Depois do sucesso do artigo Casarões e Palacetes de Manaus, prometi aos leitores abordar novamente o assunto. Dessa vez vamos ao Educandos, tradicional bairro da Zona Sul de Manaus. Nesse bairro, ainda existem alguns exemplares de casarões antigos. Próximo a ponte Pe. Antônio Plácido de Souza (indo para o Centro), é possível observar, do ônibus, do carro ou até mesmo em uma caminhada, conjuntos de casas construídas entre os anos 40 e 50. O que mais impressiona é que, os moradores dessas residências, tem conservado um hábito cada vez mais difícil de se ver nas grandes cidades: No final da tarde, cadeiras na frente de casa e muitas conversas entre a família e os vizinhos.

A primeira construção, de 1956, é de autoria de Raimundo Alves de Oliveira (1906-1979), cearense que veio para Manaus em 1953 e se tornou famoso por transformar a arquitetura do Educandos entre 1955 e 1970.

Mas porquê Um Tesouro no bairro de Educandos? Um tesouro, pelo simples fato de que, a construção histórica que irei abordar, 'a Vila Cavalcante' trata-se do único exemplar de arquitetura centenária preservada que restou no bairro.

Hoje pela manhã me encontrei com Cláudio Amazonas, escritor, historiador e pesquisador sobre o bairro de Educandos. Conversamos e tirei algumas dúvidas sobre a Vila Cavalcante. Depois de algumas horas de conversa, fui tirar algumas fotos do casarão. Sobre as fotos, aconteceu um fato interessante. Enquanto eu as tirava, uma senhora que estava observando me perguntou: O que tem de tão especial nessa casa ? Eu disse que é um casarão centenário, último exemplar do bairro. Com espanto ela disse: Menino, eu não sabia, pensava que esse 1912 era o número de localização e não a data da construção.


A Antiga Vila Cavalcante

A antiga Vila Cavalcante, último exemplar conservado e um dos primeiros prédios feitos em alvenaria no bairro.

Segundo o escritor, historiador e pesquisador Cláudio Amazonas, o casarão da antiga Vila Cavalcante foi um dos primeiros prédios de alvenaria a ser construído no bairro. No início do século 20, ruas largas e arborizadas em Constantinópolis (em homenagem a Constantino Nery, governador da época), eram ocupadas por edificações parecidas umas com as outras, com uma arquitetura de origem portuguesa que lembravam chalés.

Na rua Delcídio Amaral existe a Vila Neuza, construída em 1889 (totalmente descaracterizada) e, no Boulevard Sá Peixoto a Vila Péres construída no mesmo ano (já demolida e sem registro algum). No Boulevard Rio Negro, existiram até 1988, dois lindos chalés construídos em 1906 pelo Coronel do Exército Brasileiro e diretor do Hospital Geral de Manaus, José Leandro Hermes de Araújo.

Vamos a principal edificação. No Boulevard Sá Peixoto, a Vila Cavalcante, construída em 1912, é a única dessas construções que o "tempo" não levou e mantem suas características originais.

Em cima do óculo, a data: 1912.

A antiga Vila leva o nome de uma família de seringalistas do Alto Juruá, adquirida em 1912 pelo regatão Manuel Figueiredo de Barros, que morou nela até 1935, quando a vendeu para o comerciante de estivas Joaquim Ferreira da Silva, pela importância de Rs.: 11.000$000 (onze mil contos de réis), através do recibo de 5 de maio daquele ano.

Joaquim Ferreira e a família, 1939.

Na Vila Cavalcante, sob a proteção da família Ferreira, ali residiram, entre as décadas de 40 e 50, importantes personalidades, dentre elas Siqueira Campos, primeiro governador e político de grande expressão no Estado de Tocantins, e os irmãos Denizard (advogado no Rio de Janeiro) e Deni Menezes, famoso repórter esportivo da Rede Globo de Televisão.

Na Vila funcionou, logo que foi criado, em 1924, o Grupo Escolar "Machado de Assis", e na década de 30 o escritório dos Correios, sob a chefia de dona Ivone Robert da Encarnação. Até 19 de novembro de 1990, residia ali, com os filhos, a herdeira de Joaquim Ferreira, dona Hilda, viúva de Adauto Costa, quando a propriedade passou às mãos do comerciante Américo de Souza Santos e, logo em seguida, para o comerciante Demétrio Salles.

Atualmente o prédio pertence à Fundação Santa Catarina, uma organização religiosa vinculada à Igreja Católica.

