segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

A Odisseia de um seringueiro

José Moraes, o seringueiro que, em poucos dias, teve a vida transformada em um verdadeiro Inferno. Foto de 1914.

 De todos os animais, o homem é o único que é cruel. É o único que inflige dor pelo prazer de fazê-lo”. - Mark Twain

José Moraes, natural do Piauí, trabalhava com seis fregueses seus no seringal ‘São Gonçalo’, da firma Asensi & Cia (Mato Grosso), “proprietária de grandes seringais no rio Ji-Paraná, no limite entre Mato Grosso e Amazonas”1. No dia 29 de agosto de 1913, José Moraes e seus fregueses partiram do seringal em direção ao barracão, com o objetivo de pedir mantimentos que já faltavam há uma semana. Chegando lá, Moraes deixou seus fregueses esperando enquanto subia o estabelecimento. José Gomes Coelho, o gerente2, recebeu o seringueiro aos gritos, dizendo que este tinha planos para eliminá-lo.

O seringueiro protestou, negando qualquer acusação. Queria urgentemente mantimentos, pois há uma semana sobrevivia apenas à base de mingau. Lembrou, no entanto, que se tinha alguma reclamação, ela se referia ao fato de que a pesagem da borracha que produzia não correspondia às suas expectativas. Novamente aos gritos, José Gomes Coelho perguntou ao seringueiro se ele achava que estava sendo roubado, no que também foi respondido no mesmo tom. O gerente refletiu, se acalmou. Pediu de Moraes a relação de mantimentos, que consistia de carne, feijão, banha e tabaco, coisas de primeira necessidade. O caixeiro Moura Ferro atendeu o seringueiro, lhe entregando os pedidos em quantidades reduzidas.

Pegos os mantimentos, era hora de esperar até o dia seguinte para voltar. Na manhã de 01 de setembro, quando se preparava para partir, foi impedido pelo gerente, que lhe informara que a ponte que ligava a região tinha desabado, tornando o retorno do grupo impossível.

José Moraes disse que dava seu jeito, pois em sua casa não havia mais comida e, além disso, sua mulher já estava em estado avançado de gravidez. O grupo, agora chefiado pelo empregado João Barbosa, teve que partir. Chegaram ao lugar onde ficava a ponte. Depois de muita dificuldade, Moraes conseguiu atravessar o rio pelos lugares menos profundos. Percebendo que demoraria para chegar em casa, mandou um de seus homens na frente com um pedaço de carne para ser entregue à família.

Às 17 horas o seringueiro Moraes chegou em casa. Um de seus filhos que estava enfermo morreu na sua ausência. Enterrou-o no dia seguinte, uma segunda-feira. Abatido física e psicologicamente, não trabalhou. Na terça-feira distribuiu os mantimentos e, acompanhado de sua mulher, partiu para o trabalho. Foi um dia calmo, aparentemente. No dia 04 de setembro o seringueiro se dirigiu a uma nova estrada para extrair o látex. Talhava uma seringueira, como era costume, quando às 10 horas foi surpreendido com um grito: - Não se mexa, cabra.

Olhando para trás, deparou-se com José Gomes Coelho, o gerente, acompanhado de 25 homens armados com rifles. Com um gesto de Gomes Coelho, dispararam contra José Moraes, que caiu rolando por uma depressão do terreno. Novos disparos foram feitos. O seringueiro, atordoado, tentou se levantar duas vezes, mas não conseguiu, ficando caído no local.

José Gomes Coelho partiu com seus capangas para a casa de José Moraes. Dispararam várias vezes contra o humilde casebre de palha. De dentro da residência ouviam-se choros. Surgiram, apavoradas, tremendo de medo, três crianças, uma de nove anos, uma de oito e outra de um ano. Elas jogaram-se de joelhos no chão, de mãos postas, pedindo desculpas e implorando por suas vidas.

A mãe ouviu os tiros e correu em socorro das filhas. Ela acabou sendo presa, junto de um freguês de seu marido, de nome Amâncio, que também tentou ajudar as crianças. Depois de um grande cerco na área, o restante dos fregueses foi preso, com exceção de um que estava em uma estrada desconhecida pelos homens de Gomes Coelho. Estes saquearam a casa de Moraes, levando o pouco que havia. Saíram dali com seus prisioneiros: a mulher e filhas de Moraes, os fregueses e suas famílias.

José Moraes não morreu, mas estava ferido. Auxiliado pelo seringueiro que não foi encontrado pelo grupo do gerente, se dirigiu até a casa de um caucheiro3 que também era freguês da firma Asensi & Cia. Ele pediu que fosse até sua casa pegar duas mudas de roupa, no que foi avisado pelo caucheiro que José Gomes Coelho o tinha proibido de prestar qualquer ajuda. No entanto, no dia seguinte, este ajudou o seringueiro.

Moraes e seu companheiro se embrenharam na mata com o intuito de alcançar o seringal em que estava o dono da firma, Carlos Miguel Asensi4. Quando atravessavam o seringal ‘Santo Antônio’, foram denunciados e presos. Nesse seringal, cujo gerente se chamava Zeca, e onde já se encontravam a mulher e as filhas de Moraes, bem como os demais presos, foram todos entregues a José Alves de Sant’Anna, que os levaria para o seringal ‘São Paulo’. Chegaram ao destino em 10 de setembro. Ali deviam aguardar a chegada de Antônio dos Reis Cavalcante, um dos sócios de Asensi & Cia, que cuidaria do destino dos prisioneiros.

