quinta-feira, 7 de julho de 2016

O Método Histórico

O bispo Virgil von Salzburg (746-784) medita profundamente sobre um texto que leu.

O trabalho do historiador, para o senso comum, se resume em uma simples seleção e memorização de fatos dispersos no tempo, cada um com suas especifidades. Esse trabalho, na verdade, consiste de um método histórico, ordenado da seguinte forma: 1) escolha do tema de estudo; 2) coleta de informações sobre ele; 3) análise crítica das informações reunidas; 4) estabelecimento de relação entre os fatos; 5) por último são tiradas conclusões. As etapas variam de historiador para historiador. Ciro Flamarion, da área da História Antiga, sugere quatro: seleção de tema, coleta de dados, crítica e elaboração, síntese e redação.

Num primeiro momento, o profissional da História já deve ter em mente, quando for realizar uma pesquisa, do tema a ser estudado. Geralmente, se escolhe algo de interesse pessoal; algo que tenha despertado a curiosidade. Um detalhe: tem que ser feito um recorte sobre o tema. Algo muito geral dificulta a pesquisa. Substitua, por exemplo, uma História Geral do Amazonas por Amazonas Colonial entre 1750 e 1800.

Um dos diferenciais que a pesquisa pode ter é o ineditismo. O pesquisador pode apresentar para a comunidade um tema nunca antes trabalhado ou trabalhar um tema que já foi amplamente trabalhado por outros autores, mas pode apresentar este sob uma nova perspectiva.

Definido o tema, é necessário verificar se, para a elaboração de seu estudo, existem fontes (registros) sobre o tema e se estas estão disponíveis. Se existem, o historiador os seleciona e reúne para começar a dar forma a sua pesquisa. Esse processo de seleção das fontes se chama heurística. Às vez, a partir de uma única fonte, são descobertas muitas outras.

As fontes são divididas em dois grupos: as materiais e imateriais. As primeiras se referem a vestígios concretos de épocas passadas, como cartas, manuscritos, jornais, utensílios domésticos etc. As fontes imateriais são os registros intangíveis, como a tradição oral, que passa de geração em geração. O historiador, ainda analisando as fontes, as diferencia entre primária e secundária. Basicamente, as fontes primárias são registros contemporâneos ao acontecimento (ex: cartas escritas pelos inconfidentes mineiros no século XVIII). As fontes secundárias são registros indiretos posteriores a um período histórico (ex: compilação de cartas da Inconfidência Mineira feita no século XX).

Atualmente, existem várias formas de se averiguar a veracidade de um documento, como o teste de seus materiais (tinta, papel) em laboratório. Entram aí profissionais de outras áreas: arqueólogos, linguistas e antropólogos. Mas, frequentemente o historiador se vê diante de documentos sem data, sem autores identificáveis, o que torna o processo crítico mais difícil.

Reunidas as fontes, o historiador começa a se questionar sobre o (s) acontecimento (s) do passado. São feitas duas críticas: a externa e a interna. A crítica externa tem o intuito de se verificar a autenticidade do documento, se este é originário da época a qual se especula, se foi escrito pelo suposto autor ou se foram feitas alterações. Com a crítica interna o pesquisador analisa o conteúdo do documento, quais as verdades ou mentiras ele carrega, os fatores (religiosos, ideológicos) que influenciaram sua produção, as omissões, invenções e participações no acontecimento.

Verificada a confiabilidade das fontes e feitas as críticas, o historiador passa a interpretar os fatos, estabelece relações entre eles e tenta explicá-los. Ele analisa as evidências sobre um tema e levanta hipóteses, fazendo um diálogo com as fontes, tornando-as vivas. Esse processo se chama reconstrução imaginativa. A imaginação, aqui, não tem o sentido comum de criar coisas, mas sim de criatividade e talento ao extrair o máximo de informações das fontes.

A História é uma ciência que não se testa em laboratório, pois trabalha com as relações de mudança que o homem realiza no tempo. Um fato como a Revolução de 1789 não pode ser replicado. Os historiadores não buscam uma causa, mas sim múltiplas “causas” que culminaram em um evento.

O último processo da pesquisa histórica é a redação. Uma boa pesquisa merece uma narrativa de igual qualidade. Se aconselha que o pesquisador planeje a estrutura narrativa, que apresente nela o tema, os problemas, as hipóteses, as notas de rodapé e a metodologia empregada. O texto deve ser apresentado seguindo uma sequência de ideias. Devem ser evitados erros de gramática, de concordância e de ortografia. Devem ser dados os créditos para citações, notas e trabalhos de terceiros. Por último, construa uma argumentação objetiva, com boa argumentação e poder de persuasão.


FONTE:

MARTINS FILHO, Amilcar Vianna. Como Escrever a História da Sua Cidade. Belo Horizonte: Instituto Cultural Amilcar Martins, 2005, p. 39-59.



CRÉDITO DA IMAGEM:

www.ricardocosta.com



domingo, 3 de julho de 2016

As Guerras da história

A Musa Clio escrevendo história, 1763. Franz Ignaz Günther.

Resenha do capítulo 12 do livro A história dos homens (2004), de Josep Fontana. Intitulado As guerras da história, o autor nos mostra, com exemplos da Europa à Ásia, como a História, no século XX, foi sendo controlada pelo Estado e pelas classes dominantes, interessadas em garantir a "transmissão" das versões que lhes favoreciam.

A produção historiográfica sempre esteve em poder das classes dominantes, que a utiliza para manter seu status e garantir a continuidade do que é considerado uma história verdadeira. Duas questões se constituem em empecilhos para essas classes: Primeiro, nem todos os historiadores, produtores da escrita histórica, se curvam diante de suas vontades; Segundo, é necessário que se vigie constantemente os conteúdos transmitidos através do ensino, visando sempre a manutenção do status quo. As posições políticas, sempre divergentes e, muitas vezes, levadas ao extremo, têm grande peso na interpretação do passado, “o que constantemente levou a autênticas “guerras da história”1

Josep Fontana, historiador catalão, faz um breve panorama de como ficou a historiografia na Espanha durante a ditadura franquista dos anos 1930, década marcada pela ascensão dos embates políticos e ideológicos entre liberalismo, comunismo e fascismo. Nas escolas, universidades e outras instituições, a história abordada era a Nacional, com forte cunho patriótico e doutrinador. O passado espanhol era alterado em nome das convenções políticas, como quando “uma arqueologia impregnada de racismo nazista que menosprezava os iberos mediterrâneos, revalorizava os celtas “ários” - esquecendo-se definitivamente de possíveis mestiçagens celtibéricas – e que chegou a procurar, num vaso antigo, antecedentes da saudação fascista do braço erguido”2.

