domingo, 22 de abril de 2018

Nossos Combates pela História

'A greve de Youngstown', pintura de 1937 de William Gropper.

Acabo de sair de uma aula que ecoará por um bom tempo em minha mente e acredito que também na de meus amigos de curso. Debatemos, em grupo, um capítulo do livro Combates pela História, do historiador francês Lucien Febvre (1878-1956). Leitura bastante pertinente, pois relaciona-se ao tempo em que vivemos, de constantes ataques à educação e, em especial, às ciências humanas. Ela reacende a chama que, pelos entraves acadêmicos ou por problemas externos, estava se apagando (algo bastante comum na reta final da graduação). Nos vemos diante de um autor apaixonado pelo que fez:

"Amo a história. Se não a amasse não seria historiador. Fazer a vida em duas: consagrar uma à profissão, cumprida sem amor; reservar a outra à satisfação das necessidades profundas - algo de abominável quando a profissão que se escolheu é uma profissão de inteligência. Amo a história - e é por isso que estou feliz por vos falar, hoje, daquilo que amo". (FEBVRE, 1989, p. 28).

Por mais que o que chame nossa atenção seja esse tom romântico, Combates pela História deve ser entendido como uma crítica direcionada à escola Metódica Francesa e seus membros. Na época da produção do texto, 1953, Lucien Febvre há muito era um historiador consagrado nos meios acadêmicos franceses, mas remorava  seus combates teóricos e metodológicos travados ora como aluno, ora como professor, pela renovação do campo histórico.

Essa renovação estava há tempos sendo delineada no horizonte, eclodindo com a Escola dos Annales, fundada por Febvre e seu amigo Marc Bloch (1886-1944). François Simiand (1873-1935), sociólogo francês, já tecia críticas à prática historiográfica empreendida pela Escola Metódica, cujos principais pilares, em síntese, eram a crença na neutralidade do trabalho do historiador; na leitura dos documentos como transmissores do passado tal como este teria ocorrido (que juntando-se ao primeiro pilar levaria à "objetividade histórica"); a atenção às grandes personagens e aos aspectos políticos das nações. Para Simiand, os historiador deveriam estudar aspectos sociais, buscar diálogos entre o presente e o passado, refletir sobre as fontes e buscar aportes teóricos.

As ciências, no geral, vinham passando por uma crise desde o século XIX, crise essa de métodos e teorias. Novas descobertas abalavam antigas estruturas, antigas premissas tomadas como verdadeiras e universais. Ocorreram renovações na Sociologia, na Geografia, na Psicologia e em outras áreas. Diante desse quadro de crise e renovação, Febvre perguntava, sobre os postulados da Escola Metódica, se seriam "[...] nós, historiadores, os únicos a continuar a tê-los como válidos?" (FEBVRE, 1989, p. 39).

A noção de história de Lucien Febvre relaciona-se a essa crise das ciências humanas. O autor faz uma crítica à utilização dos epítetos econômica e social no título da revista que criou com Marc Bloch, afirmando que a utilização desses termos não é uma exclusividade, mas surgiu como uma necessidade, pois desejava-se que a história se irradiasse por outras áreas do conhecimento. Para ele não existe uma história econômica e social. A história é, em suma, completamente social, constituindo-se em um estudo

"[...] das diversas actividades e das diversas criações dos homens de outrora, tomados na sua data, no quadro de sociedades extremamente variadas e contudo comparáveis umas com as outras [...], com as quais encheram a superfície da terra e a sucessão das épocas" (FEBVRE, 1989, p. 30).

Os objetos de estudo da história são os homens, os homens que estão em constante mudança, alterando o meio e as sociedades das quais fazem parte em determinadas épocas. Podemos nos interessar por áreas distintas como a história econômica, a história política, diferentes áreas da vida humana, mas com a condição de "[...] nunca esquecer que elas o põem (o homem) em causa inteiro, sempre - e no âmbito das sociedades que criou" (FEBVRE, 1989, p. 31). Dessa forma, não devemos estudar os aspectos da vida humana de forma isolada, mas antes compreendê-los como parte de um todo da criação dos grupos humanos em diferentes temporalidades.

Três elementos são importantes para compreender a renovação historiográfica empreendida por Febvre: A interdisciplinaridade, a história-problema e a história como conhecimento cientificamente conduzido.

Uma história interdisciplinar mantém contato com outras áreas do conhecimento que tem o homem como objeto de estudo. Febvre afirma que devemos ser geógrafos, juristas, sociólogos e psicólogos, de forma a ampliar os horizontes do historiador. Pede, também, que não fechemos "[...] os olhos ao grande movimento que, à vossa frente, transforma, a uma velocidade vertiginosa, as ciências do universo físico" (FEBVRE, 1989, p. 40). "O problema, diz Febvre, é o começo e o fim de toda a história". Se o historiador não propõe problemas e não formula hipóteses para resolvê-los em suas investigações, ele será um mero produtor de compilações. Por cientificamente conduzido, compreendo que Lucien Febvre apresenta a história problema como até hoje conhecemos, na qual o historiador problematiza os elementos históricos, tece hipóteses, faz críticas aos documentos, reflete as subjetividades das ações humanas, o que difere do anseio de cientificidade dos historiadores metódicos, no sentido puro da palavra, de uma ciência na qual existe um único direcionamento.

Lucien Febvre pede uma coisa que nós, historiadores, às vezes nos esquecemos de fazer: ele pede que vivamos, vivamos academicamente, familiarmente, amorosamente. Somos humanos. Lutemos por nossos ideais, seja escrevendo ou indo para a rua. Lutemos por melhores condições de trabalho, de educação. Por condições dignas de humanidade! Não devemos "separar a ação do pensamento, a vida do historiador da vida do homem" (FEBVRE, 1989, p. 40). Isso vale para qualquer profissão. Lutemos para continuar renovando a historiografia, mantendo um diálogo entre o presente e o passado. É preciso que deixemos de ver a história, enuncia Febvre, "como uma necrópole adormecida, onde só passam sombras despojadas de substância" (FEBVRE, 1989, p. 40). Como os cavaleiros medievais, ainda seguindo as alegorias do historiador francês, devemos penetrar o castelo e despertar com a nossa vida a princesa adormecida (a história).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FEBVRE, Lucien. Viver a História. In: Combates pela História. Lisboa: Editorial Presença, Lda. 1989.