Esse casarão, assim como eu disse em Casarões e Palacetes de Manaus, é parte da história de Manaus. Graças ao bom coração de seus proprietários, a Antiga Vila Cavalcante permanece de pé. Manaus é assim, a cada caminhada uma nova descoberta a ser feita.


Cláudio Amazonas

Hoje pela manhã, eu e o escritor, historiador e pesquisador Cláudio Amazonas.

Cláudio Amazonas nasceu em 1° de maio de 1945, é jornalista, bacharel em Teologia e graduando em Docência do Ensino Superior. Trabalhou nos jornais A Crítica, Jornal do Commercio, A Notícia e Diário do Amazonas, como repórter, chargista, copy desk e editor. Foi secretário do Serviço de Loteria do Estado, chefe do setor de Comunicações, secretário geral e diretor administrativo da Centrais Elétricas do Amazonas S/A - Celetramazon; foi diretor administrativo/financeiro da Companhia de Navegação Interior do Amazonas - Conavi, diretor-administrativo/financeiro da Empresa Amazonense de Extensão Rural - Emater, pertenceu a diretoria do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado do Amazonas e suplente de Deputado Estadual.

Estreou na literatura com Memórias do Alto da Bela Vista - Roteiro Sentimental de Educandos, lançado na solenidade dos Cem Anos do Teatro Amazonas (1996), seguido de Gonçalo, o Rei da Noite - As peripécias de um certo marreteiro, premiado nacionalmente no I Concursos Literários Cidade de Manaus; Constantinópolis: Origens e Tradições, Prêmio Mário Ypiranga Monteiro, promovido pela Secretaria Municipal de Cultura e Academia Amazonense de Letras (1997). É membro da Academia de Letras e Artes de Paranapuã - Alap (Ilha do Governador/Rio de Janeiro).

É autor, ainda, de Confidências (poesia-inédito) e Reminiscências, (crônicas-inédito) e Sem Testemunhas (romance policial inédito).


Mais fotos do casarão


















terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Memória Afetiva da Cidade

CIDADE DA MEMÓRIA 

1° semestre de 2002

Por Otoni Moreira de Mesquita

Vista aérea do Centro de Manaus, 1960.

Ainda que aparentemente mergulhado em devaneio nostálgico, justifico esse meu passeio afetivo por uma cidade que mistura o vivido ao imaginado, e ainda que estejamos em outra época acredito ser possível compartilhar, mesmo com aqueles de memória mais recente. Não é preciso ter vivido aquele momento para encantar-se com seus elementos. Senão que validade teria fazer História e como explicaríamos o despertar das paixões pelas antigas civilizações; interesse pelas outras culturas, de que valeriam as reflexões que tentam, mas nem sempre evitam a repetição das mesmas ações equivocadas.

Mas o que me interessa nesse momento, é discutir que elementos despertam o interesse e encantam a imaginação, mantendo em nós a história uma coisa viva. Certamente não são as repetições de datas e nomes dos pontos decorados no grupo escolar. Penso que deve existir um momento ou um ato capaz de atiçar a fantasia e a memória, algo presente no ato de contar a história. Seria a narrativa em si, “o como”, apenas uma questão de talento que pode ser aperfeiçoado, ou algo natural e especial na postura, no timbre da voz, na sensualidade ou afeto contido gesto, não importando “o que” se conte - mentira ou verdade soam com a mesma intensidade. O certo é que há qualquer coisa que vibra e contagia, reverberando e gravado em nossa película interna. Por outro lado, penso que a imaginação é algo em nós guardado, como asas que ao receber um sopro qualquer ganham impulso e podem fazer voar.

Hoje, mesmo a academia, tende a escapar daquela história de narrativa insípida e fria, insossa para digerir, estimulando outras abordagens. A Nova História abre-se num grande leque de possibilidades: são as micros histórias, as questões regionais, situações que se restringiram a pequenos grupos locais e nem por isso deixaram de refletir o todo de uma realidade. A história oral com seus sons e tons, e as imagens trazendo momentos e personagens que já se foram. As idéias, as técnicas, a política. Indo ao tempo remoto ou vindo ao momento recente, tudo pode ser relevante. E como são tantas as lacunas, penso ser urgente recuperar tudo que nos for possível, os mais diversos aspectos da história da nossa cidade, mesmo que recente ou pessoal não importa. Ainda que pequena e aparentemente banal poderá ser algo vibrante e original. O tempo é como um grande incêndio, passa devorando tudo que não fica protegido, não basta reter em nossas memória, é preciso compartilhar, deixando para o futuro.
            