José Alves lembrou José Rodrigues, gerente do ‘São Paulo’, de que os presos deveriam ser castigados, sendo preparados feixes de varas de goiabeira. José Rodrigues, em um primeiro momento, relutou, mas no dia seguinte ele mesmo espancou até a morte o jovem Pedro Caboclo, um dos fregueses presos. Antônio dos Reis Cavalcante não apareceu, sendo os prisioneiros levados para outro seringal, o ‘Dois de Novembro’. Antes de partir, Sant’Anna decidiu que os homens presos, a cada pausa no trajeto, tivessem as mãos açoitadas. Aqueles que tentassem reagir ou fugir teriam a cabeça cortada.

José Moraes suplicou para que não lhe batessem. Viu o estado em que ficaram as mãos de seus companheiros. José Alves concordou e, em troca, Moraes lhe venderia abaixo do preço um gramofone que possuía. Talvez esse objeto não existisse, mas foi o que bastou para que não tivesse suas mãos varadas. No dia seguinte chegaram ao ‘Dois de Novembro’, gerido por Fuão Ricardo, estando ali Miguel Leitão, relacionado à firma Asensi.

José Moraes, algemado e abatido, comia e bebia com a ajuda da mulher, assim como os seus companheiros. Leitão decidiu que tal situação, para ele “promíscua”, não deveria continuar: Os homens deveriam ser separados das mulheres, elas para Manaus e eles para Pimenta Bueno. Os prisioneiros imploraram, mas não foram atendidos. Os homens foram enviados na frente, enquanto as mulheres ficariam mais um tempo antes de ir. Durante a viagem, Moraes e um companheiro conseguiram fugir e, com um prego, tiraram as algemas.

José Moraes decidiu voltar ao ‘Dois de Novembro’, onde conseguiu, sorrateiramente, falar com a mulher, pedindo que ela fugisse e o esperasse no ‘Primor’. Sua mulher conseguiu fugir, indo para o local indicado, onde o filho nasceu. Moraes não apareceu, e a mulher partiu para Humaitá, onde deixou o filho com uma família caridosa, e uma mala que possuía, embarcando posteriormente para Manaus. A demora do seringueiro tinha explicação: Ele continuava se esgueirando pela mata, pois continuava sendo procurado por seus algozes. Chegando ao ‘Primor’, negaram a passagem de sua mulher. Voltou ao Mirary e de lá foi para Humaitá.

Conseguindo notícias da esposa, vendeu a mala que ela deixara na casa da família, conseguindo uma soma para vir até Manaus. Chegou a bordo do navio ‘Fortaleza’, em 10 de janeiro de 1914. Foto até a Santa Casa de Misericórdia na esperança de encontrá-la, o que não ocorreu. Nunca mais soube do paradeiro dela ou das filhas. A Odisseia do seringueiro José Moraes não teve um final semelhante à de Odisseu (Ulisses), que conseguiu voltar para Ítaca, para sua esposa e retomar seu lugar de rei. Talvez ele não esperasse que sua vida se tornaria um inferno ao questionar o gerente do seringal. O que ele conseguiu foi nos legar um relato5 que, depois de mais de um século, sai das sombras do esquecimento, ganhando vida e importância histórica, tornando-se registro de um cotidiano de sangue e de bala, das relações desumanas dos seringais. A Amazônia foi e ainda é uma fronteira, palco de conflitos, de punição, de resistência, de articulação de diferentes modos de produção, assentada sobre o sangue e os ossos de vários José Moraes.


NOTAS:

1 MACIEL, Laura Antunes. A nação por um fio: caminhos, práticas e imagens da “Comissão Rondon”. São Paulo, Educ/Fapesp, 1998, p. 261.

2 O gerente fazia parte do corpo burocrático do seringal, que incluía o encarregado de depósitos e o guarda-livros. Entre os seus deveres estava o de zelar e vigiar a casa que dirigia e fazer com que todos produzissem e vivessem satisfeitos. Cf. TEIXEIRA, Carlos Corrêa. Servidão Humana na Selva – O aviamento e o barracão nos seringais da Amazônia. Manaus: Editora Valer/Edua, 2009.

3 O caucho (castilloa ulei) é uma planta da região amazônica, de mata de terra firme, de onde também se extrai o látex, mas este é inferior ao da seringueira. Pode ser encontrada no Brasil, no Peru, na Bolívia, na Colômbia e no Equador.

4 Carlos Miguel Asensi tinha como sócio o coronel Leovigildo Machado. MACIEL, Laura Antunes. A nação por um fio: caminhos, práticas e imagens da “Comissão Rondon”. São Paulo, Educ/Fapesp, 1998, p. 144.

5 José Moraes foi ouvido pelos redatores do Jornal do Comércio em 11/01/1914, que publicaram sua história em 12/01/1914 com o título ‘Odysséa de um seringueiro - José Moraes relata-nos o seu martyrológio – Cortem a cabeça, a casa garante!’.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

MACIEL, Laura Antunes. A nação por um fio: caminhos, práticas e imagens da “Comissão Rondon”. São Paulo, Educ/Fapesp, 1998.