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http://teachgreatjewishbooks.org

segunda-feira, 26 de março de 2018

Amiano Marcelino: Pensamento Histórico e Prática Historiográfica

Escultura entalhada em madeira representando o historiador Amiano Marcelino (330 - 395/400 d. C.). Alfeld, Alemanha, século XVII.

Amiano Marcelino (330 - 395/400 d. C.) foi um militar e historiador nascido na cidade de Antioquia, atual Antáquia, na Turquia. Considerado um dos últimos grandes historiadores romanos (embora fosse grego de nascimento) e o último historiador pagão, escreveu em um período de profundas transformações do Império Romano, com destaque para a ascensão e oficialização do Cristianismo como religião de Estado através do Édito de Tessalônica, decretado pelo imperador Teodósio I em 380 d. C.

Tendo vivido nessa época, século IV, nos oferece, através de sua principal obra, Res Gestae (Os Feitos), que acredita-se ser uma tentativa de continuar a obra de Tácito, um panorama, ainda que de forma fragmentada (dos 31 livros que compunham a obra apenas 17 foram preservados), do processo de conturbação e decadência do Império. De acordo com Bruna Campos Gonçalves, "seu relato começa em 96 d. C. com o reinado do imperador Nerva (96 - 98 d. C.) e perpassa por todos os imperadores terminando sua narrativa com o governo de Valentiniano II (378 - 383 d. C.)" (GONÇALVES, 2008, p. 97). O grosso que sobreviveu de Os Feitos cobre os reinados de Constâncio II, Juliano, o Apóstata, e Valentiniano II.

O primeiro livro sobrevivente, de número 14, é dedicado, em um primeiro momento, às ações de César Galo, primo de Constâncio II. Galo foi um César extremamente cruel e violento, assim como seu primo, sobre quem recaem as atenções do historiador posteriormente. Além das descrições sobre Galo e Constâncio II, também é feita uma digressão sobre os costumes dos sarracenos. Roma, para Amiano, era uma cidade que atravessara todos os estágios da vida, passando do estado pueril para a maturidade, chegando à velhice com grande sabedoria. Os romanos do passado eram simples, desprendidos da ganância. A partir dessa imagem da cidade é apresentada uma outra, a da luxúria e ostentação de alguns habitantes, elementos já criticados por poetas e historiadores de tempos mais remotos. Alguns tem apelidos como "Barril", "Linguiça" e "Barriga de Porco". Esse é, de acordo com John Burrow, 

"o velho tema da luxúria contrastada com a virtude e a venerabilidade romanas antigas, mas apresentado aqui com vivacidade e riqueza de detalhes excepcionais, e uma forte sugestão de lembranças de desfeitas pessoais; é decerto particularmente penoso que, por ocasião de uma ameaça de escassez de alimentos, quando os estrangeiros foram expulsos da cidade, não tenha sido feita exceção aos professores de artes, mas sim a dançarinos e professores de dança" (BURROW, 2013, p. 190).

Ainda falando sobre Galo, Amiano utiliza metáforas animais para descrever esse César, que ora era como "uma cobra ferida por uma lança ou pedra" ou "um leão que experimentou o gosto da carne humana". São feitas algumas digressões sobre as Províncias do oriente. Por último, Galo teve um destino semelhante ao de muitos príncipes e imperadores predecessores: foi executado. Amiano invoca a justiça divina, Adrastia (Nêmesis), "que pune a maldade e recompensa as boas ações [...] Rainha das causas, árbitra e juíza de todas as coisas, ela controla a urna de onde se retira a sorte dos homens e regula suas vicissitudes de fortuna" (BURROW, 2013, p. 191). 

Boa parte dos elementos do pensamento histórico e prática historiográfica vistos no livro 14, segundo John Burrow, voltarão a aparecer nos fragmentos posteriores: 

"desconfiança e crueldade imperiais; digressões etnográficas e geográficas; veneração pelo passado de Roma e pela própria cidade, apesar das descrições satíricas da população; devoção aos deuses antigos; autoconsciência literária e alusão a exemplos históricos; excessos metafóricos na escrita e o acréscimo de imagens de bestas selvagens" (BURROW, 2013, p. 192).

Outro elemento marcante é a crença de Amiano em presságios e adivinhações, para ele conhecimentos inexatos e muitas vezes utilizados de forma indevida ou exagerada. Os deuses, a exemplo dos sinais dados por pássaros, controlavam esses animais para revelar aos homens diferentes tipos de acontecimentos. Na condição de militar, ficou ligado ao exército até 363 d. C., tendo sido testemunha ocular de inúmeras batalhas, acompanhando as campanhas dos imperadores no Oriente, na Gália e na Germânia. Nas campanhas de Juliano, observa e descreve as cenas dos campos de combate.

O interesse de Amiano pelo reinado de Juliano diz respeito a sua tentativa de reviver os cultos pagãos, abandonando o Cristianismo, tentativa essa que lhe reservou a alcunha de Juliano, o Apóstata. As ações de Juliano são violentas, com a proibição aos cristãos de ministrarem aulas, destruição de igrejas e inúmeros sacrifícios. Esses atos eram criticados por Amiano, pois seu paganismo era "[...] de um tipo mais contido e genial" (BURROW, 2013, p. 195). Amiano, ao contrário de outros historiadores como Tácito, que tinha uma visão depreciativa dos cristãos, demonstrava certa tolerância com os praticantes dessa religião.

Após a morte de Juliano, os governos seguintes são marcados por dois acontecimentos considerados críticos: a permissão da entrada de godos via Danúbio em territórios romanos (376) e a derrota e morte do imperador Valente na batalha de Adrianópolis (378). Roma era assediada, mas não estava em declínio. Era, antes disso, o centro do mundo, a Cidade Eterna. Amiano, grego, escreve em latim. Bruna Campos, citando o professor Ronald Mellor, apresenta duas prováveis causas para essa escolha:

"A óbvia razão literária era continuar a obra de Tácito, enquanto que a razão política era escrever, como chamou o retórico grego Temístio την διαλεκτον κρατουσαν (‘a língua dos nossos governantes’). Diferentemente do cortesão Temístio, Amiano não estava tentando alcançar os favores imperiais, mas estava profundamente comprometido com Roma e com sua herança politica. Seu orgulho de sua cidadania romana é evidente em toda sua obra". (MELLOR, 1999, p.126). 