O panorama da Espanha não sofre grandes mudanças com o fim da Ditadura Franquista. Ao assumir o governo, o Partido Socialista Espanhol, e mais tarde o Partido Popular, continuavam a “fabricar” e difundir a produção histórica nos moldes patriotas e ultranacionalistas, com ameaça de censura aos livros que não se enquadravam aos parâmetros estabelecidos pelo Estado.

Saindo da Península Ibérica, as guerras da história se mostram mais violentas na outra parte do Mundo Ocidental, com maiores agravantes após a divisão ideológica causada pela Guerra Fria. Segundo Fontana, desde os anos 1930 se notam conflitos no ensino de História nos Estados Unidos, onde os livros que não se adequassem aos valores conservadores e patrióticos eram censurados e eliminados. A Associação Nacional de Manufaturas, nos anos 1940, possuía mais de 6.800 vigias locais, com a missão de manter a educação livre do perigo do coletivismo, que pode ser interpretado como Comunismo.

Após o fim da Primeira Guerra Mundial e a ascensão de duas forças antagônicas, Liberalismo (representado pelos Estados Unidos) e Comunismo (representado pela URSS), os Estados Unidos passaram a atacar a história progressista de historiadores como Charles Beard e Carl Becker; e a elaborar uma história objetiva, que transmitisse ensinamentos morais. Nunca houve, nas palavras de Fontana, “uma associação tão íntima entre os historiadores e o poder que se estabeleceu nestes anos3. Historiadores de prestigiadas universidades passaram a trabalhar na CIA, na OSS, no Departamento de Estado e em outros órgãos do governo. A produção historiográfica que começava a se formar nesses anos de embates ideológicos visava não só a consolidação dos Estados Unidos como principal potência mundial e a defesa dos valores tradicionais americanos, mas também atendia ao interesse governamental sobre informações dos “inimigos”. Surgem sovietólogos, kremlinólogos, matérias universitárias sobre a Ásia e a Rússia. O historiador George Kennan fixa as linhas da política norte-americana em relação a URSS; e o professor emérito de História Russa, Richard Pipes, num primeiro momento, ataca o comunismo, para mais tarde, minar o estado de bem-estar social.

Aliava-se à história, nesse período, a sociologia, surgindo a sociologia histórica, que interpretava os fatos históricos a partir de modelos sociológicos esquemáticos. Também era produzida uma história erudita, representada por maciços trabalhos de compilação documental. Sociologia Histórica e História Erudita eram voltadas para o estudo de conflitos sociais e formas de evitá-los ou contê-los. Podem ser citadas as obras de Barrington Moore Jr., Charles Tilly e Theda Skocpol.

A repressão tornou-se constante no cenário intelectual americano. Livros considerados subversivos, com tendências pró-comunistas, eram censurados. A Daughters of the American Revolution chegou a denunciar 170 livros nessa categoria, que continham, por exemplo, expressões sobre coletividade, algo considerado pró-comunista. Esse clima repressivo permitiu o surgimento de uma História baseada na predestinação, na doutrina Destino Manifesto e em outros “talentos” considerados natos dos Estados Unidos. Não eram feitas menções às conquistas dos nativos, a grupos marginalizados e não eram feitas críticas sociais. Fontana, citando Gendzier, afirma que “voltava-se, ao mesmo tempo, à doutrina da objetividade, à rejeição da “ideologia” - isto é, das ideias dos outros – e da “construção social”4

Os Estados Unidos, representantes máximos do lado liberal da Guerra Fria, tinham de estender sua influência para outros países. Seus ideais eram difundidos através do Congresso pela Liberdade da Cultura (CCF), dirigido pela CIA e amparados por recursos provenientes do Plano Marshall. Eram financiadas revistas propagandistas dos ideais norte-americanos da Europa à Oceania: Na França, existiu a publicação preuves; na Grã-Bretanha, a Encounter; Cuadernos, na Espanha; Tempo Presente, na Itália; e outras de mesmo cunho na Austrália, na Índia e no Japão.

Outros campos do conhecimento humano passaram por transformações radicais dentro desse contexto. No campo das Artes, por exemplo, o realismo, vertente utilizada para popularizar as artes, é substituído pelo expressionismo abstrato. Essa vertente tem uma linguagem complexa, entendida apenas por uma pequena elite intelectual. As exposições dos artistas expressionistas abstratos eram financiadas pela CIA. No curso de Letras das universidades, língua e literatura passam a ser estudados sem se levar em conta o contexto social e histórico, apenas o conteúdo do texto. É um estudo elitista, que evita críticas tanto da direita quanto da esquerda. No estudo de Ciências Sociais, a National Science Foundation pedia para aqueles que solicitassem apoio para seus estudos evitar qualquer ligação com reformas ou bem-estar social. Se o apoio viesse da iniciativa privada, os pedidos eram, por exemplo, que se evitassem pesquisas sobre relações de raça.

Dando um salto cronológico de quase 50 anos, Josep Fontana sai do período da Guerra Fria e entra nos anos 90, afirmando, no entanto, que a luta não terminou naqueles tempos de visível divisão ideológica. Nessa década, o presidente George W. Bush empreendeu uma grande reforma na educação dos jovens americanos, na qual estava incluído o conhecimento das “diferentes heranças culturais da nação”. A comissão encarregada da área da História teve uma tarefa árdua ao englobar uma gama de minorias presentes no país, numa tentativa de construir uma história verdadeiramente global. Os novos parâmetros de ensino ficaram prontos em 1994, e quase de imediato passaram a ser denunciados por grandes veículos de comunicação do porte de Wall Street Journal, que os acusavam “como uma conspiração para inculcar uma educação ao estilo comunista ou nazista, dentro de uma campanha contra o multiculturalismo e contra os “tenured radicals”: os professores “radicais” que se acreditava, sem fundamento algum, controlassem os ensinos de história, literatura ou antropologia nas universidades norte-americanas”5. Emergiam novamente os conflitos da época da guerra, que de fato nunca foram superados.

As perseguições ao marxismo e seus simpatizantes continuava a funcionar com o mesmo mecanismo dos anos 40: os vigilantes e historiadores alinhados à classe dominante. O historiador David Abraham foi perseguido pelo também historiador Henry A. Turner; Norman Cantor atacava Lawrence Stone; Robert Conquest, que em seu último livro mostrara como as “ideias revolucionárias devastaram mentes, movimentos e países inteiros”, atacava o historiador inglês Eric Hobsbawm, autor de História do Século XX, livro bem-aceito até nos meios liberais britânicos.

Voltando à Europa dividida, a Grã-Bretanha, alinhada ao lado Liberal, tinha como instrumento de propaganda anticomunista o IRD ((Information Research Department), que tinha como colaboradores o ilustre escritor George Orwell, que em troca do apoio de divulgação internacional das obras A revolução dos bichos e 1984, entregou 130 comunistas ao governo. Também colaborava o historiador e “sovietólogo” Robert Conquest. A educação básica, no governo de Margaret Tatcher, foi alvo de campanhas que visavam um ensino baseado em “valores britânicos”, sem espaço ao multiculturalismo e às camadas mais baixas da sociedade, que constitui objeto de estudo da História Social. A História que Tatcher desejava nos currículos escolares era factual, limitando-se aos feitos dos primeiros-ministros, questões políticas e guerras.