Penso assim por lembrar de significativos momentos passados no 4o ano primário, quando a professora Aurelina, uma gaúcha de longa trança negra nos fazia cantar: o “terra dos Barés, dos igarapés...”, falava dos rios colossais, contava do ciclo áureo da borracha, mostrando diferentes aspectos da cidade, lembrando da riqueza marcada na fachada dos prédios antigos; da instalação da eletricidade e dos bondes como uma novidade que chegou à poucas cidades.

Aqueles momentos não desbotaram, ficaram em mim gravado, e penso que modelaram uma espécie de arquétipo da cidade que fui construindo, misturando ao vivido e ao imaginado. Desde então, carrego e monto uma cidade cuja matéria, pode não corresponder precisamente à verdade que temos na razão. Nesse espaço abstrato, que é bem a cara da gente, guarda-se de tudo, coleções de pequeninos fatos, assim como fragmentos e traços do material. Arquivos que retém o cheiro da chuva no barro, o gosto das suculentas  pitanga do cemitério, o canto triste das cigarras nas pitombeiras do fim do dia. Não é um cenário que pode ser desmontado, ou somente uma montagem de diferentes temporalidades, nem esquema, nem réplica da cidade, são apenas representações, e mesmo que apontem para diferentes direções, funcionam como bússola a nos guiar.

Penso que a lembrança desse fato pode remeter diretamente ao papel assumido pelas narrativas na construção e permanência de mitos e heróis. Ciclicamente eles necessitam ser rememorados, remontados, ganham corpo e vontade, dando sentido à existência, sustentando e fortalecendo a cultura que os gerou. Caso contrário serão apagados e esquecidos como qualquer mortal. Parece-me que somente na circularidade do sistema adotado são capazes de existir essas entidades. Como aplicar isso à cidade? Será que apenas nossas imagens colecionadas e meia dúzia de significados são suficientes para dar sentido e manter viva a alma da cidade?


Otoni Moreira Mesquita nasceu em Autazes-AM, em 27 de junho de 1953. É artista plástico e professor da Universidade Federal do Amazonas. Formado em jornalismo (1979 - UFAM) e em Gravura (1983 - Escola de Belas Artes - UFRJ). É mestre em Artes Visuais e História e Crítica da Arte (1992 - UFRJ). De março de 1997 a dezembro de 1998, atuou como coordenador do Patrimônio Histórico, da Secretaria de Cultura e Estudos Amazônicos. É doutorado em História Social pela UFF, concluido em 2005 com o trabalho O Mito de progresso na refundaçao da cidade de Manaus: 1890/ 1900. Livros publicados: La Belle Vitrine: Manaus entre dois tempos - 1890/1900 (2009) e Manaus: História e arquitetura - 1852/1910 (3 edições. 1997, 1999 e 2006).







CRÉDITO DA IMAGEM: www.manausdeantigamente.blogspot.com.br


domingo, 2 de fevereiro de 2014

A Família Romana

Família Romana. Lawrence Alma-Tadema.

A vida familiar na Roma Antiga era bastante conturbada. As separações entre casais eram comuns, e geralmente as crianças ficavam com o pai. Durante toda a vida, uma pessoa poderia se casar inúmeras vezes, como indicam várias inscrições funerárias da época.

Os romanos não tinham um termo específico para designar o que chamamos “família”. A palavra familia englobava todos aqueles que viviam sob a autoridade do pater familias, crianças e adultos, homens e mulheres, livres e escravos. Empregavam também a palavra domus (casa) que representava todos que moravam em uma mesma habitação.

Em Roma existiam três estruturas distintas: a família nuclear, a tríade pai-mãe-filho; a família ampliada – várias gerações que coabitavam sob a autoridade do patriarca; e finalmente a família múltipla, que congregava pessoas e outras famílias nucleares unidas por contratos de casamento.

Nas classes médias e populares as famílias eram muito mais estáveis do que na aristocracia. Nas inscrições funerárias há elogios freqüentes às mulheres que viveram em paz com seus maridos durante 20, 30, até 60 anos. Mas também existiram famílias reconstituídas. A morte de um dos cônjuges levava o sobrevivente a assumir uma nova união. Alguns documentos mencionam mulheres que foram casadas várias vezes.