Amiano Marcelino, considerado um  dos últimos grandes historiadores romanos (de origem grega) da Antiguidade Tardia e o último historiador pagão, escreveu sua obra em latim, obra essa cujos principais elementos são a desconfiança e crueldade imperiais; digressões etnográficas e geográficas; veneração pelo passado de Roma e pela própria cidade, apesar das descrições satíricas da população; devoção aos deuses antigos; autoconsciência literária e alusão a exemplos históricos; excessos metafóricos na escrita; o acréscimo de imagens de bestas selvagens; e a crença em presságios e adivinhações. Res Gestae é mais uma obra do último século de existência do Império Romano, que oferece, ainda que de forma incompleta, um panorama da desestruturação da unidade imperial.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BURROW, John. Uma História das Histórias. De Heródoto e Tucídides ao século XX. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, tradução de Nana Vaz de Castro, 2013.

GONÇALVES, B. C. . Amiano Marcelino e sua obra Res Gestae: tratamento documental e os livros XXV, XXVI e XXVII. In: XXIII Semana de Estudos Clássicos / V Encontro de Iniciação Científica em Estudos Clássicos Cultura Clássica: Inter-relações e permanência, 2008, Araraquara. Anais da XXIII Semana de Estudos Clássicos V Encontro de Iniciação Científica em Estudos Clássicos. Cultura Clássica: inter-relações e permanência, 2008. p. 95-102.


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Falkensteinfoto/Alamy Stock Photo

domingo, 18 de março de 2018

Francesco Guicciardini: Pensamento Histórico e Prática Historiográfica

Francesco Guicciardini (1483-1540).

O historiador e estadista florentino Francesco Guicciardini (1483-1540), contemporâneo de Nicolau Maquiavel (1469-1527), dedicou-se aos escritos políticos, produzindo História da Itália, obra de publicação póstuma que versa sobre a história contemporânea e recente das cidades-Estado italianas. Na introdução, o autor deixa claro quais foram as suas motivações e o ponto de partida para escrevê-la:

Eu decidi escrever sobre os eventos que ocorreram na Itália dentro de nossa memória, desde as tropas francesas, convocadas por nossos próprios príncipes, começaram a suscitar aqui grandes dissensões: um assunto mais memorável, tendo em vista seu alcance e variedade, e cheio dos acontecimentos mais terríveis; já que, durante anos, a Itália sofreu todas aquelas calamidades com as quais os miseráveis mortais costumam ser afligidos, às vezes por causa da justa ira de Deus e às vezes por causa da impiedade e maldade de outros homens. A partir de um conhecimento de tais ocorrências, tão variadas e tão graves, todos podem tirar muitos precedentes saudáveis tanto para si quanto para o bem público (1984, p. 3).

O livro de Guicciardini, que cobre um período que vai de 1490 a 1534, surge em um contexto de ebulição política marcada por conflitos militares entre os principais Estados da Europa e as cidades-Estado italianas, gestados pelas disputas de soberanos franceses interessados em garantir seus direitos hereditários sobre o Reino de Nápoles e o Ducado de Milão. Essa é a essência do trabalho de Guicciardini: a política, a relação entre os Estados europeus. De acordo com John Burrow, “ele entendia que a política era formada por configurações e circunstâncias únicas, e a história era o instrumento ideal para avaliá-las” (2007, p. 322).

Ainda conforme Burrow, Guicciardini era comprometido com o esmiuçamento dos fatos históricos, buscando explicações múltiplas para os acontecimentos. “Ele raramente oferece um único motivo para uma ação se puder pensar e três os mais” (2007, p. 322). Analisando a Itália e seu bom aspecto político e social no final do século XV, o autor escreveu:

Muitos fatores a mantiveram nesse estado de felicidade, que foi a consequência de várias causas. Mas foi mais comum concordar que, entre estes, nenhum pequeno louvor deve ser atribuído à indústria e habilidade de Lorenzo de Medici, tão eminente entre as classes ordinárias de cidadãos na cidade de Florença, que os assuntos dessa República foram governados de acordo com seus conselhos (1984, p. 4).

Esse interesse pelos detalhes, pelo íntimo das causas, segundo John Burrow, tem duas consequências importantes. “A primeira, da qual ele tem total consciência, é a advertência contra o excesso de confiança de comentadores e, mais importante, de estadistas: arrogância é insensatez. A segunda, que permeia toda a sua obra, é o comprometimento com a explicação através da narrativa, contando a densa particularidade de cada momento histórico relevante” (2007, p. 328).

No contexto cultural e historiográfico desse período de transição do mundo medieval para o moderno, Guicciardini, embora menos conhecido que outros humanistas italianos, possui um lugar de destaque. Com sua História da Itália, rompe com a tradição do estudo localizado, da escrita individual sobre as diferentes cidades-Estado, abordando a Itália de uma forma geral, além de fazer digressões sobre as outras nações beligerantes. Vale lembrar que Guicciardini, entre 1508 e 1509, publicou História de Florença, obra de estudo local sobre sua terra natal, que vai de 1378, com a Revolta dos Ciompi, até 1509, com a Batalha de Agnadello, uma das maiores das Guerras Italianas.

O professor Maurício Parada, autor de Os historiadores clássicos da História, em um capítulo dedicado a Guicciardini, recupera alguns estudos historiográficos que servem de norte para compreender o pensamento histórico e a prática historiográfica desse historiador italiano. Eduard Fueter (1876-1928) afirma que Guicciardini não se interessava pela filosofia da história, prendendo-se à realidade, mas era extremamente preciso em suas análises empíricas, penetrando-as psicologicamente. Soma-se a isso a sua independência quase absoluta do juízo e o “egoísmo político”, que serve para apresentar as personagens como elas são, não de forma idealizada. Para Fueter História da Itália tem duas importantes inovações, a já citada abordagem geral (a Itália não é vista como uma unidade, mas um conjunto de diferentes povos que possuem certos elementos que garantem um certo grau de “união”) e o pessimismo político; e a pesquisa em arquivos públicos e familiares.