Nem sempre as Guerras da História se davam de forma tão abrangente como ocorreu nos Estados Unidos. Às vezes, um único fato passado, quando revisitado e interpretado sob diferentes tendências políticas, é motivo para acalorados debates acadêmicos. Em 1989, nos 200 anos da Revolução Francesa, chegava ao fim o regime soviético. Os historiadores que naquele momento abordavam a Revolução Francesa, revisionistas, a apresentava como um fenômeno sem consequências de transformações sociais e ponto de partida de momentos políticos do século XX como a Revolução Soviética e a vitória do bolchevismo.

A Revolução Francesa começara a ser minada por um novo revisionismo histórico, inaugurado por Alfred Cobban, que em 1964 afirmou que a Revolução Francesa não possuía um caráter social; e que em 1789 não existia feudalismo de um lado e burguesia revolucionária do outro. As formulações de Cobban tiveram influência em historiadores ex-comunistas, que buscavam uma forma de redenção pelo passado. Um desses foi o historiador François Furet, que apoiado por grupos da direita norte-americana, teve uma rápida ascensão no meio acadêmico, se apresentando ao público como uma nova autoridade sobre a revolução. Furet, que tinha uma maior preocupação com a historiografia do que com a história, foi rejeitado nos meios acadêmicos. Outra característica de sua produção era a divisão da revolução entre a liberal e reformista de 1789; e a má, do período do terror, de 1792-1794, antecedente do comunismo russo. Para Fontana, o cúmulo da sem-vergonhice de Furet viria com o Dictionnaire critique de la Révolution française (1988), quando a especialista Mona Ozouf e os organizadores “permitiram-se, por exemplo, excluir um nome como o de Albert Soboul, cuja obra de pesquisador no terreno específico da história revolucionária é superior às do diretor, sua cúmplice e do bando inteiro juntos6.

Hunt, Baker e Furet atacavam a interpretação social da revolução. Para esses autores, para se compreender a Revolução Francesa é preciso entender o “espaço conceitual em que foi inventada”. Foi apontado, em uma revista de renome acadêmico, que os impostos eram a causa do grande mal estar público que desencadeou a revolução. Para Colin Jones, esses autores estavam reduzindo a Revolução Francesa a um acontecimento linguístico, esquecendo suas implicações econômicas e sociais. Essa redução nada mais era do que uma tentativa de combater a interpretação jacobino-marxista, vista pelos revisionistas como dogmática e inflexível.

Mas foi nessa interpretação que, segundo Fontana, ocorreram avanços nos estudos sociais da Revolução Francesa. A história universitária traz à tona questões sociais a tempos ignoradas pelos revisionistas: as lutas na sociedade camponesa, caminho aberto por Pierre de Saint Jacob; o enriquecimento de uns e o empobrecimento de outros; diminuição da classe média; a novas interpretações de Hoffman e Moriceau, sobre a crise do século XVIII e sua inserção na longa duração; Kaplan com o abastecimento de Paris; Markov e Anatoli Ado com a reaparição do feudalismo e o balanço agrário, ignorados por Cobban; e McPhee e outros sobre as revoltas camponesas e seus desdobramentos no século XIX. A burguesia, desde o século XIX considerada a classe que encaminhou a revolução ao seu ápice, não é uma invenção dos jacobinos-marxistas, mas sim dos historiadores restauradores como François Guizot. Num primeiro momento, os burgueses, cansados da política do Velho Regime, se juntaram à Revolução, “mas que, uma vez conseguidas as mínimas liberdades reivindicadas, se apressaram em pedir ao estado o controle social que os defendesse dos trabalhadores”7. Nessa guerra, para Fontana, não há nada de positivo do legado desse revisionismo que não apresentou novas perspectivas em relação ao que atacava, na maioria das vezes, sem argumentos sólidos. Restou uma história pós-revisionista, que busca na sociedade francesa mudanças que nela se produziram a longo prazo.

A Alemanha do pós-guerra estava arruinada não só em sua política e economia, mas também em sua identidade histórica, que precisava, depois do fim do nazismo, ser redefinida. Repartida entre as potências vencedores do conflito, cada região, uma sob influência capitalista e outra comunista, tinha uma forma de interpretar a história recente alemã (nazismo e holocausto judeu). A República Democrática Alemã, comunista, fazia a interpretação através do mecanicismo dogmático stalinista, e, de acordo com a Terceira Internacional, interpretavam o nazismo como um capitalismo monopolista de estado. Surgia a escola histórica Stamokap. Essa visão histórica do nazismo foi divulgada na obra de Walter Ulbritch, A Legenda do Socialismo alemão ou O imperialismo alemão fascista.

Colocar o Nazismo como um tipo de capitalismo implicava em reduzir a culpa alemã, expandindo-a para um âmbito mundial. Para os membros da escola, a ascensão de Hitler não representou mudanças socioeconômicas significativas na transição da República de Weimar para a Ditadura nazista, tendo em vista que, para eles, Hitler nada mais era que um fantoche do capitalismo alemão, e que os verdadeiros culpados pelos crimes nazistas eram os empresários e banqueiros alemães. O holocausto judeu ficava em segundo plano, pois, nessa perspectiva histórica, os principais perseguidos pelo regime nazista eram os comunistas e os trabalhadores.

Na República Federal Alemã, capitalista, a culpa pelo nazismo era direcionada a um alvo específico, e evitava-se qualquer tentativa de responsabilizar o sistema econômico capitalista. Os alvos eram alguns poucos líderes do regime. Os crimes cometidos na Alemanha Nazista, dentre eles o extermínio em massa dos judeus, era responsabilidade dos dirigentes, não do povo alemão. Os historiadores da República Federal, nacionalistas e conservadores, consideravam o nazismo um regime totalitário semelhante ao comunismo. O Holocausto, nas produções historiográficas, era ocultado; e fabricavam-se resistências ao nazismo. No entanto, na década de 1960, surgiriam historiadores preocupados com a história social, como Hans-Ulrich Wehler e Jurgen Kocka, da escola de Bielefeld, que defendia uma nova história com a utilização de métodos e teorias das ciências sociais.

O Holocausto, agora, passaria a ser estudado através de duas vertentes, a intencionalista e a funcionalista. As duas vertentes responsabilizavam dirigentes pelo massacre, mas divergiam entre si nos seguintes aspectos: Para os primeiros, o extermínio era um projeto prévio de limpeza “racial” da Europa; Para os funcionalistas, esse extermínio foi realizado de forma prática, sem um projeto prévio, pois o grande número de prisioneiros era um problema, aos quais somava-se a invasão soviética.