Já nas classes dominantes, o casamento era equivalente a um acordo político. Não significava uma aliança afetiva, mas obedecia, na maior parte das vezes, às flutuações táticas das forças atuantes. Muitos dos homens (e das mulheres) influentes de Roma tiveram várias uniões. Sylla, Pompeu e Antônio esposaram cada um cinco mulheres; os imperadores Calígula e Cláudio se casaram cada um quatro vezes. Entre as mulheres, o recorde parece pertencer a Vistilia, mãe do grande general da época de Nero, Corbulão: ela teve sete filhos de sete maridos em um período de 20 anos.

A mulher podia pedir o divórcio sem ter de se justificar. O divórcio tornou-se uma prática tão banal na alta sociedade romana que Sêneca estigmatizou suas concidadãs: “Elas se casam para se divorciarem, e se divorciam para se casarem”. Messalina aproveitou a ausência do marido, o imperador Cláudio, para se declarar divorciada e celebrar seu casamento com o amante Silius.

Algumas vezes essas uniões firmadas em uma contingência política provocaram situações escabrosas. Pompeu esposou em terceiro matrimônio a nora de Sylla, Aemilia, que estava grávida de seu primeiro marido, Acilius Glabrio. Mas isso não impediu que ela se instalasse na casa de seu novo marido. Pouco depois, morreu ao dar à luz um menino, que foi imediatamente transferido para a casa de seu pai natural. Augusto, cuja mulher Escribônia estava grávida, apaixonou-se loucamente por Lívia, que também estava grávida, e era casada com Nero. Augusto esperou que Escribônia desse à luz sua filha Júlia para repudiá-la no próprio dia de seu parto. Em seguida, casou-se com Lívia que deu à luz em sua casa.

Desde o fim da República, a antiga fórmula de casamento que submetia a esposa ao marido caíra em desuso. A mulher casada continuava legalmente independente, até mesmo no campo financeiro. O dote, que consistia em moedas, jóias, prataria, mobiliário, terras e escravos, era confiado ao marido, mas somente sua renda podia ser empregada para a vida do casal. Em caso de divórcio ou viuvez, a mulher recuperava integralmente seu dote. Ela também tinha o direito de legar seus bens a quem desejasse. Só quando o adultério era o motivo do divórcio o marido ficava com uma parte do dote.

As crianças eram as que mais sofriam com as sucessivas uniões de seus pais. Em caso de divórcio, geralmente elas eram separadas da mãe, ficando sob guarda paterna. As madrastas deviam garantir a educação de seus enteados, muitas vezes tão jovens quanto elas. Os irmãos e irmãs nascidos de um mesmo pai eram educados juntos, mas não mantinham vínculos com os filhos que suas mães tinham de outras uniões.

As crianças órfãs de pai se encontravam em uma situação ainda pior: deveriam ficar com a família paterna ou poderiam se unir à de sua mãe? Com 3 anos, o pequeno Nero perdeu seu pai enquanto sua mãe estava exilada em Roma. Morou com sua tia paterna, Domitia Lépida, que se desinteressou da criança e a confiou a dois escravos, um dançarino e um barbeiro. Quando Agripina retornou do exílio, casou-se com Sallustius Crispus, e em seguida com o imperador Cláudio, trazendo o filho para morar com eles. Mas a sorte de Nero não melhorou: novamente sua educação foi entregue a dois escravos.

No entanto, há casos de reagrupamentos familiares mais felizes. A irmã do imperador Augusto, Otávia, cuidou ao mesmo tempo de seus próprios filhos e dos que seu marido Antônio teve de outras uniões. A “família” de Otávia se compunha de três filhos de seu primeiro casamento, de suas duas filhas nascidas de Antônio, dos dois filhos de Antônio e de Fúlvia e dos três filhos de Antônio e Cleópatra.

O concubinato era uma forma de casamento inferior entre uma mulher livre que vivia com um homem sem ser sua esposa. Era proibido ter ao mesmo tempo uma esposa e uma concubina. Mesmo assim, o concubinato era freqüente, sobretudo entre escravas libertas e seus antigos donos. Muitas vezes os homens das classes superiores uniam-se a uma concubina após terem sido casados regularmente uma ou duas vezes.

Outra forma de união, o contubernium ou “coabitação”, ocorria quando um dos membros era de origem servil. Era, em particular, o caso das uniões entre escravos, que podiam ser tão estáveis quanto os casamentos dos homens livres. Além disso, sempre existiram relações entre o patrão e as mulheres escravas, consentidas ou não. O mesmo acontecia entre mulheres livres e homens escravos.