TEIXEIRA, Carlos Corrêa. Servidão Humana na Selva – O aviamento e o barracão nos seringais da Amazônia. Manaus: Editora Valer/Edua, 2009.


FONTE:

Jornal do Comércio, 12/01/1914.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Inscrições e tradição da América Pré-Histórica, especialmente do Brasil: O Champollion amazonense


Reproduzo, a seguir, um texto publicado em 1927 na revista 'O Acadêmico', da antiga Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais de Manaus, que aborda o trabalho de tradução de epígrafes antigas no Brasil e em outros países pelo arqueólogo, linguista e numismata amazonense Bernardo de Azevedo da Silva Ramos (1858-1931), referido 'Champollion amazonense', lembrando assim o trabalho de Jean-François Champollion (1790-1832), o famoso linguista e egiptólogo francês.


O CHAMPOLLION AMAZONENSE

O Amazonas, grande em tudo, possui em seu seio uma alta individualidade que uma vez conhecida nos grandes centros científicos, tornar-se-a uma celebridade mundial.

Queremos nos referir ao sábio amazonense coronel Bernardo Ramos, tradutor das inscrições lapidares, não só do Brasil, como de diversas partes do mundo. 

E como o grande cientista chegou a desvendar tão precioso mistério?

O coronel Bernardo Ramos, dando-se ao fatigante trabalho de colecionar moedas, organizou a terceira coleção numismática do mundo, hoje de propriedade do Estado, e, findo esse trabalho, verificou que entre as diversas moedas, anteriores à nossa era cristã, muitas de suas inscrições eram semelhantes às que se encontravam em rochedos e pedras do nosso país.

Há mais de vinte anos que o coronel Bernardo Ramos vem empreendendo novas investigações, chegando afinal, depois de muito estudo e paciência, a decifrar as inscrições lapidares existentes no território nacional, passando as suas indagações a outros países da América do Sul, da América do Norte, da América Central, como da Europa, da Ásia e da África.

Assim como Champollion, célebre orientalista francês, que em 1821 após várias tentativas de sábios em pesquisas para traduzir os hieróglifos, escrita pela qual "os egípcios exprimiam tudo que respeitava às ciências e às artes, ou para representar ideias misteriosas de sua religião", conseguiu desvendar o segredo daquele povo, Bernardo Ramos, o notável cientista amazonense, decifrou as inscrições lapidares do Brasil.

Descoberta a chave da escrita de nossas pedras, o coronel Bernardo Ramos lançou as suas vistas para outros países, encontrando sempre semelhança, nas nossas inscrições, com as de outras nações.

Pelos estudos do paleógrafo amazonense, ficamos sabendo que muito anterior à Cristo passou pelo nosso Continente uma grande civilização.

Entre as decifrações do Brasil, figuram como muito importantes as da Gávea, no Rio de Janeiro, dando notícia da passagem por ali de navegantes fenícios, (887-856 antes da nossa era) e da Pedra Lavrada, na Paraíba do Norte, cuja inscrição em grego antigo datando cerca de mil anos a.C., representa 708 signos, emblemas, astros, constelações, etc.

Além disso, o reputado sábio amazonense tem traduzido outras inscrições que se encontram em pedras do Amazonas, Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Bahia, São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Destaca-se ainda a decifração de algumas inscrições lapidares existentes na Colômbia, Guiana Inglesa, Venezuela, Guatemala, México, Argentina e Chile, como uma infinidade em várias regiões dos Estados Unidos da América do Norte.

Computando as inscrições lapidares do Continente americano com as conhecidas na Escócia, em Leon, da Espanha, na França, em Creta, na Índia e na África Austral, o coronel Bernardo Ramos encontrou absoluta identidade de caracteres alfabéticos, como de conceitos, tudo provando afinidade existente para o entendimento entre povos antiquíssimos, por meio de uma escrita seguida nos diversos continentes.

A esse tempo, o nosso continente era conhecido pelo nome Croniano, segundo as descobertas do coronel Bernardo Ramos.

Em 1922, o nosso ilustre coestaduano transportando-se ao Rio de Janeiro, fez ali diversas conferências sobre este importante assunto, conferências essas que foram presididas pelo preclaro senador Epitácio Pessoa, então Presidente da República.

Já anteriormente, o coronel Bernardo Ramos, no Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, numa sessão presidida pelo então Bispo da Diocese, D. João Irineu Joffely, apresentara a sua tese sobre as inscrições lapidares existentes em diversos pontos do país.

Diante do sucesso alcançado na Capital da República, o deputado Daniel Carneiro, então representante cearense, apresentou, juntamente com a bancada paraibana, um projeto autorizando o governo a mandar imprimir a valiosa obra do coronel Bernardo Ramos.

Recebendo o respectivo projeto algumas emendas no Senado, voltou à Câmara, onde ainda se acha, a fim de que esta tomasse conhecimento das alterações daquela casa do Congresso.

A obra aludida compõe-se de quatro volumes com mais de duas mil inscrições lapidares, devidamente traduzidas, sem falar num grande número de cerâmicas, em que o cientista coestaduano prova que a escrita usada pelos assírios e babilônios, etc, era da mesma forma seguida pelos gregos.