No final dos anos 1980, a culpabilidade desses dirigentes seria revista. Ernst Nolte, historiador de direita, já afirmava, nos anos 70, tentava diminuir a culpa das atrocidades nazistas, dando como exemplos “piores” as ações norte-americanas no Vietnã e o regime stalinista. Em 1983, ao publicar O marxismo e a revolução industrial, sustentava que o holocausto era uma resposta ao marxismo e à Revolução Soviética. Em artigo publicado em 1986, Nolte afirmou que o povo alemão deveria parar de aceitar as culpas a ele impostas. Para esse historiador “Hitler não havia feito mais que seguir o exemplo do comunismo soviético e o extermínio dos judeus não havia sido mais que uma medida preventiva para poupar os alemães do genocídio de classe com que os ameaçavam os bolcheviques8. Ernst recebeu uma resposta de Jurgen Habermas, que denunciava sua característica apologética, isto é, de defesa ao nazismo ou hitlerismo. O debate dividiu conservadores e sociais-democratas, mas não se produziu novo conhecimento histórico.

Novas pesquisas historiográficas vieram à tona, e os argumentos de Nolte e dos revisionistas iam perdendo espaço. Essas novas pesquisas, segundo Fontana, mostraram que Stálin não atacaria a Alemanha, e Hitler sabia disso. A guerra preventiva de Hitler foi um pretexto para atacar a nação russa, numa investida final contra o “bolchevismo-judeu”. O ataque à Rússia e o extermínio de milhões de judeus “não foram fatos bélicos “normais”, senão que representam um novo tipo de guerra encaminhada à aniquilação total e sistemática, pela fome e pelas execuções, de milhões de seres humanos em nome da luta contra os fantasmas hitlerianos do judeu-bolchevismo”9. Os argumentos dos historiadores conservadores cada vez mais ficavam insustentáveis. Guerras da História surgiam entre os judeus, em críticas a obras como A destruição dos judeus da Europa, de Raul Hilberg, por ter minimizado a resistência desse povo durante o nazismo; Einchmann em Jerusalém, de Hannah Arendt, por afirmar que alguns judeus colaboraram com o holocausto; e Por que o céu não se escureceu?, de Arno Mayer, por ter afirmado que o anti-bolchevismo foi tão importante quanto o anti-semitismo e que era um elemento para explicar o holocausto.

Os debates cessaram por um tempo, mas voltaram com força em 1996, ano da publicação de Os verdugos voluntários de Hitler, de Daniel Goldhagen. A polêmica da obra surge quando Goldhagen, revisitando fontes já conhecidas, sustenta que o Holocausto judeu foi o ápice natural do anti-semitismo alemão, arraigado em sua cultura. Dentre as fontes está Christopher Browing, que culpava “homens ordinários” pelos crimes, enquanto Goldhagen culpava “alemães ordinários”. A obra, criticada por não possuir rigor científico, foi reconhecida por Hans-Ulrich, por formular a abordagem sobre um tema incômodo como era o da participação da população alemã durante o regime nazista.

Terminada a repercussão do livro de Goldhagen, surgiu uma nova linha de pesquisa, ou frente de guerra: o papel dos grandes industriais durante o regime nazista. Essa nova guerra emergiu depois de mais de 50 anos de silêncio político, que começava a ser quebrado. Esses grandes grupos industriais, que tiveram forte participação nos crimes cometidos entre 1939 e 1945, blindavam-se através da construção de histórias empresariais, produzidas acadêmicos renomados. Em 1998, Michael Pinto-Duschinsk publicou um artigo com o título “Vender o passado”, no qual denunciava os historiadores que, bem pagos, aceitavam fazer as histórias de empresas alemãs, visando apagar seus passados ligados ao nazismo. Em 1999, o historiador Jonathan Steinberg trazia mais uma denúncia sobre o passado judeu e o nazismo, dessa vez sobre o ouro dos semitas. Steinberg e mais um grupo de historiadores, reunidos pelo Banco Alemão, estudando documentos da sucursal do banco de Istambul, chegaram à conclusão de que um quarto do ouro era proveniente dos campos de concentração.

No mesmo ano, o estudo de documentos das quatro sucursais do banco da Alta Silésia, revelou pagamentos realizados para construir o campo de Auschwitz. O grupo de Steinberg ficou em evidência, sendo acusado de ter sido financiado pelo Banco Alemão para ignorar, no início, essa documentação. Em 1997, o judeu norte-americano Feldman, patrocinado pelo banco, deu uma entrevista em Frankfurt, na qual reclamou da demanda “de velhos trabalhadores-escravos, nem todos judeus, apresentadas nos Estados Unidos, o que podiam gerar ressentimentos e aumentar o anti-semitismo”. As denúncias acabaram da melhor forma para empresas, que indenizaram os poucos sobreviventes que existiam na época. Essa conclusão, característica das classes dominantes,mostra, por um lado, a extraordinária eficácia com que os controladores da história conseguiram manter um silêncio tão duradouro sobre estas questões incômodas. Mas mostra também seu fracasso a longo prazo, quando as vozes críticas, que não foi possível silenciar de todo, reavivaram a consciência coletiva10.

Assinada a rendição do Japão, o general MacArthur, através das reformas impostas aos derrotados, elimina o ensino tradicional, ultranacionalista e que cultuava o imperador. Pretendia-se criar um currículo baseado em valores de paz e democracia. De início, não existiam livros que se adequassem ao desejo governamental, o que fez com que os antigos fossem utilizados, censurando-se as partes inadequadas. As escolas tinham a autonomia de escolher os livros que lhes interessavam, com um limite, em 1955, de 173 exemplares. Os professores mostraram-se simpatizantes da esquerda, fazendo com que o controle estatal e a censura a textos aumentasse nas instituições. No ano seguinte, meio milhão de professores foram às ruas do Japão protestar contra a medida. Ainda assim, textos que mostravam o “lado ruim” do Japão durante a Guerra, foram censurados.

O tradicionalismo nipônico volta nos anos 1980, durante o governo Nakasone, quando se afirmava que os japoneses eram mais inteligentes que os norte-americanos, “porque o Japão era mais homogêneo do ponto de vista racial e tinha menos imigrantes (esqueceu de dizer que os imigrantes que viviam no Japão eram também mais discriminados, como o eram os dois ou três milhões de hurakumin, ou japoneses descendentes de velhos ofícios infamantes”11. Os livros produzidos a partir dessa década defendiam as ações do Japão durante a guerra, a invasão à China e a invasão da Ásia. Em 1998, a “Sociedade para fazer novos livros de texto de História”, comandada pelo professor Fujioka, da Universidade de Tóquio, apresentava a introdução de um sentido de orgulho na história nacional; a oposição à culpa dos japonenses pelos crimes cometidos durante a Segunda Guerra; e a eliminação partes de livros que fizessem referência a temas como o das mulheres coreanas forçadas a servir como prostitutas aos soldados, que para os revisores nada mais eram que mulheres bem remuneradas que se voluntariavam a esse trabalho.