A criança nascida dessas relações não era reconhecida pelo pai. Seguia a condição da mãe: o filho de uma escrava era escravo, de uma mãe livre, era livre. O pai não tinha nenhuma obrigação de alimentá-la e a excluía de sua herança. O único modo de o pai obter o pátrio poder era adotando-a.

pater familias tinha o direito de modificar a composição da família suprimindo as crianças que não desejava ou adotando um filho para sucedê-lo. Muitas razões, em particular para os pobres, que enfrentavam dificuldades para alimentar muitas bocas, podiam levar o pai a não reconhecer um filho, mesmo legítimo. Isso era praticado em todas as classes sociais e atingia principalmente as filhas. O futuro imperador Cláudio abandonou sua filha Cláudia, pois suspeitava que ela era fruto dos amores adúlteros da mulher com seu escravo liberto Boter. Uma criança abandonada podia ser recolhida para ser adotada. Na maioria das vezes, no entanto, estava destinada à escravidão. Essa prática só foi revogada no século IV.

Uma família precisava de um filho homem para receber em herança os bens do pai e garantir a permanência do culto das divindades da casa. Na ausência de filhos, era necessário recorrer à adoção de um rapaz que, na maioria das vezes, já tivesse atingido a idade adulta. 
Nos meios mais populares, os homens que não tinham descendentes adotavam, muitas vezes, um de seus escravos libertos.

Por múltiplas razões, a família nuclear em Roma estava ameaçada por rupturas e reconstituições constantes. As crianças eram as principais vítimas dessa situação. Felizmente para elas, a estabilidade era garantida por aqueles a quem eram confiadas, as amas e os nutritores (pais babás) que não as deixavam durante todo o período da infância. Eles eram chamados pelas crianças de tata (papai) e mama (mamãe), e muitas vezes esses pais substitutos ficavam toda a vida ao lado de seus antigos protegidos.

O surgimento do cristianismo modificou a concepção romana de família e rompeu com as práticas matrimoniais do mundo pagão. Apoiandose em textos dos Evangelhos (“Que o homem não separe o que Deus uniu”) e das epístolas paulinas (“Que a mulher não se separe de seu marido... e que o homem não repudie sua mulher”), os Pais da Igreja declararam a obrigação da monogamia e a indissolubilidade do casamento, proibindo o divórcio.

Durante o primeiro milênio, o casamento permaneceu um assunto no qual a Igreja não intervinha. Foi somente em 1215, quando do concílio de Latrão IV, que o casamento se tornou o sétimo sacramento da Igreja católica e se transformou em um ato público efetuado em uma igreja diante de um religioso.

No entanto, com a queda do Império Romano no início do século V, o direito germânico se sobrepôs ao romano e introduziu novas práticas entre as famílias. A poligamia era muito arraigada entre os germânicos: ao lado da esposa legítima, geralmente o homem tinha esposas secundárias, as friedlehe (promessas de paz) e concubinas escravas.

Carlos Magno teve cinco esposas legítimas e ao menos quatro concubinas oficiais. Todas essas mulheres lhe deram 17 filhos ou mais. Esse pai tão afetuoso nunca se separou de sua numerosa prole: quando viajava, todos os filhos cavalgavam a seu lado e as filhas seguiam acompanhadas por guardacostas. Carlos Magno amava tanto suas filhas que não conseguia decidir- se a concedê-las em casamento. Desse modo, permitiu que se tornassemfriedlehes de amantes que moravam com elas. A mais velha, Rotrude, vivia com Orgon, duque do Maine, com quem teve um filho. No palácio de Aix-la-Chapelle, coabitavam, sob a autoridade de Carlos Magno, várias mulheres e concubinas, filhos legítimos e bastardos, amantes das filhas, netos, sem esquecer sua mãe Berta, que morreu com idade avançada. Todo esse pequeno mundo viveu mais ou menos em harmonia, sem suscitar reprovação pública especial.

Podemos nos perguntar como, em uma época em que o cristianismo determinava a indissolubilidade do casamento, as separações eram tão freqüentes. Os divórcios, muitas vezes decididos para que se concluíssem alianças mais vantajosas, eram disfarçados em anulações por esterilidade ou adultério da mulher. Outros casais utilizavam habilmente “o obstáculo proibitivo do parentesco”: o direito germânico proibia o casamento entre pessoas até o sétimo grau de parentesco. Não era muito difícil provar que se tinha uma ligação de parentesco distante com a mulher de que se buscava a separação.