A publicação dessa obra virá a ser o maior acontecimento do século, porque, desvendando um segredo sepultado em milênios, nos colocará em contato com uma remota civilização, cuja notícia se perde na noite dos tempos.

Devido a esses estudos em escavações de um passado longínquo, nós amazonenses, ficamos sabendo que, muito anteriormente à era cristã, existiu no Uatumã, do Estado, uma Assembleia ilíada, encontrando o erudito conterrâneo vestígios de leis de Sólon.

O professor Ludovico Schewennehagen, um estudioso também do assunto, publicou na 'A União', do Estado da Paraíba, de 15 de março último, um magistral artigo, em que analisando o trabalho do nosso ilustre coestaduano, o considerou como digno de ser "colocado na primeira linha das coleções epigráficas".


FONTE:

O Acadêmico: Órgão do Centro Acadêmico da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais de Manaus. 31/10/1927


quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

A condição do negro após a Abolição: cenário político-social e mecanismos de exclusão

Família de negros no Morro da Babilônia, no Rio de Janeiro. Foto do início do século XX.

A recente produção acadêmica na área das Ciências Humanas sobre o Brasil no período do Segundo Reinado abriu novos horizontes de possibilidades de pesquisa e de questionamentos. A partir de indagações, críticas e a inserção de novos elementos na investigação, passou-se a desmistificar antigas concepções até então enraizadas na historiografia. A escravidão, o processo de abolição e a condição do negro após sua concretização foram alguns dos temas que passaram a ser analisados a partir de novas perspectivas. A figura de "redentores" de certos agentes do Império e a "bondade" dos proprietários de escravos são exemplos do que foi repensado.

A historiador Wlamyra Albuquerque, em O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil, afirma que, mesmo com a dissolução das relações jurídicas entre senhores e escravos, do fim de uma legislação que sustentava a relação de domínio sobre o outro por sua condição, surgiram, paralelamente às "mudanças", novos mecanismos que impediam o acesso dos homens de cor ao cenário político-social que se firmava com a nova conjuntura política.

Dentro de uma linha da História social e cultural, também compartilhada do campo das representações, a socióloga Angela Alonso e a historiadora Lilia Moritz Schwarcz analisam o período, o processo de abolição e os projetos que foram pensados para a posteridade. 

Angela Alonso e Lilia Moritz compartilham de um recorte cronológico que, à exceção de alguns momentos, vai da década de 1870 até 1880, podendo, em alguns casos, ser perpassado. Verifica-se nesse período o aumento das discussões e dos embates entre setores da Monarquia e dos Republicanos abolicionistas, entre conservadores e progressistas.

Aliás, falando em embates, o título do livro de Angela Alonso, Flores, Votos e Balas: O movimento abolicionista brasileiro (1868-88), é bastante sugestivo, sendo uma exemplificação das principais etapas desse período. As 'flores' se referem aos debates, no seio de alguns setores políticos da Monarquia, sobre as possibilidades de se abolir a escravidão, que já era vista como uma forma de trabalho que não se adequava mais às nações que tinham o anseio de se modernizar. No caso dos 'votos', o que está em jogo é o enfraquecimento dos saquaremas, os políticos conservadores, e a ascensão dos liberais e progressistas, o que acabou por abrir o caminho para o fim da escravidão. As 'balas' são a fase mais turbulenta, marcada por ações armadas, pela repressão, pelo uso de força e pela violência de contrários e favoráveis.

Angela, de uma perspectiva sociológica, identifica como fator íntimo das discussões sobre a abolição a introdução de ideias positivistas no Império e a urbanização e desenvolvimento do capitalismo industrial. Monarquia, Catolicismo e Escravidão formavam um tripé rudimentar e um obstáculo para a introdução de um novo modo de produção econômica.

Lilia Moritz Schwarcz, em Dos males da dádiva: sobre as ambiguidades no processo da abolição brasileira, analisa, em um primeiro momento, as formas como a abolição foi apropriada pela Monarquia, que criou para si a imagem de sistema popular redentor das pessoas de cor, acreditando que tal ação traria a recuperação de um modelo político já bastante desgastado. Com o fim da escravidão e a não indenização dos proprietários, a Monarquia ruiu, sendo extinguido o Império de Dom Pedro II. As apropriações e projeções não partiram apenas do Estado Imperial. Schwarcz identifica proprietários, homens brancos da elite, se apresentando ou sendo apresentados em jornais da época como "bons samaritanos" ao alforriar seus escravos. As libertações, destaca, tornavam-se motivo de festas onde imperava a passividade do escravo e a suposta bondade de seu dono.

Diferente de outras partes da América, o Império e as elites passaram a imagem de que a emancipação dos escravos foi pacífica, sem maiores tumultos que perturbassem a ordem. As supostas relações de apadrinhamento, de proximidade e cordialidade eram utilizadas para manter os libertos nas propriedades de seus antigos senhores. Paga-se, agora, um salário, um baixo salário, prendendo assim o negro à terra, o que, de certa forma, compensava o antigo dono de suas perdas com o fim do sistema escravista.