Esses exemplos de Guerras da História, escolhidos entre tantos outros com a mesma ferocidade ideológica, segundo Fontana, revelam “que os debates a que se referem têm pouco a ver com a ciência e muito com o contexto político e social em que se movem os historiadores12. Os historiadores que se dedicaram, aliados ao Estado ou a instituições privadas, a manipular a História, foram verdadeiros serviçais do poder.






1FONTANA, Josep. “As Guerras da História”. In: A História dos Homens. Bauru, (SP).
2Ibidem, p. 345.
3Ibidem, p. 347.
4Ibidem, p. 353.
5Ibidem, p. 355-56.
6Ibidem, p. 361.
7Ibidem, p. 364.
8Ibidem, p. 370.
9Ibidem, p. 371-72.
10Ibidem, p. 377.
11Ibidem, p. 378.

12Ibidem, p. 379.

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terça-feira, 28 de junho de 2016

Heródoto e Tucídides: Uma breve comparação

Estátuas de Heródoto e Tucídides em frente ao Parlamento Austríaco.

Esse texto é uma pequena comparação entre dois historiadores clássicos da Grécia, Heródoto e Tucídides, e servirá de material de apoio para os estudantes da graduação em História da UFAM e de outras instituições:

Heródoto de Halicarnasso é autor das Histórias, uma série de relatos reunidos em 9 livros, sendo 6 voltados para o desenvolvimento do Império Persa e a descrição dos povos que o formavam; e 3 voltados para os conflitos entre gregos e estrangeiros. Tucídides escreveu sobre a Guerra do Peloponeso, conflito entre atenienses e espartanos, do qual foi protagonista. Enquanto Heródoto volta sua atenção para a descrição de vários aspectos dos lugares que visitou, utilizando conhecimentos de hidrografia, geografia, botânica etc, Tucídides se atém a descrever e procurar as causas de um único evento, nesse caso, a Guerra do Peloponeso.

A obra de Heródoto, ainda que produzida de forma “racional”, ainda possuía um vínculo religioso, diferente da de Tucídides, que não sofre “interferência” divina. Como metodologia, Heródoto utilizou fontes materiais e, principalmente, a observação direta e os relatos de terceiros. Para o exame destas fontes, recorria à análise crítica e, quando não tinha certeza da veracidade destas, ao ceticismo. Tucídides também utilizava informantes (períodos da Guerra do Peloponeso que não vivenciou diretamente), mas sua metodologia é mais complexa, com o objetivo claro de garantir a veracidade de sua narrativa, com a crítica aos documentos, aos discursos e a verificação da verossimilhança entre eles.

A concepção de história de Heródoto é pessimista. As ações do homem são controladas por forças divinas e, em sua narrativa, são feitas menções a oráculos, sonhos e previsões. Heródoto acredita em uma História Cíclica, na qual a sociedade se desenvolve através de ciclos que se repetem de tempos em tempos, e as divindades garantem a manutenção, por meio da punição, da ordem. Tucídides, que narra um evento militar, tem uma concepção de história que valoriza o homem, separando este da visão divina. Decisões políticas, econômicas e militares, decisões humanas, são o motor da história.

Heródoto escreve seus relatos em prosa, simples e direta, mais organizada que a dos logógrafos, com vocabulário simples e sem artifícios retóricos e estilísticos. O dialeto grego utilizado é o jônio. Tucídides tem a escrita mais refinada, no estilo paratático e em prosa. Utiliza o dialeto ático com influência do jônio, uma herança da prosa de Heródoto.

Entre o nascimento de Heródoto e Tucídides existe uma diferença de 35 anos, sendo o segundo autor mais jovem que o primeiro. Ambos, de famílias abastadas, foram exilados por motivos políticos. Heródoto recorreu aos relatos de terceiros e à análise de fontes materiais para construir sua obra. De um mundo ainda impregnado de aspectos míticos, é influenciado por uma visão fatalista da história, controlada por forças que ultrapassam a compreensão humana. Tucídides, protagonista de boa parte do evento que narrou, analisa as fontes e os relatos disponíveis de forma crítica, valorizando os feitos humanos como pano de fundo da história. 

Heródoto, por suas digressões sobre hábitos, costumes e outros aspectos dos lugares e povos que conheceu, é considerado um historiador cultural; enquanto Tucídides, buscando as causas de uma guerra, é um historiador político e militar.


FONTES: 

LÓPEZ, José Antonio Caballero. Inicios y desarrollo de la historiografía griega: mito, política y propaganda. Madrid: Editorial Sintesis, 2006.

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quarta-feira, 22 de junho de 2016

Periodização da História e percepção de tempo

História, do pintor grego Nikolaos Gysis (1892).

Texto produzido a partir de reflexões feitas durante as aulas de História Medieval I, ministradas pelo professor Sínval Carlos Mello Gonçalves, na UFAM.


A História enquanto ciência, já sabemos, é dividida em períodos que facilitam tanto o trabalho de quem a produz quanto o de quem empreende seu estudo. Nós, ocidentais, a dividimos da seguinte forma: Primeiro, temos a pré-história, período anterior ao surgimento da escrita. Depois, a Antiguidade, que vai do surgimento da escrita em mais ou menos 3.500 a.C. à queda do Império Romano do Ocidente, em 476. Terminada a Antiguidade, o homem passa para a Idade Média, até 1453, quando a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos é considerado o seu fim. De 1453 à 1789, vive-se na Idade Moderna. De 1789 aos dias de hoje, Idade Contemporânea.

O que determina quando inicia ou acaba um período histórico? Quando um ou mais profissionais da História nomeiam um período, deve-se levar em conta aspectos singulares, marcos significativos que irão diferenciar um período do outro. Em 1469, o bibliotecário do Vaticano e humanista, Giovanni Andrea, cunhou o termo Idade Média (medium aevum, media tempestas, mediae aetas), uma idade do médio, intervalo entre a Antiguidade Clássica, período de esplendor cultural para os humanistas, e a Idade Moderna, tempo em que viviam, marcado por inovações e revalorização da cultura greco-romana.

Algo que nos deixa pensativos, dependendo do nível de reflexão, é que as pessoas que viveram nesses determinados períodos não os nomeavam dessa forma, e até mesmo não sabiam ou percebiam as mudanças ocorridas em sua volta. Apenas lembrando uma fala do professor Sínval, "um homem que dormiu na noite derradeira de 476 e acordou em 477 não sabia que agora vivia na Idade Média". A percepção de passagem de tempo perpassa o campo histórico e adentra na psicologia e na neurociência. O professor de História da UFSM, em entrevista ao Infocampus, afirma que  "tempo é um conceito polissêmico, ou seja, ele depende de uma série de definições. Desde Aristóteles, por exemplo, definia-se o tempo como uma espécie de medida do espaço, medida do movimento" (1).