As crianças nascidas de uniões paralelas tinham o status de bastardos e eram afastadas da herança paterna, mas viviam com o pai. Essa ilegitimidade não impedia que muitas delas fizessem uma bela carreira. Carlos Magno nasceu quando a mãe, Berta, era apenas a concubina de seu pai Pepino, o Breve. Foi legitimado mais tarde, quando os dois se casaram.

Durante a segunda metade do primeiro milênio, enquanto a religião cristã impunha a monogamia e a indissolubilidade do casamento, a poligamia ainda era comum. A partir do século X, essa situação tornou-se pouco a pouco obsoleta. No final do primeiro milênio, de fato, a Igreja ocupou uma posição preponderante na sociedade e impôs seus princípios primeiramente ao povo, depois à nobreza.


FONTES: Adaptado de - Famílias nada tradicionais. Texto de Catherine Salles. História Viva. n. 59. set. 2008.

CRÉDITO DA IMAGEM: http://www.pedagogia.com.br/

sábado, 18 de janeiro de 2014

Do que Morriam os Brasileiros ?


 Cemitério da igreja N. Sra. do Carmo, Ouro Preto.


Existiram épocas em que os brasileiros morriam de maneira ridícula. As mortes iam desde cupim nos pés a cãibra no sangue. Essas informações, que chegam a ser engraçadas, estão presentes nos livros de óbitos brasileiros escritos até meados do século 19.Na época, as pessoas responsáveis por determinar a causa mortis eram os padres, que não tinham muita noção do que faziam. As causas chegavam a atestar simplesmente que a vítima "faleceu de repente".

Por mais de 300 anos, os defuntos foram enterrados dentro ou nos arredores das igrejas brasileiras. "Ser sepultado nas dependências das paróquias ajudaria a chegada ao paraíso", diz o historiador Luís Soares de Camargo, um dos pesquisadores que estudam o tema. Com o passar do tempo, a prática passou a ser contestada por médicos sob a alegação de que as tumbas próximas da população eram um risco para a saúde da população. Assim, os enterros passaram a ser realizados nos cemitérios públicos, construídos a partir de 1850. "Já nessa época havia pressão dos intelectuais para que os corpos fossem examinados por médicos, não mais por párocos, em virtude do rigor científico", afirma o historiador. Os sepultamentos em paróquias passaram a ser proibidos em 1889, com a Proclamação da República. E, junto com eles, acabou o humor involuntário nos atestados de óbitos.


DE QUE MORRIAM OS BRASILEIROS ?

(Ano - Nome - Causa Mortis)

1768 - Maria Antônia - Alienação dos sentidos.

1771 - Cônego Tomé Pinto - Subitamente porque o acharam morto na cama.

1859 - João - Cãibra no sangue.

1860 - João (escravo) - Congestão cerebral.

1860 - Francisco Antonio - Cupim nos pés.

1861 - Maria Joana das Dores - Apressadamente.

1861 - Hermenegildo - Morte repentina envolto em cetim vermelho.

1862 - Joaquim de Jesus - Ataque cerebral.

1862 - João Baptista - Mal de fogo.

1862 - Prixa - Quebradeira de espinhaço.

1868 - João - Marasmo.


FONTE: Morreu de quê?!. Texto de André Larcher. Revista Superinteressante. Ed. 220. 7 Dez. 2005.


CRÉDITO DA IMAGEM: http://www.trekearth.com - foto de Maurício Patelli.
 

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Recife nos Tempos da Cólera

Rua da Cruz, Recife, 1855.