Felix Gilbert (1905-1991) segue a mesma trilha de Fueter, destacando o exame psicológico da história e a metodologia da pesquisa em arquivos públicos e familiares. Para ele essa é a última produção histórica escrita segundos os padrões clássicos e a primeira da historiografia moderna. Peter Bondanella (1943-2017) destaca a pesquisa documental feita por Guicciardini, chegando a afirmar que História da Itália foi precursora das histórias filosóficas de Voltaire, Gibbon, Montesquieu e Heggel. Para Mark Salber Phillips (1946) o diferencial de Guicciardini estaria na psicologia e no auto-interesse que guiavam os eventos de sua História. Eric Cochrane (1928-1985) considera que Guicciardini não era um anti-humanista, mas um herdeiro da escola historiográfica surgida no século XIV. A novidade de seu livro estaria na passagem da história das cidades para a história da nação, na conexão entre as narrativas das histórias das diferentes entidades políticas italianas.

Em síntese, ainda que com leves diferenças entre as análises de Fueter, Bondanella, Mark Salber e Eric Cochrane, Francesco Guicciardini realizou pesquisas empíricas em arquivos públicos e familiares, buscando nas fontes elementos das ações humanas que desencadearam os processos políticos da história recente das cidades-Estado italianas no período em que vivia. Guicciardini pode não ter rompido totalmente com a tradição humanista dos séculos XIII, XIV e XV, mas procurou inovar no que tange a abrangência temporal, ainda que em um intervalo curto de tempo se comparado, por exemplo, com a Nuova Crônica de Giovanni Villani, que vai da fundação da cidade de Florença até a segunda metade do século XIV.

O elemento que permeia a sua obra é a Fortuna (a boa ou má sorte). A Fortuna, para ele, é de grande importância na vida dos homens, no caso, dos políticos italianos e de outras nações, pois por mais que estes façam diferentes tipos de planos, projetos, são sempre atingidos por eventos favoráveis ou catastróficos que escapam de suas idealizações, restando a Fortuna, que lembra os homens de estes não podem controlar o destino. Como escreve em um período marcado por conflitos, também faz descrições das batalhas, das táticas de combate e dos materiais bélicos empregados; além de análises diplomáticas.

Em uma última análise, John Burrow afirma que a história de Guicciardini não foi uma imitação dos modelos humanistas. Ela, em parte, traz elementos que os lembram, como a produção de discursos para análises políticas, mas é original nas descrições das “complexas redes de relações diplomáticas”, e a “mudança de um centro de poder para outro é excepcionalmente rápida e por vezes, há de se admitir, confusa” (2007, p. 330). Os humanistas, em contrapartida, prezavam por modelos bem estruturados. Francesco Guicciardini, estadista, foi um historiador político, interessado nos eventos que sacudiam a Península Itálica desde fins do século XV e, mais ainda, no comportamento humano, guiado por interesses pessoais, com a Fortuna sempre a modificá-los.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BURROW, John. Uma história das histórias: de Heródoto e Tucídides ao século XX. Rio de Janeiro: Record, 2013. Tradução Nana Vaz de Castro.

GUICCIARDINI, Francesco. The History of Italy. Princeton University Press; New Edition, 1984. Translated by Sidney Alexander.

PARADA, Maurício. Os historiadores clássicos da História, Vol. I - de Heródoto a Humboldt. Rio de Janeiro: Vozes, 2012.


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sexta-feira, 2 de março de 2018

A última sessão do Cine Guarany

Os portões do Cine Guarany sendo fechados após a última sessão. Foto de João Rodrigues.

O Cine Guarany foi um dos cinemas mais icônicos de Manaus, construído em 1907 e tendo as atividades encerradas em 1984. Na Avenida Floriano Peixoto, fazendo esquina com a Avenida Sete de Setembro, destacava-se por sua arquitetura mourisca, marcando várias gerações do século XX. Do antigo local restam fotografias e memórias de seus antigos frequentadores. No texto de hoje, o pesquisador Ed Lincon, revelando seu talento literário, nos transporta para a última sessão do Guarany, na noite de 31 de agosto de 1984:


A Última Sessão do Cine Guarany

Ed Lincon Barros da Silva

É noite de sexta-feira, 31 de agosto de 1984. O local é o prédio construído em 1907 em estilo mourisco localizado na av. Floriano Peixoto n° 54, esquina com a Sete de Setembro, onde funciona o cinema mais antigo de Manaus ainda em atividade, o Guarany. Em sua tela, dois filmes em exibição: Moças Sem Véu, das 21 às 22 horas e A Ilha dos Mil Prazeres, das 22 às 23 horas. É a última sessão dupla deste cinema, que nesta noite encerra as suas atividades cinematográficas exibindo filmes de sexo explícito, predominantes nos últimos tempos. Durante toda a semana, a Empresa Bernardino, arrendatária do prédio do Cine Guarany, publicou nos jornais da cidade o seguinte aviso: "A Ilha dos Mil Prazeres será o último filme deste cinema que funcionará até 6° feira. Aos distintos espectadores que frequentam esta casa de espetáculo muito obrigado. Empresa de Cinemas Bernardino Ltda". Há alguns meses, em entrevista aos jornais locais, Adriano Bernardino Filho, que há anos explora o cinema, disse que o prédio pertence aos herdeiros de J. G. Araújo, que não quiseram mais renovar o contrato de arrendamento, preferindo vende-lo para o Banco Itaú de São Paulo que construirá no lugar um prédio moderno para abrigar mais uma de suas agências.