Em um questionamento feito ao professor, perguntei se "um homem que nasceu na Inglaterra em 1750, perceberia, em 1800, que estava vivendo em uma nova época? nesse caso, a Segunda Revolução Industrial"? O professor exclamou que "a resposta para essa pergunta é difícil, e que nos tornamos, de certo modo, reféns de uma periodização".


De fato, nos tornamos reféns dessa periodização da História, pois muitas vezes ela, por sintetizar o período, sem perceber muitas vezes continuidades, mais atrapalha do que ajuda. Um exemplo dessa condição é a obra de Jeróme Baschet, A Civilização Feudal: Do ano mil à colonização da América. Nesse livro, Baschet nos apresenta sua visão de que a Idade Média possui uma longa duração, que sobreviveu por meio de uma visão de mundo, práticas e técnicas oriundas do medievo, deixando heranças até mesmo no México Colonial, por meio de instituições trazidas pelos colonizadores espanhóis, homens que viveram na Idade Média.


Devemos, claro, nos lembrar que as periodizações Idade Antiga, Idade Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea são adotadas pelo Ocidente, com a cronologia delimitada em acontecimentos antes e depois de Cristo. Em outras regiões do mundo, a periodização e a cronologia vão variar bastante, como por exemplo nos países islâmicos, onde o tempo é contado a partir da fuga de Maomé de Meca para Medina, em 16 de julho de 622.


Talvez em 1453, durante a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos, o marco de fim da Idade Média e início da Idade Moderna, um camponês do interior de Portugal ou da Espanha não tinha noção do que estava acontecendo, estando apenas preocupado com o próximo dia de trabalho, no qual teria que alcançar uma meta de produção. Acredito que as periodizações da História devam ser revistas, analisadas com mais critérios, ver onde existem continuidades de um período sobre o outro e achar novas alternativas para o ordenamento da ciência histórica. Basta nos lembrarmos, por exemplo, sobre as discussões feitas sobre a Idade Contemporânea (a comunidade acadêmica discute se já não estamos em um novo período).


Para concluir, uma observação de outro professor do Departamento de História/ICHL: "Temos que ter compromisso com as datas, mas nossa preocupação contemporânea não é dizer quando ocorreu e onde, mas sim analisar e problematizar os fatos e a sociedade" - Luis Balkar Sá Peixoto Pinheiro, professor de metodologia da História (22/06).



NOTAS:


(1) A percepção da passagem do tempo. Infocampus, UFSM (Universidade Federal de Santa Maria), 09 de dezembro de 2010. Endereço: http://w3.ufsm.br/infocampus/?p=3683


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segunda-feira, 30 de maio de 2016

A Economia Gomífera na Amazônia I: Dos primórdios aos componentes humanos

Versão resumida do texto Ciclo da Borracha (dos primórdios até 1920), publicado em 24 de junho de 2013. Nessa primeira parte, apresento aos leitores como ocorreu o contato com o látex, com registros datados de antes de Cristo, até a vinda de aventureiros para a Amazônia entre os séculos XIX e XX. A segunda postagem englobará as transformações políticas, econômicas e culturais. A terceira e última parte será dedicada ao lado pregresso dessa economia e a sua decadência.

A ambição que gerou a conquista. A conquista que gerou o extrativismo onde os caudilhos fixaram suas leis homicidas. O extrativismo que gerou a súbitas fortunas de aventureiros dos quatro cantos. Era o Eldorado, o esplendor de uma selvagem nobreza dos trópicos cujos cenários e costumes foram importados de Inglaterra, França e Itália (Amazonas, Amazonas. Glauber Rocha, 1966). É com essa passagem marcante do documentário Amazonas, Amazonas, que dou início a esse texto. A economia gomífera na Amazônia, que dominou a região entre 1880 e 1929, com uma sobrevida até 1945, se constituiu em um dos principais ciclos econômicos do Brasil contemporâneo. Movimentou somas que iam da Amazônia à Europa; garantiu a construção de estruturas industriais com utilidade até os dias de hoje; e alterou para sempre a fisionomia social e econômica da região Norte do país. 

À esquerda, a "trave" do jogo praticado pelos nativos pré-colombianos. À direita, um jogador atual no estado de Sinaloa, no México.

Os povos nativos da América pré-colombiana já utilizavam a borracha no seu dia a dia. Um dos usos mais comuns, entre os Teotihuacan do México (300 a.C. - 600 d.C.), era o de confeccionar uma bola utilizada em um jogo ritualístico, difundido entre outros povos, no qual os vencedores eram sacrificados em honra ao Sol. Ao chegar no continente entre os séculos XVI e XVII, cronistas, clérigos e viajantes europeus tiveram contato com essa substância, a qual passaram a observar e descrever suas propriedades.

A primeira descrição detalhada sobre a borracha foi produzida no século XVIII pelo sábio francês Charles Marie de La Condamine, que esteve na Amazônia em 1736, descrevendo seus usos pelos omáguas, que fabricavam bolas, garras e revestimentos para tecidos. Também notou que os portugueses aprenderam com os cambebas o processo de fabricação da borracha, e passaram a fazer fazer seringas, sapatos e galochas. De sua experiência surgiu, em 1745, a obra Relato abreviado de uma viagem feita ao interior da América Meridional.

No início do século XIX, os arredores de Belém e as ilhas de Marajó, no Pará, começaram a exportar para os Estados Unidos e Europa milhares de sapatos impermeabilizados e galochas. Seriam necessárias mais de 2 décadas de pesquisas para que a borracha amazônica ganhasse uma utilização industrial, pois esse produto sofre alterações com a temperatura: no calor, torna-se pegajosa; com o frio, quebradiça. O inventor estadunidense Charles Goodyear criou o processo de vulcanização (1839), no qual o uso de calor e enxofre aumenta a durabilidade da borracha. Luvas, preservativos e outros produtos feitos a partir dessa matéria ganharam os mercados europeus e norte americanos com uma velocidade tão grande que, na Amazônia, já começava a movimentação de braços para atender a crescente demanda internacional.

À esquerda, Charles Goodyear, 1891. Ilustração póstuma da Scientific American. À direita, índio omágua defumando borracha, 1876. Gravura de Franz Keller-Leuzinger.

A mão de obra destinada à extração do látex, num primeiro momento, trouxe alguns problemas para os governos locais. O governador do Pará, e mais tarde o da Província do Amazonas, se queixava que a atividade gomífera estava absorvendo trabalhadores da área de produção de bens de consumo (cacau, café, anil, arroz, guaraná), que começavam a ser importados, e das indústrias locais (cordoarias, olarias, algodoaria e estalagens). Para suprir a demanda de mão de obra, motivados por fatores naturais e econômicos, migraram para a Amazônia milhares de nordestinos entre 1877 e 1879.