Nos anos finais do Império e com o advento da República, ganharam terreno ideias de determinismo racial e de paternalismo. As pessoas de cor, mesmo libertas, continuavam em um plano inferiorizado. Como inserir tão grande contingente na sociedade? O ex-escravo precisava ser civilizado, se libertando de seus costumes, em um processo lento mas necessário para os dirigentes e agentes econômicos do capital. O Estado e os novos proprietários assumem a posição de paternalistas nesse processo. Para endossar os novos mecanismos de diferenciação social, surgem distinções linguísticas: Preto e Negro. O preto é o tipo ideal, submisso, indiferente, fácil de controlar, dócil e disposto ao trabalho. O negro é rebelde, violento, o fugitivo que forma quilombos na mata. Uma matéria publicada no Correio Paulistano, em 13/05/1895, mostra a visão que se tinha dos ex-escravos:

"O que eles dizem e o que eles fazem

(...) e a boa raça africana, tão dócil, tão afetiva, tão amiga, fator de riqueza nacional, a velha raça de Caim, em cujas tetas submissas bebemos, grande parte de nossa vida nacional está aí a nosso lado, humilde e sempre boa, honesta, moderada, serviçal, proliferando em paz, entregue a si mesma, sem incomodar os brancos. Que simpatia por essa velha pária da existência! Que beleza no seu fetichismo, na sua aflição primitiva, no amor que tem aos filhos dos brancos! Incorporada ao povo brasileiro, ela que não nos incomoda vive conosco à parte, sentindo conosco as coisas que sentimos...." (CUNHA E GOMES, 2007, p. 31)

Juridicamente o negro não era mais escravo, mas, por outros meios, continuava em uma posição que lembrava os tempos não tão antigos do Império. Ele não era mais um incômodo, a lembrar do medo das elites de uma rebelião nos moldes da que ocorreu no Haiti, mas vivia à parte da sociedade. Portanto, mesmo após o fim da escravidão, surgiram novos mecanismos que dificultaram a inserção dos ex-escravos, dos negros, na sociedade. Pode-se pensar, como afirma Angela Alonso, que a Abolição foi um movimento plenamente arquitetado pelas elites que buscavam espaço, agora, em um novo sistema político, econômico e social.


BIBLIOGRAFIA:

ALONSO, Angela. Flores, Votos e Balas: O movimento abolicionista brasileiro (1868-88). São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Dos males da dádiva: sobre as ambiguidades no processo da abolição brasileira. In: GOMES, Flávio dos S; CUNHA, Olívia Maria da. (organizadores). Quase cidadão. Histórias e antropologias da pós-emancipação. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.



CRÉDITO DA IMAGEM:

http://guiajosecarlosmelo.blogspot.com.br





segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

A Revolta de 14 de Janeiro de 1892

Igreja de Nossa Senhora de Fátima em 1969, ainda em obras. Foto de Jankiel cedida pelo pesquisador Ed Lincon.

O bairro Praça 14 de Janeiro, localizado na zona Sul de Manaus, fronteiriço aos bairros Centro, Cachoeirinha e Adrianópolis, tem suas origens ligadas aos conflitos políticos característicos da Primeira República no final do século XIX, e também às ondas migratórias vindas do Nordeste nesse mesmo período. Dividirei o texto em duas partes, a primeira sobre a revolta de 14 de Janeiro de 1892, data referência para o bairro; e a segunda sobre sua evolução ao longo do tempo.

O alvorecer da República em Manaus foi marcado por disputas políticas entre os partidos Democrático e Nacional. Após a passagem de Augusto Ximeno de Villeroy pelo recém instalado Governo do Estado do Amazonas (04/01/1890 - 02/11/1890), assumiu o governo Eduardo Gonçalves Ribeiro, até então Oficial de Gabinete e Diretor de Obras Públicas. Em pouco tempo, Eduardo Ribeiro, entre outras coisas, aumentou as rendas do município, decretou uma constituição provisória e diminuiu pela metade a dívida pública.

O governo central destituiu Eduardo Ribeiro, do Partido Democrático, de seu cargo, nomeando para o governo o coronel Gregório Thaumaturgo de Azevedo, antigo governador do Piauí entre 26/12/1889 e 04/06/1890 (1), que naquele momento encontrava-se em Recife. A notícia da destituição de Eduardo Ribeiro não agradou a população:

"O povo, convocado em boletim, reuniu-se à tarde, em frente ao palácio, não consentindo que Eduardo Ribeiro deixasse a governança. Aclamou-o entusiasticamente. Os oradores sucederam-se em vários pontos da cidade, protestando contra o ato dos altos poderes da República, lavrando-se uma ata (1884-1891), que foi assinada por centenas de pessoas de todas as classes sociais" (2).

Thaumaturgo de Azevedo continuou em Recife. No entanto, o capitão de fragata José Inácio Borges Machado, a serviço do governo central, intimou Eduardo Ribeiro a deixar o governo nas mãos do Coronel Guilherme José Moreira, 1° vice-governador, e este assim o fez em 05/05/1891. Guilherme Moreira foi substituído pelo interventor federal Coronel Antônio Gomes Pimentel em 25/05/1891, imbuído da missão de executar as ordens do governo central para o Estado (3). 