Na platéia do cinema não mais que 15 pessoas assistem a sessão de encerramento. No corredor central andando nervoso de um lado para o outro, está o seu gerente Antonio Pereira da Cunha, 53 anos, conhecido pelos frequentadores como "Português". O seu nervosismo é devido ao fechamento do cinema: - "Hoje é o fim dele!" Repete várias vezes agitando as mãos e questionando os repórteres de um matutino local: "O que nós podemos fazer? Esse é o único cinema em Manaus "popular com todo mundo" apesar da falta de conforto. Todo mundo entra aqui como quer, de bermuda, sandália". Na terça-feira, 28 de agosto, em plena praça Heliodoro Balbi ou popularmente da Polícia, um grupo de 35 frequentadores do Guarany fizeram um protesto tardio contra o seu fechamento.

Na bilheteria, D. Ana Rocha Leão, uma das primeiras mulheres a ser admitida pela Empresa A. Bernardino onde trabalha há mais de 12 anos, vendeu o último ingresso de n° 676927453, a um antigo frequentador assíduo do Guarany que preferiu permanecer no anonimato. As galerias cujos ingressos eram mais baratos estão vazias. Na tela o filme chega ao fim, acendem-se as luzes e, os últimos e poucos espectadores saem da sala de espetáculos em silêncio. Na cabine de projeção, após desligar um dos gigantescos projetores à carvão, está José Soares Sobrinho, funcionário da Empresa Bernardino desde 1976 e no Guarany onde trabalha desde 1981, mexe na "Enroladeira" que como o próprio nome diz, é a máquina que enrola ou rebobina o filme para a sua próxima exibição que infelizmente não vai mais acontecer. José Soares, e mais quatro funcionários irão trabalhar em outro cinema da empresa. Chorando, Antonio Pereira ocupando a gerência do cinema desde a morte em agosto de 1969 de Vasco José de Faria (o querido e popular vovô Vasco da criançada pobre de Manaus), com um martelo e um formão, dá início a desmontagem das cadeiras da platéia. Lá fora, um caminhão as espera para levá-las ao depósito em que foi transformado o prédio do ex-cine Ipiranga, localizado na praça General Carneiro no bairro da Cachoeirinha e também vendido pela A. Bernardino (atualmente funciona no local uma loja de eletrodomésticos da TV Lar). Alguns ex-frequentadores entram no prédio à procura de coisas raras: cartazes, fotos, pedaços de celuloides etc. Outros pedem permissão para levar algumas das cadeiras da platéia para casa. Todos querem guardar consigo uma lembrança do velho cinema. A tela que outrora exibira grandes filmes está vazia e em silêncio. O que se ouve apenas é o barulho dos carros que passam pela rua.

Entretanto, o último e triste filme do Cine Guarany, ainda não havia sido exibido: o da sua destruição total. E ele não tardou a chegar. O local onde várias gerações costumavam se divertir, principalmente nas tardes de domingo iria virar ruínas. Na esquina da av. Getúlio Vargas com a Sete de Setembro, seu rival e vizinho, o prédio do ex-cine Teatro Politeama (1912-1973), depois de alguns anos funcionando como loja de eletrodomésticos, seria reformado para transformar-se também em agência bancária. As sereias da fachada do Politeama testemunham silenciosas, a queda do companheiro de muitos anos e ficam quietas para também não serem notadas e destruídas. O progresso é implacável com as coisas antigas da cidade. O engenheiro responsável pela demolição do Guarany, disse em tom de deboche que o prédio era feio e que não valia a pena ser restaurado porque estava caindo aos pedaços.

No dia 23 de setembro, quando a demolição do Cine Guarany começa pra valer e com a poeira tomando conta do local, já é possível vislumbrar pedaços de madeira entulhadas de um lado, as telhas de barro português que antes recobriam o teto amontoadas do outro, algumas estão empilhadas na escada de ferro rusticamente trabalhada, onde muitas vezes nas festas de aniversário do Guarany, a criançada subia fazendo tremenda algazarra. Em outro canto, um monte de latas contendo filmes de todos os gêneros: bang-bang, seriados, paixões de Cristo, entre outras, encontram-se espalhadas pelo chão, não servindo mais para projeção, nem como entretenimento. Os operários responsáveis pela demolição são impiedosos e implacáveis, e com suas marretas e picaretas destroem tudo o que vêem pela frente. Alguns fotógrafos registram em suas máquinas os últimos momentos do Guarany, cuja agonia dentro de poucos dias chegaria ao fim, como de fato chegou.

No dia 8 de outubro de 1984, depois de 77 anos de existência, o que restava do prédio do Julieta, do Alcazar e do Guarany era um amontoado de entulhos removidos pelos tratores. Não havia mais nada a fazer. A última sessão do Cinema Guarany chegara ao fim. Hoje, neste ano de 2007, se ainda estivesse existindo, estaria completando 100 anos. Evoé, Guarany!


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João Rodrigues/Acervo do pesquisador Ed Lincon


sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Vão demolir a velha sede do Naça

Registro de 1968 do casarão que no passado foi sede do Nacional Futebol Clube.

O texto a seguir foi originalmente publicado no extinto jornal A Notícia em 29 de abril de 1972, tendo sido recuperado pelo pesquisador Ed Lincon. Empresto o título da matéria original para realizar essa postagem. O antigo casarão que por décadas foi sede do Nacional foi dos prédios mais icônicos do centro da cidade, tanto por seu uso, como sede do principal clube de futebol da época, quanto por sua arquitetura. Assim como outras construções, entre as décadas de 1970 e 1980, foi demolido (1972), existindo no lugar atualmente o depósito de um supermercado.

Vão demolir a velha sede do Naça

Os moradores da rua Saldanha Marinho, próximos à sede velha do Nacional Futebol Clube deixarão de ouvir uma coisa tradicional. A charanga do clube em dias de carnaval, de vitórias e outros dias passará a fazer seu barulho alegre e ritmado muito longe, na sede nova do clube. Tudo porque o Nacional vai se mudar, depois de ocupar o velho casarão, entre a Av. Eduardo Ribeiro e rua Barroso, desde 1915.

A sede nova, com construção iniciada em 1956 obedecendo ao projeto do engenheiro José Francisco Portela, foi já inaugurada no dia 31 de dezembro de 1971. Mas, por não estar pronta, a administração e as promoções sociais do clube permanecem até agora na mansão pintada em azul fortíssimo e desbotado, da Saldanha Marinho.