Nesse final de século XIX, saíram do Ceará em direção à Amazônia cerca de 65.000 flagelos das secas e do péssimo resultado da produção agrícola causado por estas. Este contingente de pessoas avançou pelo rio Purus, atingindo, em terras estrangeiras, áreas ricas em seringueiras. A presença de brasileiros na região que viria a ser o futuro estado do Acre criaria querelas diplomáticas entre Brasil e Bolívia.

Com a rápida penetração de brasileiros nessa região, a Bolívia se alia ao capital estrangeiro de grupos europeus e norte-americanos, fundando o Bolivian Syndicate, sindicato altamente capitalizado que asseguraria o domínio boliviano e, por dez anos, exploraria os recursos da região. Em 1899, sem autorização e de madrugada, um navio de guerra norte-americano navega ilegalmente o rio Amazonas em direção ao Acre. O navio é interceptado nos arredores de Manaus, causando protestos do governo brasileiro contra os Estados Unidos.

À esquerda, as comitivas do Brasil e da Bolívia que participaram das negociações, com o Barão do Rio Branco ao centro. À direita, um mapa mostrando como ficou a geografia política após os acordos.

No mesmo ano, financiado por políticos e empresários amazonenses, o aventureiro espanhol Luiz Galvez Rodrigues de Aria, com um pequeno exército improvisado, ocupa o território reivindicado pela Bolívia e funda o Estado Independente do Acre, desfeito no final do mesmo ano pelo governo brasileiro. Em 06 de agosto de 1902, o jovem Plácido de Castro, gaúcho de São Gabriel, com um exército improvisado, composto de seringueiros, entra na cidade de Xapuri, prende o intendente boliviano e proclama o Estado Independente do Acre, entrando em guerra com o exército da Bolívia. Com mais uma intervenção do governo federal brasileiro, é cessada a batalha armada em nome da batalha diplomática. O diplomata José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco, já famoso por ter atuado nos impasses territoriais entre Brasil e Argentina (Questão de Palmas, 1890-1895); e Amapá (1900), propõe um acordo entre Brasil e Bolívia: O Tratado de Petrópolis. Concretizado em 1903, nele ficou estabelecido que a Bolívia venderia para o Brasil o território do Estado do Acre por 2 milhões de libras esterlinas; e o Brasil indenizaria o Bolivian Syndicate em 110 mil libras esterlinas e se comprometeria a construir a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, para escoar a produção boliviana pelo rio Amazonas.

Na segunda metade do século XIX, a tranquilidade da região amazônica seria alterada por dois acontecimentos: A criação da Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas, em 1852; e a Abertura dos Portos do Rio Amazonas às Nações Amigas, em 1866. A Companhia foi criada pelo empresário Irineu Evangelista, o  Barão de Mauá, e começou a operar na região com três pequenos vapores, intensificando o comércio e a comunicação da Província do Amazonas com outras províncias brasileiras e o Peru. Em 1866, pressionado por europeus, norte-americanos e membros das elites do Pará e Amazonas, ávidas por mudança, o Império do Brasil decreta, em 7 de setembro, a abertura dos rios Amazonas, Tocantins, Tapajós e Madeira à navegação estrangeira. Com esses dois acontecimentos é facilitada a escoação de matérias-primas regionais, principalmente a borracha, e a entrada de capital e manufaturados estrangeiros.

À esquerda, seringueiro extraindo látex. Gravura de Percy Lau. À direita, seringueiro defumando a borracha no tapiri, em 1900.

O novo panorama que começava a se configurar nessa parte afastada dos principais centros econômicos do Brasil atraiu pessoas das mas variadas classes sociais: Aqueles que não tinham nada a perder e buscavam um recomeço; os aventureiros, ávidos por novos experiências; e até pessoas nobres. No primeiro grupo vamos ter os nordestinos, em grande parte vindos do Ceará, mas também de Alagoas, Pernambuco e Paraíba. Atraídos para uma região tão vasta, em busca de um refúgio contra as secas que assolavam seus estados de origem, logo se viram frente a uma das piores faces da economia gomífera na Amazônia: o regime de semi-servidão. Em teoria, o seringueiro era um trabalhador livre, mas trazia, desde sua viagem para a região, uma dívida com o dono do seringal. Chegando ao local de trabalho, extraía o látex até pagar o que devia ao seringalista. Só que isso raramente acontecia, pois todos os utensílios para o trabalho e bens de consumo deveriam ser comprados no barracão, também de propriedade do seringalista. Assim, esse trabalhador, explorado em um regime de trabalho que começava entre 4:00-5:00 horas, percorrendo vários quilômetros para encontrar seringueiras, ficava em um ciclo eterno de fazer e pagar dívidas. Se tentasse comprar em outro lugar, falsificar o peso das pélas de borracha ou fugir do seringal, era eliminado pelo patrão, que controlava o lugar com mãos de ferro.

Entre os aventureiros podemos citar Plácido de Castro, ex-militar, combatente da Revolução Federalista do Rio Grande do Sul, que em 1902 proclamou o Estado Independente do Acre, enfrentando, com um exército improvisado de seringueiros, as forças militares bolivianas. Pensava em uma economia gomífera mais humanizada e eficiente, indo contra o pensamento dos seringalistas. Pagou com a própria vida, em 1908, ao ser morto em uma emboscada no Seringal Benfica, no Acre. Abandonando a comuna italiana de Borgo Val di Taro, o conde Ermanno Stradelli, etnólogo e poeta autodidata, nutriu grande fascinação pela Amazônia, colhendo e publicando, de 1880 até sua morte, em 1926, informações riquíssimas sobre os hábitos e costumes dos nativos da região.

FONTE:

Resumo feito a partir do livro 'Breve História da Amazônia', de Márcio Souza (1994).


CRÉDITO DAS IMAGENS:

football-origins.com
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Acervo Sergio Figueiredo/Povos da Amazônia
vfco.brazilia.jor.br
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sábado, 28 de maio de 2016

Prefácio dos Estudos Históricos de René Chateaubriand (II)


Segunda parte do texto Prefácio dos Estudos Históricos de René Chateaubriand, agora focado nos escritores da história geral e história crítica da França, antes da Revolução de 1789; e a Escola Histórica moderna da França.