A maioria do Congresso Constituinte do Amazonas era formada por membros do Partido Democrático. Influenciado pelo interventor Antônio Gomes Pimentel, elegeu como governador Gregório Thaumaturgo de Azevedo e, como vice, Guilherme José Moreira. Como Gregório ainda não estava em Manaus, Guilherme José Moreira ficou à frente do governo, tomando algumas medidas que favoreciam os membros de seu partido. Vindo do Rio de Janeiro, Gregório Thaumaturgo foi empossado governador em 01/09/1891. Vendo as medidas tomadas por Guilherme Moreira, desentendeu-se com os Democráticos.

O novo governador tinha um plano ambicioso para estruturar a capital e o interior, o que demandava grandes somas. Solicitou, em 15/09/1891, o empréstimo de 14.000.000$000. Apresentando suas medidas, mal recebidas pelos Democráticos (o empréstimo foi negado), e desfazendo algumas tomadas anteriormente por seu vice, rompeu com o partido (4). Tinha início, assim, a ferrenha oposição dos Democráticos ao governador Thaumaturgo de Azevedo, apoiado pelo Partido Nacional. De acordo com Arthur Cezar Ferreira Reis, as acusações contra o governador eram as seguintes:

"[...] de ter lesado o Estado em 24:000$000 que deixara de pagar ao transferir os seus direitos à Companhia Vila Brandão, como contratante de uma empresa predial, e de ter realizado essa transferência já no governo, o que taxavam de ilegal e pouco liso" (5).

A situação de Gregório Thaumaturgo de Azevedo piorou quando o Presidente Marechal Deodoro da Fonseca renunciou ao cargo em 23/11/1891, entregando o país ao vice Floriano Peixoto. O democráticos contavam com o apoio de Floriano Peixoto, condição que perfeitamente delineou os rumos de uma revolta para depor o governador do Amazonas. No dia 14 de janeiro de 1892, data referência para o bairro Praça 14 de Janeiro, teve lugar a Revolta de 14 de Janeiro, como passou a ser referenciada nos jornais:

"[...] a 14 de janeiro, à tarde, teve lugar na Praça General Osório, fronteira ao quartel do exército, um meeting, promovido pelos democráticos. Os oradores inflamaram-se, aclamando o capitão de fragata José Ignácio Borges Machado, comandante da flotilha, capitão Porfírio Francisco da Rosa, comandante interino do 36 de infantaria, e desembargador Luiz Duarte para formarem a junta que deveria governar o Estado até a chegada de Eduardo Ribeiro, proclamado governador na reunião. A seguir, uma comissão, composta dos srs. Lima Bacuri, dr. Almino Alvares Afonso e major Leonardo Antônio Malcher, dirigiu-se ao palácio, no propósito de intimar o dr. Thaumaturgo a deixar o poder. Recebida, antes de terminar a missão de que estava encarregada foi expulsa, maltratada, espancada, jogada pelas escadarias de palácio abaixo. Houve tiros e mortos. O coronel Lima Bacuri e o dr. Almino Afonso saíram feridos a bala, enquanto o major Malcher sofria escoriações assás graves pelo corpo. O meeting dissolveu-se, pois os que dele participavam não dispunham de armas para reagir e o pânico era grande" (6).

Houve uma única morte, a do soldado do Batalhão Militar de Polícia João Fernandes Pimenta, que deixou mulher e seis filhos menores (7). Gregório Thaumaturgo acusou o coronel Lima Bacuri de ter sido o responsável pelo disparo que vitimou o soldado. No entanto, como este também fora ferido durante a confusão, e os depoimentos serem bastante divergentes, nada foi comprovado (8). O Intendente Municipal Sérgio Pessoa, de forma a homenagear o falecido, sugeriu que a então Praça da Conciliação passasse a ser denominada Praça Fernandes Pimenta, e que lhe fosse concedido um jazigo perpétuo no Cemitério São João Batista (9). Essa nomenclatura parece não ter vingado por muito tempo, pois no final desse mesmo ano o local já aparece referenciado como Praça 14 de Janeiro (10).

Voltando ao motim, Gregório Thaumaturgo abandonou o palácio, mas não entregou seu cargo. Decretou, por 30 dias, estado de sítio na capital. Em outro decreto, de 22/01/1892, desterrou os principais líderes Democráticos para São Paulo de Olivença e Tabatinga:

"Art 1° - São desterrados para S. Paulo de Olivença, o Barão do Juruá, o Dr. João Franklin de Alencar Araripe e o Dr. Arminio Adolpho Pontes e Souza; para Tabatinga, o Tenente-Coronel Emílio José Moreira, Dr. Luiz Duarte da Silva, Dr. José Tavares da Cunha Mello e Dr. Antonio Henrique de Almeida Junior" (11).