O primeiro caso de cólera na capital de Pernambuco foi registrado em 28 de janeiro de 1856. A vítima faleceu em apenas 24 horas. Todos os esforços empreendidos por médicos e autoridades locais para deter o avanço da doença foram inúteis. Isso foi só o começo: nos três primeiros meses daquele ano, o cólera matou 3.338 moradores do Recife, o equivalente a cerca de 5% da população.
Desde 1849 até então, haviam sido registrados 11 surtos epidêmicos na cidade do Recife, sendo os mais graves os de febre amarela (de 1849 a 1852) e esse de cólera. A constância das epidemias denunciava a insalubridade do ambiente urbano, que se tornou alvo dos higienistas e das autoridades provinciais de Pernambuco ao longo de todo o século XIX.
Os caminhos que o cólera seguiu pelo mundo desde a sua origem revelam a insalubridade das cidades e a falta ou a precariedade dos serviços públicos de esgoto e de abastecimento de água como principais fatores de proliferação da doença. O delta do Rio Ganges, na Índia, é considerado o local de origem das pandemias de cólera ocorridas nos séculos XIX e XX. Suas águas serviam de cenário para rituais de purificação ligados à vida e à morte, que criavam as condições propícias para a disseminação da doença.
Mesmo banhado por dois rios, o Capibaribe e o Beberibe, o Recife ainda não era provido de água potável suficiente para toda a população, já que ambos os rios são invadidos pelo mar até duas léguas – aproximadamente 12 quilômetros – acima de sua foz, além de sofrerem com o despejo de dejetos. Assim, os habitantes da cidade consumiam água das cacimbas e dos poços ou mandavam buscá-la no Monteiro ou em Beberibe, de onde era transportada por escravos em canoas reconhecidamente desprovidas de higiene.
O acesso limitado às redes de esgoto, a destinação imprópria dada ao lixo e a oferta insuficiente de água tratada formavam um quadro de má gestão do ambiente, contribuindo para a epidemia de cólera. Muitas medidas foram tomadas para evitar que a doença se alastrasse nessas condições tão propícias. Uma delas foi o controle do movimento portuário. A Provedoria de Saúde do Porto do Recife sugeriu ao governo provincial que os navios vindos de lugares infectados fossem submetidos a uma quarentena de observação, devendo os passageiros seguir para o lazareto da Ilha do Pina – estabelecimento destinado ao controle sanitário que abrigava pessoas que podiam ser portadoras de moléstias contagiosas. Lá, elas disporiam de acomodação e assistência médica.
Essa medida não foi bem-aceita pelos viajantes e pela população. Por isso a Vigilância Sanitária do Porto pediu a colaboração da força policial para que fosse posta em prática. O local permaneceu guardado por sentinelas, para evitar que possíveis infectados deixassem o lazareto e circulassem pelas ruas da cidade antes do término do tempo previsto para o isolamento. Outra medida adotada foi a exigência de apresentação de uma carta de saúde no ato da entrada do navio, comprovando o estado do porto de onde ele procedia.
Mas essas providências não impediram a chegada da epidemia,obrigando o governo provincial a decretar “estado de peste”. Cerca de 15 hospitais provisórios exclusivos para coléricos foram instalados em toda a cidade, evitando os riscos de contágio advindos do deslocamento e da concentração de muitos doentes em um espaço confinado. A preocupação com o contágio também levou à criação de uma companhia de desinfetadores, que deveriam se deslocar para os lugares onde aparecessem novos casos da doença com utensílios e agentes químicos necessários para realizar uma desinfecção imediata.
Outro problema era a resistência da população à hospitalização, o que levou a Comissão de Higiene a pôr em prática uma campanha de isolamento dos doentes em suas próprias casas e de desinfecção. Os agentes de saúde contavam com o apoio da polícia para garantir o cumprimento das medidas sanitárias e das quarentenas impostas.Contudo, os focos de contágio, sobretudo dos mocambos – habitações mais humildes e rústicas –, estavam espalhados pelo Recife inteiro, inclusive pelos bairros mais urbanizados. Isso levou as autoridades a adotar um plano de higienização da cidade, com o objetivo de limpar as ruas, as praias, as praças, os mercados, o cais e todos os locais públicos onde houvesse entulhos e alagados. As fontes de água potável também passaram a ser rigorosamente policiadas, sendo proibida a lavagem de roupas e de animais. 
Durante a epidemia de 1856, os sepultamentos, antes cercados de pompas fúnebres, eram realizados rapidamente, por sugestão da própria Comissão de Higiene. Na capital e no interior da província, a população foi tomada pelo pânico. Muitos fugiam na tentativa de evitar a contaminação. Em meio ao desespero, abandonavam os parentes doentes à própria sorte e, por vezes, chegavam a deixar os cadáveres insepultos. A epidemia não só matava como provocava medo e desordem.
Em todo o Brasil, nos anos de 1855 e 1856, cerca de 200.000 vidas foram ceifadas pela doença. Até então, nenhuma epidemia vitimara tanta gente no Brasil. Revisitar esse passado permite repensar a falta de compromisso das autoridades com seu dever de propiciar a infraestrutura necessária à manutenção de um meio ambiente mais salubre e livre de doenças como o cólera, sinônimo de subdesenvolvimento.  

FONTE: Revista de História da Biblioteca Nacional. Recife nos tempos do cólera. Texto de Rosilene Gomes Farias. Ano 7. N* 82. Julho de 2012.