Ali, os bailes carnavalescos foram tantos e tanto se pulou que a mansão não oferece mais segurança. Seus alicerces erguidos nos tempos áureos da borracha, na passagem do século, podem desabar e as dependências já são pequenas para os associados. Quem explica isso é Pedro Gomes, tesoureiro do clube, nacionalino desde o primeiro dia de idade e funcionário do Banco do Brasil.

Pedro, também antigo lateral esquerdo do Nacional, explicava ontem a tarde, em sua mesa de trabalho no banco, que dentro de 45 dias será inaugurada a pista de dança da sede nova. Em seguida ficará pronto o restaurante, que será aberto ao público em geral. Exatamente no dia 24 de junho próximo, quando o mestre Pereira mostrará suas habilidades culinárias na churrascaria.


SEDE NOVA

Segundo Pedro Gomes, na sede nova, localizada na Rua Fortaleza, já funciona o vestiário dos profissionais. Terá salão de dança, boate e bar, além de salão nobre, secretaria, tesouraria, administração, piscina e ginásio de esportes. Até agora o clube já dispendeu três milhões de cruzeiros novos, dinheiro conseguido – segundo Pedro Gomes – com as vendas de quatro séries de títulos de sócio-proprietário. Vendendo três séries para adultos e uma mirim, o clube não conseguiu ainda esgotar duas séries. Agora o Nacional recolherá o que não foi vendido e aumentará o preço para 1200 cruzeiros para adultos e 1000 cruzeiros para títulos mirins.

Nesta mudança não foi esquecida a concentração dos jogadores. O “Naça” adquiriu por 60 mil cruzeiros um prédio que pertencia à senhora Francisca Naide Pinheiro, na Ferreira Pena, 451. O alojamento contém dez aposentos. Serve até de residência para os jogadores, pois a maioria deles é de solteiros. Levam lembranças da concentração toda azul e antiga da Joaquim Nabuco.


ÚLTIMO DESEJO

Sob a supervisão do arquiteto Aldo Moreira Lima, Fernando dos Santos, o “Baiano”, leva adiante os trabalhos na sede nova. Bastante prático, enquanto preparava o chão do salão de danças ante ontem, com cargas de água, “Baiano” observava: “A sede só não fica pronta pra junho se por acaso faltar dinheiro. Do contrário...”.

E a torcida? Segundo Pedro Gomes ela é diretamente responsável pela contribuição em 50 mil cruzeiros, tornando-se sócia, indo aos jogos e fazendo doações espontâneas. “Tem papel decisivo”. E papel decisivo para as finanças do clube é a existência de sede própria. Para se ter uma ideia Pedro Gomes mostra que o clube faz agora uma economia de seis mil cruzeiros mensais com a concentração nova, onde há lugar até para o médico do clube e os craques são servidos “por uma excelente cozinha”. A economia existe, mesmo, considerando que o aluguel era ninharia de 55,80 cruzeiros mensais (com reajuste recente).

Não há mais a preocupação em se procurar melhor alojamento em hotéis da cidade, bastante caros.

Agora, depois de ser campeão amazonense 22 vezes e ostentar mais de 50 títulos amadores, o velho Nacional, de 60 anos de idade, deixa a mansão, da família J. G. Araújo (Joaquim Gonçalves Araújo). O velho Joaquim num último suspiro, antes de sua morte, pediu para que “não mexessem no Naça”, isto é, que seus familiares deixassem o Nacional em sua propriedade. Havia sido presidente do clube por uma vez e foi condecorado com o título de sócio benemérito. Fez o extremo pedido ao sobrinho Jaime Bittencourt sócio-proprietário e visado para ser benemérito também. E não é para menos pois está em pauta uma doação da família J. G. Araújo ao Nacional no montante de cem mil cruzeiros.

Segundo Pedro Gomes, o clube considera-se em razoável situação financeira agora, depois de ter passado por maus momentos há dias quando os jogadores mal podiam receber seus salários.

As dívidas eram de 300 mil. Agora baixaram para 50 mil cruzeiros. Nem por isso a charanga alegre do Nacional emudeceu nos dias de vitória, relembrando os bailes memoráveis no casarão azul organizado pela famosa renque nacionalina. No lugar do que é hoje um amontoado de cadeiras quebradas, vidraças partidas e empoeiradas na velha sede semiabandonada, formavam-se filas enormes para pular o carnaval.


VÃO DEMOLIR

“Rapazes e moças faziam filas e brincavam o carnaval ao modo nacionalino” - recorda Pedro Gomes, acrescentando - “E era típico por ser mais moderno. O pessoal rodava pelo salão”. Foi ali que um dia Newton Santos (ex-craque da seleção brasileira e do Botafogo) entrou em 1962, para receber o título de sócio-proprietário. Na ocasião o craque brasileiro pediu para receber a homenagem lá nos fundos, na quadra de esporte. Paulino Gomes lhe deu o título sob as vistas de Pepeta, Marialvo, Edson Piola e outros então craques do Nacional. Comemorava-se o Bicampeonato Mundial.

Os velhos alicerces do casarão ainda suportavam o “Maior baile de carnaval da terça-feira” - segundo Pedro. Ele lembra um baile de gala, num domingo em 1963, foi tão concorrido que outros clubes da cidade fecharam seus salões. Construído em estilo colonial, em dois pavimentos, área fronteiriça com toldo do portão à entrada do salão pequeno, o prédio chama a atenção por ser extremamente desbotado. Lá no alto, o símbolo amarelo do clube, sobre as altas janelas de beiradas brancas. Pedro não sabe quando, mas qualquer dia desses alguns nacionalinos mais curiosos assistirão, olhando pelas frestas do muro de ferro, a demolição do antigo palco das alegrias nacionalinas.

A derrubada do prédio estará a cargo do Banco do Estado do Amazonas. O BEA adquiriu o local para construir ali um edifício. O “Naça” entra em uma nova época usufruindo do dinheiro que também recebe do aluguel de um terreno para a Shell e do dinheiro recebido pela venda da área onde, por enquanto, ainda permanece de pé o casarão azul e branco.