Arthur Reis incrementa essas informações, tendo sido também desterrados "Raymundo Antonio Fernandes, para Airão, Francisco Joaquim Ferreira de Carvalho, para Moura; e Desembargador José Antonio Floresta Bastos e capitão Leonardo Antonio Malcher para Carvoeiro" (12). O governo federal ficou ciente da situação, ordenando que Thaumaturgo de Azevedo entregasse o governo ao capitão de fragata José Inácio Borges Machado. O governador negou e, por ordem do Presidente Floriano Peixoto, tenentes do exército e da marinha do RJ desembarcaram em Manaus, reunindo-se com os Democráticos. Ambos preferiram agir não pela força das armas, mas a partir de uma intimação. Cercado por todos os lados, Gregório Thaumaturgo entregou o governo a Borges Machado, que governou de 27/02/1892 até 11/03/1892, entregando o cargo a Eduardo Gonçalves Ribeiro, que dissolveu o Congresso, sendo eleito governador, assumindo em 23 de julho de 1892.


NOTAS:


(1) LOPES, Raimundo Helio. Gregório Thaumaturgo de Azevedo. Verbete, CPDOC, s.d.
(2) REIS, Arthur Cezar Ferreira. História do Amazonas. 2° Ed. Belo Horizonte: Itatiaia; Manaus: Superintendência Cultural do Amazonas, 1989,  p. 249.
(3) PONTES FILHO, Raimundo Pereira. Estudos de História do Amazonas. Manaus: Editora Valer, 2000, p. 148.
(4) REIS, Arthur, op cit, p. 251-252. Arthur Cezar Ferreira Reis cita que, uma das medidas tomadas por Thaumaturgo de Azevedo que desagradou os Democráticos foi o pedido de rescisão do contrato de esgotos feito por Guilherme Moreira, por considerá-lo oneroso e prejudicial à higiene pública. A Assembleia negou o pedido.
(5) REIS, Arthur, op cit, p. 252.
(6) Ibidem, p. 253.
(7) João Fernandes Pimenta. Diário de Manáos: Propriedade de uma Associação. 17/01/1892.
(8) Amazonas: Órgão do Partido Republicano Democrata, 10/11/1892. Uma das testemunhas afirmava que o coronel Lima Bacuri havia entrado no palácio portando um revólver, quando foi comprovado que o tiro que vitimou João Fernandes Pimenta era de um fuzil da polícia.
(9) Diário de Manáos: Propriedade de uma Associação, 07/02/1892.
(10) Amazonas: Órgão do Partido Republicano Democrata, 28/12/1892.
(11) Diário de Manáos: Propriedade de uma Associação, 22/01/1892.
(12) REIS, Arthur, op cit, p. 253.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Edifício Benchimol & Irmão, entre as ruas Marcílio Dias e José Paranaguá

Edifício Benchimol & Irmão. À esquerda, em 1969; à direita, em 2014.

Diariamente passamos por construções que possuem suas origens desconhecidas. São edifícios, casarões e palacetes em sua maioria abandonados, administrados de longe, com alguns raros exemplares preservados. O tempo é corrido e, dadas as circunstâncias, ficar parado observando esses locais em vias públicas tornou-se algo bastante arriscado, dado o aumento considerável da criminalidade. Após fazer a pesquisa sobre o casarão abandonado da família Grosso, na Av. Joaquim Nabuco, decidi que iria a campo para esmiuçar as origens (ou parte delas) de algumas dessas construções do Centro e de outras partes da cidade. O prédio do texto de hoje é o antigo Edifício Benchimol & Irmão.

Localizado entre as ruas Marcílio Dias e José Paranaguá, em frente a Praça da Polícia (Heliodoro Balbi), o Edifício Benchimol & Irmão foi uma das várias construções erguidas na cidade com uma arquitetura modernista, em consonância com as transformações econômicas surgidas com a instalação da Zona Franca. Era o momento de recuperação da cidade e de integração do estado ao Brasil como área de pleno desenvolvimento.

Sobre sua inauguração, em 23 de outubro de 1969, lê-se o seguinte em uma nota do Jornal A Crítica:

“Foi inaugurado ontem o moderno edifício da firma Benchimol & Irmão, localizado na esquina da rua Marcílio Dias com a Praça Roosewelt, sendo as suas linhas modernas todas revestidas de pastilhas. Na parte térrea funcionará mais uma loja Bemol para a venda de eletrodomésticos, e nos seus 5 andares confortáveis apartamentos e salas para escritório. É mais uma contribuição do grupo comercial comandado pelos irmãos Samuel e Saul Benchimol, para o embelezamento de nossa cidade”¹.

No lugar onde foi construído esse edifício existiu uma construção com várias portas que serviu de Biblioteca Pública. Em 1895 o então governador Eduardo Gonçalves Ribeiro reorganizou a Biblioteca Pública do Estado², transferindo seu material do Gymnásio Amazonense para esse prédio, onde a instituição passou a funcionar:

“Não possuindo o Estado um edifício apropriado para o serviço da Bibliotheca e não havendo mesmo nesta capital um próprio em condições de servir, lancei mão dos acanhados comodos de um armazem situado à Praça da Constituição e para elle mandei transportar os restos da antiga Bibliotheca Publica que se achavam em uma sala do Gymnazio Amazonense”³.

Esse antigo armazém, transformado entre 1895-96 em Biblioteca Pública, aparece em uma fotografia de 1902 da praça, naquela época denominada da Constituição, de autoria de Felipe Fidanza e publicada no Álbum do Amazonas.

Atrás do Batalhão da Polícia Militar do Amazonas, o antigo armazém onde décadas mais tarde foi construído o edifício. Foto de 1902.