CRÉDITO DA IMAGEM:  http://www.gibanet.com

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

O Grande Baile em Manaus, no Palácio

 Residência do Presidente da Província.

Na passagem pelo Amazonas, o casal Agassiz descreveu um grandioso baile ocorrido na cidade de Manaus, entre 1865 e 1866. Tratava-se de uma homenagem ao Sr. Tavares Bastos, político que foi presidente das províncias de Alagoas, de 29 de outubro a 30 de outubro de 1838, e de São Paulo, de 8 de novembro de 1866 a 12 de outubro de 1867.

8 de novembro - Desacostumada animação reina desde alguns dias em Manaus. Trata-se de organizar um grande baile em homenagem ao Sr. Tavares Bastos. Onde se realizará? Em que dia? A que hora? E, quanto às senhoras, que vestido havemos de botar, qual será a toalete da Sra...? Tais os motivos da animação. Essas delicadas questões foram enfim resolvidas e ficou aprovado que a "função" teria lugar no dia cinco deste mês, no "Palácio". Este é o nome invariavelmente dado à residência do Presidente, mesmo quando ela consiste numa pequena casa, modesta demais para carregar o pomposo título. A noite do dia marcado não foi tão favorável como se desejava; esteve muito escura, e, como o luxo de carruagens é totalmente desconhecido, os grupos atravessam às carreiras as ruas iluminadas por lanternas de mão. Aqui e ali, pelo caminho, via-se, num trecho de rua, surgir do escuro uma toalete de baile saltando por cima duma poça de lama. Entretanto, quando todos já haviam chegado, observei que nenhum dos vestidos sofrera muito com a caminhada pelas ruas. Era grande a variedade das toaletes; a seda e o cetim misturavam-se à lã e às gazes, e os rostos mostravam todas as tonalidades do negro ao branco, sem esquecer as cores acobreadas dos índios e dos mestiços. Não há aqui, com efeito, o menor preconceito de raça. Uma mulher preta — admitindo-se, já se vê, que seja livre — é tratada com a mesma consideração e obtém a mesma atenção que teria se fosse branca. Todavia, é raro encontrar-se na sociedade uma pessoa que seja absolutamente de pura raça negra, mas vêm-se numerosos mulatos e mamelucos, como chamam aos mestiços de índio e negro. Reina geralmente um certo constrangimento na sociedade brasileira, mesmo nas grandes cidades; com mais forte razão nas pequenas, onde, para evitar qualquer omissão, se exagera ainda mais o rigorismo das convenções sociais. Os brasileiros, com efeito, tão hospitaleiros e bons, são muito formalistas e enfatuados em matéria de etiqueta e cerimônias. As damas, ao chegarem, vão sentar-se em banquetas estofadas que estão colocadas ao longo das paredes do salão de danças; de tempos em tempos, um cavalheiro avança corajosamente até essa formidável linha de encantos femininos e diz algumas palavras; mas só mais tarde, depois que as danças dividem os convidados por grupos que se misturam é que a festa se torna realmente alegre.

Nos intervalos, as bandejas circulam, carregadas de doces e xícaras de chá e por volta de meia-noite a ceia é servida; as damas tomam lugar à mesa, tendo, de pé, por trás de cada uma, os seus cavalheiros. Principiam logo os brindes e as saúdes, feitos e recebidos com entusiasmo. E o baile recomeça. Estavam as danças muito animadas quando, entrando no porto, o paquete vindo de Pará ficou todo iluminado e soltou girândolas e foguetes em sinal de regozijo pelas boas notícias da guerra. A alegria chegou ao auge; as quadrilhas, interrompidas, sucederam-se ruidosas manifestações de júbilo. A maioria dos assistentes passou a noite em claro e dirigiu-se para bordo do navio para receber os jornais; não tardamos em saber que uma vitória decisiva fora ganha sobre os paraguaios em Uruguaiana, onde o Imperador comandava em pessoa. Dizem que foram feitos aí sete mil prisioneiros. No dia seguinte, foi dado um novo baile para comemorar a vitória, de modo que em Manaus, cujos habitantes se queixam de levar uma vida triste, houve esta semana um turbilhão de alegria absolutamente excepcional.


Viagem ao Brasil, 1865-1866. Louis Agassiz e Elisabeth Cary Agassiz.
 
 
CRÉDITO DA IMAGEM: manausdeantigamente.blogspot.com