A Notícia, 29/04/1972


CRÉDITO DA IMAGEM:

Manaus Sorriso



quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Morte de um bravo: Os necrológios de Joaquim Benjamin da Silva (AM) e Frederico Albano Cardoso Pinto (PA), combatentes na Guerra do Paraguai

Cadáveres de paraguaios após a Batalha de Boquerón, em julho de 1866.

Os necrológios, elogios fúnebres publicados em periódicos locais ou nacionais, são interessantes fontes para a pesquisa histórica, ainda que não tenham sido plenamente explorados em trabalhos acadêmicos na região. Neles é possível encontrar informações de grupos ou de indivíduos, dados biográficos, de escolaridade, religião, carreira, causa mortis e local de sepultamento. A quantidade das informações, o número de páginas e as homenagens dependem da importância que a pessoa teve em vida. Esse tipo de material é utilizado em estudos prosopográficos, podendo ser citados os trabalhos de Andrius Estevam Noronha (1), que utiliza os necrológios para analisar as trajetórias dos membros da elite de Santa Cruz do Sul (RS); e de Juarez José Tuchinski dos Anjos (2), que investigou os modelos de educação familiar contidos nos elogios fúnebres da Província do Paraná (1853-1889).

Como todas as fontes históricas, os necrológios possuem suas possibilidades e limites, devendo ser analisados criticamente. A utilização destes pela história social, cultural e das mentalidades permite aos pesquisadores a identificação de elementos socioculturais de determinadas épocas, os modos de viver e os comportamentos da sociedade ou parte dela diante da morte. No entanto, como salienta Andrius Estevam Noronha, não se deve esgotar os necrológios, “pois esses textos além de omitir várias informações individuais são carregados de um discurso narrativo de estilo romantizado” (NORONHA, 2012, p. 73). Os necrológios publicados em jornais trazem informações resumidas sobre o falecido, em um tom bastante romântico, o que torna necessária a utilização de outras documentações para confrontar esses textos. O historiador deve estar ciente, como citou Noronha, de que esses elogios estão carregados de discursos, pois possuem o objetivo de preservar e distinguir a memória do falecido e de sua família.

Escolhi dois necrológios da segunda metade do século XIX para fazer a análise de seus conteúdos: O do alferes Joaquim Benjamin da Silva, amazonense, e do tenente Frederico Albano Cardoso Pinto, paraense, ambos combatentes na Guerra do Paraguai (1864-1870) e mortos em batalha.


Morte de um bravo (I)

Mais um bravo da nobre família amazonense sacrificado no altar da patria!

Mais uma victima dos horrores da guerra desaparecida para sempre do numero dos vivos!

O alferes Joaquim Benjamin da Silva, que, por seu valor e denodo, havia merecido do governo as honras de uma condecoração, e um posto de accesso, não chegou siquer a receber a noticia desse premio tao bem merecido; porque na sanguinolenta batalha de 16 de julho, avançando contra o inimigo, recebeo no peito uma granada, que o fez voar á mansao dos justos.

O Amazonas deve orgulhar-se de ter tal filho, que, morrendo, legou a sua patria e família um nome gloriozo.

Joaquim Benjamin da Silva foi um heróe, que nos campos do Paraguay, soube honrar o nome brasileiro; e, embora morresse, elle vive e viverá eternamente, porque os heròes residem na historia, e a historia não risca, nem jamais pode riscar seu nome.

O bravo amazonense, quatro dias antes de o matarem, escrevendo a um seu amigo, predisse o triste fim que o aguardava: no dia 12 lançava elle no papel as seguintes expressões:

<<Prefiro uma morte glorioza nestes campos, à voltar para o meu paiz sem ver arrazado o covil da féra>>.

E morreu com effeito antes de ser arrazado o covil da féra!

Oh! Que valor, e que santo patriotismo lhe ardia n’aquelle craneo de mancebo!

Amazonenses! Já não existe Joaquim Benjamin da Silva; resta-nos portanto pranteal-o e orar por sua alma: choremos e oremos, pois, pela alma desse bravo martyr da patria. - A terra lhe seja leve.

Amazonas, 26/09/1866


O necrológio de Joaquim Benjamin da Silva é bastante resumido, não sendo indicado o local de nascimento, a vida em família e a educação que recebeu. Arthur Cézar Ferreira Reis (1989, p. 231), baseado em uma monografia escrita em 1920 por João Batista de Faria e Souza, cita o alferes Benjamin da Silva como natural de Parintins, tendo servido no batalhão de engenheiros. Seria condecorado por suas ações no campo de batalha, o que não ocorreu devido seu falecimento. O autor se confunde apenas quanto a data , citando a batalha do Capão Pires em 16 de julho de 1868 (ocorrida em 16 de julho de 1866), enquanto seu necrológio foi publicado no jornal Amazonas em 26 de setembro de 1866, dois meses após sua morte.

Ainda de acordo com Arthur Cézar Ferreira Reis, até o final do conflito contra o Paraguai o Amazonas contribuiu com mais de mil e quinhentos soldados, os Voluntários da Pátria, tendo regressado, em 25 de julho de 1870, apenas 55 soldados desse total (REIS, 1989, p. 232).

Foi “sacrificado no altar da patria”, legando a sua “patria e família um nome gloriozo”. Preferiu uma morte gloriosa nos campos de batalha do que voltar a ser país sem ver a queda do inimigo. Ardia naquele “crâneo mancebo” um santo patriotismo. No necrológio não fica indicado seu número de posses, sendo seu legado ao Estado e à família sua bravura durante a guerra, que ganha um tom dramático quanto este, quatro dias antes, chegou a prever que pereceria em ação.

Elle vive e viverá eternamente, porque os heròes residem na historia, e a historia não risca, nem jamais pode riscar seu nome”. Essa passagem exemplifica uma noção clássica de história, de que esta era feita pelos grandes homens e centradas em suas ações, que serviriam de exemplo para a posteridade. Joaquim Benjamin da Silva entrou para a história onde residiam os heróis, tornando-se um deles, um “martyr da patria”. Mais que uma homenagem, o necrológio é um instrumento de construção da memória biográfica.