O Edifício Benchimol & Irmão abrigou uma filial das lojas Bemol até a década de 2000. Mais tarde passou a funcionar no térreo a Celina Decoração.


NOTAS:

¹ Jornal A Crítica, 24/10/1969.
² Governo do Estado. Decreto N° 86 de 17 de outubro de 1895.
³ Mensagem lida perante o Congresso dos Srs. Representantes em 1° de março de 1896 pelo Exm. Sr. Dr. Eduardo Gonçalves Ribeiro, Governador do Estado.


AGRADECIMENTOS:


Ao pesquisador Ed Lincon, por ter cedido o recorte do jornal A Crítica.


CRÉDITO DAS IMAGENS:

Jornal A Crítica, 23/10/1969
Google Maps, 2014
Álbum do Amazonas - 1902

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

Uma ida aos cinemas do passado

Da esquerda para a direita: Dona Yayá; o pesquisador Ed Lincon; e um cartaz do filme 'As Três Espadas do Zorro'.

Reproduzo, a seguir, uma entrevista do amigo e pesquisador Ed Lincon para a Revista Amazônia Cabocla, realizada em dezembro do ano passado. Ed Lincon, que se tornou o maior conhecedor da história dos cinemas da cidade, conta um pouco de sua vivência nesses espaços e de sua trajetória de pesquisas. Confiram:

De pergunta em pergunta, de curiosidade em curiosidade, Ed Lincon Barros da Silva acabou por se tornar o maior conhecedor das histórias dos cinemas de Manaus, desde a primeira exibição de filmes, ocorrida em 1897, no Teatro Amazonas.

"Comecei a me interessar pelas histórias dos cinemas locais a partir dos relatos que ouvia dos mais velhos e que falavam das salas que eu não conhecera, inclusive algumas demolidas. Era o Odeon, o Avenida, o Polytheama, o Éden, o Palace, o Vitória, o Ideal. Só conheci, e frequentei, o Guarany, o Ipiranga e o Popular, este, havia mudado de nome para cine Pop", contou.

E o primeiro cinema frequentado por Ed, o Guarany, tornou-se sua paixão. "A primeira vez que fui a uma sala de cinema, em 1976, eu tinha sete anos e nem sabia ler, mas jamais esqueci o nome do filme, 'As Três Espadas do Zorro', legendado. Me encantei de imediato por aquilo que só via na TV, em preto e branco. Foi a primeira vez que assisti a um filme colorido", disse.

A SINA DOS SETE

"O Guarany parecia um castelo, em estilo mourisco. A estrutura interna dele era algo fascinante, além do que havia sido um teatro. Fiquei muito triste quando soube que seria demolido, o que aconteceu em 1984. Sua fachada era pintada num tom verde bem claro, quase branco. Somente ao redor da bilheteria era pintado de verde escuro", recordou. "No aniversário do cinema, colocavam a tela na praça Heliodoro Balbi e viravam o projetor nessa direção, passando filmes de graça e distribuindo brindes. E tinham as portas laterais, imensas, que deslizavam sobre trilhos e em noites de muito calor, ficavam abertas", explicou. "E descobri a sina do número sete que o perseguiu até o fim. Os três nomes que o prédio teve: Julieta, Alcazar e Guarany tinham sete letras. Foi inaugurado em 1907 e fechou em 1984, 77 anos depois. Ficava na esquina com a avenida 7 de Setembro, e tinha nos muros da fachada, sete portais de cada lado. O terreno foi adquirido em 1897", listou.

"O Odeon foi o único que teve duas versões. A primeira construída exclusivamente para cinema, pois nem palco tinha, com os outros. Depois, na década de 1950, ficou luxuoso e foi o primeiro a possuir ar condicionado na cidade, enquanto os demais continuaram com ventiladores. O Avenida tinha a dona Yayá, esposa do sr. Aurélio, sócio gerente da empresa Bernardino. Ela ficava na entrada do cinema contando trechos do filme em exibição para os mais exitantes em entrar. Chamava a atenção o rosto exageradamente maquiado pelo rouge", completou.

SEM ENCANTO

Ed Lincon passou a pesquisar mais profundamente as histórias dos cinemas a partir de 1994. "Pesquisei na Biblioteca Pública, no Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, na biblioteca da Associação Comercial e na internet. Meu pai, tios, primos e vizinhos que conheceram aquelas salas, me ajudaram bastante, bem como a professora Selda Vale da Costa e Joaquim Marinho, o empresário que mais cinemas teve em Manaus. Selda e Marinho, além de informações valiosas, também me deram rico material de seu acervo pessoal", afirmou.

Já os cinemas atuais, não encantam Ed Lincon. "Os cinemas dos shoppings perderam o encanto que as antigas salas possuíam porque não tem nomes e são todos parecidos. A arquitetura das salas antigas era outra coisa que chamava a atenção. Eu não vou mais ao cinema por falta de tempo, ingressos, pipoca e refrigerantes caros e violência nas ruas. Prefiro assistir aos filmes em casa, em DVD. É mais cômodo. Mas assistir na tela grande ainda me encanta", finalizou.


Uma ida aos cinemas do passado. Revista Amazônia Cabocla, dezembro de 2017, p. 20-21.