Morte de um bravo (II)

Lê-se no Supplemento do Jornal do Commercio de 27 de novembro:

O inimigo jogou sua artilheria por meia hora, e por meia hora respondemos com fogos crusados de nossos morteiros admiravelmente. A nossa fortificação do Potrero Piris fez tambem excellentes tiros, as da esquerda e frente do mesmo modo.

Parece incrivel que tantas granadas e balas somente nos roubassem uma vida não ferindo a mais ninguém: mas é verdade. Verdade seja que a vida que nos roubou foi por demais apreciavel, por que nada menos foi que a morte de um jovem tenente tão brioso, quanto corajoso: fallamos do tenente de commissão Frederico Albano Cardoso Pinto, natural do Pará, cadete do 9° batalhão de infantaria, ajudante do brioso 6° corpo de voluntarios da patria, em cujas fileiras mereceu a commissão de alferes, e depois de tenente, por assignalados serviços prestados com a dedicação e zelo do bom soldado.

Dotado de maneiras polidas e bastante intelligente o tenente Cardoso Pinto era geralmente estimado. Sua morte foi produzida pelo choque de uma bomba, que, dando-lhe sobre as costellas do lado direito, determinou-lhe a morte instantaneamente. Conduzido na tarde desse dia para o hospital da 2° divisão, seu cadaver foi depozitado na capella do mesmo hospital, e guardadas as ceremonias que se fazem em casos taes; foi na manhã de 31 sepultado no cemiterio deste hospital, sendo seu corpo conduzido pelos drs Macedo Soares, Firmino Doria e pharmaceutico Doria, e De Bertue.

Mais tarde, depois de mudado da guarnição dos morteiros o 6° corpo de volumtarios, compareceram com a banda de muzica do mesmo corpo alguns srs. Officiaes, capitão Machado, tenente Barrilho, alferes Almeida Castro, e alferes Rego Barros que foi encarregado pelo commandante de dirigir a muzica para o seu funeral, sendo que o finado era inspector da mesma muzica.

Receba a família do finado os nossos sentimentos, e com tanta maior dôr quando eramos amigo do tenente Frederico Albano Cardoso Pinto.

A terra lhe seja leve.

A Voz do Amazonas, 12/01/1867


Esse necrológio é mais detalhado, tendo além da causa mortis o local para onde o corpo foi enviado, o local de sepultamento, as pessoas que o conduziram e os militares que dirigiram a música do funeral, já que se tratava de um militar de patente mais alta, um tenente. Ele foi publicado no suplemento do Jornal do Commercio em 27 de novembro de 1866 e republicado no jornal A Voz do Amazonas em 12 de janeiro de 1867. Em um tom bastante dramático, o autor do texto nos transporta para o campo de batalha, descrevendo as investidas do inimigo e a defesa da fortificação brasileira em Potrero Piris.

No dia desse ataque, entre tantos tiros e granadas, apenas um militar faleceu: tenente Frederico Albano Cardoso Pinto, natural do Pará, cadete do 9° batalhão de infantaria, ajudante do 6° corpo de voluntários da pátria, onde ascendeu às patentes de alferes e, depois, tenente. Também foi inspetor da banda de música. Morreu instantaneamente ao ser atingido nas costelas pelo choque de uma bomba. Não é informada a data exata de sua morte. O morto tinha qualidades: era brioso, tinha maneiras polidas e era bastante inteligente.

Seu corpo foi levado para o hospital da 2° divisão, sendo depositado na capela dessa instituição, onde foram realizadas “ceremonias que se fazem em casos taes”, possivelmente uma missa de corpo presente. Na manhã do dia 31 foi sepultado no cemitério do hospital, tendo seu corpo sido conduzido pelos drs. Macedo Soares, Firmino Doria, farmacêutico Doria e De Bertue.

Mais tarde, após o enterro, quando o 6° corpo de voluntários foi mudado da guarnição de morteiros, compareceram com a banda de música alguns oficiais, capitão Machado, tenente Barrilho, alferes Almeida Castro e alferes Rego Barros, encarregado pelo comandante de dirigir a música do funeral. Isso evidencia a importância do tenente Frederico Albano Cardoso, seu capital social para com os colegas militares.

Quanto a família, assim como no necrológio de Joaquim Benjamin da Silva, não são citados nomes. No Decreto N° 1.408, de 10 de agosto de 1867 (3), em que são aprovadas as pensões concedidas ao Major Henrique José Lazary e outros dependentes de militares falecidos, foi possível encontrar o nome da mãe do tenente Frederico Albano Cardoso Pinto, D. Maria Izabel Prestes Cardoso Pinto, que passaria a receber uma pensão de 42$000 réis.

NOTAS:

(1) NORONHA, Andrius Estevam. 'Dados biographicos do extincto': análise das fontes para o estudo prosopográfico de elites locais (os necrológios). In: XI Encontro Estadual de História, 2012, Rio Grande. História de famílias nos confins meridionais: pesquisas, fontes e métodos (1600-1900). Porto Alegre: Pluscom editora, 2012. v. 1. p. 151-151.
(2) ANJOS, J. J. T. . Os necrológios e a educação da criança pela família na província do Paraná (1853-1889). Pro-Posições (Unicamp), v. 28, p. 81-102, 2017.
(3) Decreto Nº 1.408, de 10 de Agosto de 1867. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-1408-10-agosto-1867-553582-publicacaooriginal-71707-pl.html Acesso em 14/02/2018.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


NORONHA, Andrius Estevam. 'Dados biographicos do extincto': análise das fontes para o estudo prosopográfico de elites locais (os necrológios). In: XI Encontro Estadual de História, 2012, Rio Grande. História de famílias nos confins meridionais: pesquisas, fontes e métodos (1600-1900). Porto Alegre: Pluscom editora, 2012. v. 1. p. 151-151.

REIS, Arthur Cézar Ferreira. História do Amazonas. Belo Horizonte: Itatiaia/Manaus: Superintendência Cultural do Amazonas, 2° ed, 1989.


FONTES:

Amazonas, 26/09/1866.
A Voz do Amazonas, 12/01/1867.


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