ESCRITORES DA HISTÓRIA GERAL E HISTÓRIA CRÍTICA DA FRANÇA, ANTES DA REVOLUÇÃO

Os julgamentos são muito duros hoje sobre os escritores que trabalharam em nossos anais antes da revolução. Suponhamos que nossa história geral estivesse para ser composta; que fosse preciso tirá-la de manuscritos ou mesmo de documentos impressos; que fosse preciso desenrolar a cronologia, discutir os fatos, estabelecer os reinos; eu sustento que, apesar de nossa ciência inata e todo nosso saber adquirido, não colocaríamos três volumes em pé. Quantos entre nós poderiam decifrar uma linha das cartas originais, quantos poderiam lê-las, mesmo com a ajuda dos alfabetos, dos specimen e fac-simile inseridos na Re diplomatica de Mabillon¹ e em outras obras? Somos muito impacientes de exibir nossos pensamentos; desdenhamos demais nossos antecessores para nos conformar com o modesto papel de leitores de cartulários. Se lêssemos, teríamos menos tempo para escrever, e que furto feito à posteridade! Qualquer que seja nosso justo orgulho, ousaria eu suplicar a nossa superioridade que não quebre muito depressa as muletas sobre as quais ela se arrasta de asas dobradas? Quando, com datas bem corretas, fatos bem exatos, impressos em belo francês num caractere bem legível, nós compomos à vontade histórias novas, saibamos ser gratos a esses espíritos obscuros, a esses trabalhos aos quais nos basta capturar os farrapos de nosso gênio para pasmar o universo maravilhado. [...]

A respeito das liberdades, uma observação análoga se apresenta. Os historiadores do século XVIII não podiam compreendê-la como nós; não lhes faltava nem imparcialidade, nem independência, nem coragem. Mas eles não tinham essas noções gerais das coisas que o tempo e a revolução desenvolveram. A história faz progressos dos quais são privadas algumas outras partes da inteligência letrada. A língua, quando atinge sua maturidade, permanece nesse estado ou se deteriora. Podem-se fazer versos diferentes dos de Racine, nunca melhores: a poesia tem suas fronteiras nos limites do idioma em que é escrita e cantada. Mas a história, sem se corromper, muda de caráter com os tempos, porque se compõe de fatos adquiridos e verdades encontradas, porque refaz seus julgamentos por suas experiências, porque, sendo o reflexo dos costumes e das opiniões do homem, é suscetível do aperfeiçoamento da espécie humana. Do ponto de vista físico, a sociedade, com as descobertas modernas, não é mais a sociedade sem essas descobertas; para a moral, esta sociedade, com as ideias engrandecidas tais como estão nos dias atuais, não é mais a sociedade sem estas ideias: o Nilo em sua nascente não é o Nilo de sua embocadura. Em uma palavra, os historiadores do século XIX nada criaram; somente têm um mundo novo sob os olhos, e esse mundo novo lhes serve de escala retificada para mensurar o antigo mundo.

Feita toda justiça aos homens de mérito que trataram de nossa história geral antes da revolução, eu diria com a mesma imparcialidade que não precisamos tomá-los por guias. Não podemos nos dispensar de recorrer aos originais, pois esses escritores os liam de modo diferente do nosso e com um outro espírito: eles não procuravam ali as coisas que nós procuramos, eles nem sequer as viam; rejeitavam precisamente o que recolhemos. Não escolhiam, por exemplo, nas obras dos padres da igreja senão o que concerne ao dogma e à doutrina do cristianismo: os costumes, os usos, as ideias não lhes pareciam ter nenhuma importância. Toda uma história nova está escondida nos escritos dos padres; esses estudos indicarão o caminho para ela. Não sabemos nada sobre a civilização grega e romana dos séculos V, VI e VII, nem sobre a barbárie dos destruidores do mundo romano, senão pelos escritores eclesiásticos dessa época.

Sobre nossos próprios monumentos, descobertas da mesma natureza estão por ser feitas. Antes da revolução, não se interrogavam os manuscritos apenas no tocante ao clero, aos nobres e aos reis. Nós não nos interrogamos senão sobre o que diz respeito aos povos e às transformações sociais/ ora, isto ficou sepultado nas cartas.

Os escritores pré-revolucionários da história crítica da França são tão numerosos que é impossível indicá-los todos: alguns somente devem ser assinalados como chefes de escola.

A Histoire de l' établissement de la monarchie française dans les Gaules é uma obra sólida, com frequência atacada, nunca derrubada, mesmo por Montesquieu, que aliás sabia poucas coisas sobre os francos. Rouba-se o abade Dubos sem admitir o pequeno furto: seria mais leal reconhecê-lo.

O mesmo ocorre com o abade de Gourcy: sua pequena Dissertation sur l' état des personnes en France sous la première et la seconde race, coroada pela Académie des Inscriptions, é de um método, de uma clareza e de um saber raros. O que se escreve hoje sobre o mesmo tema em parte é furtado do excelente trabalho de Gourcy: é acertado não refazer um trabalho árduo tão bem feito, mas seria necessário avisar, para deixar o elogio a quem direito. Existem, pois, homens que estão consagrados a servir de monitores a outros [...].

Desses detalhes resulta que duas escolas históricas se distinguem antes da época da revolução: a escola do século XVIII e a escola do século XIX; uma erudita e religiosa, a outra crítica e filosófica: na primeira, os beneditinos ajuntavam os fatos, e Bossuet os proclamava na Terra; na segunda, os enciclopedistas criticavam os fatos, e Voltaire os entregava aos debates da multidão. A Inglaterra fundou perto de nós sua escola exata, mais desembaraçada que a nossa dos preconceitos antirreligiosos. Nossa escola moderna do século XIX pode ser chamada de escola política: ela é filosófica também, mas de modo diferente que a do século XVIII. Falemos disso.

¹ Jean Mabillon (1632-1707), monge beneditino e historiador francês a quem se atribui o estatuto de fundador da paleografia e da diplomática como auxiliares importantes da pesquisa histórica, na medida em que pretendia construir instrumentos para discernir os documentos verdadeiros dos falsos (N. do T.)


ESCOLA HISTÓRICA MODERNA DA FRANÇA

A escola moderna se divide em dois sistemas principais: no primeiro, a história deve ser escrita sem reflexões; deve consistir na simples narrativa dos eventos, e na pintura dos costumes; deve apresentar um quadro ingênuo, variado, pleno dos episódios, deixando cada leitor, segundo a natureza de seu espírito, livre para tirar as consequências dos princípios e extrair as verdades gerais das verdades particulares. É o que se chama de história descritiva, por oposição à história filosófica do século passado.

No segundo sistema, é preciso narrar os fatos gerais, suprimindo neles uma parte dos detalhes; substituir a história da espécie pela do indivíduo; permanecer impassível diante do vício e da virtude assim como diante das catástrofes mais trágicas. É a história fatalista ou o fatalismo aplicado à história.

Vou expor minhas dúvidas sobre esses dois sistemas.

A história descritiva, levada a seus últimos limites, não entraria demais na natureza da memória? O pensamento filosófico, empregado com sobriedade, não seria necessário para dar à história sua gravidade, para fazê-la pronunciar sentenças que são da alçada de seu último e supremo tribunal? No grau de civilização a que chegamos, poderia a história da espécie desaparecer inteiramente da história do indivíduo? Deveriam as verdades eternas, bases da sociedade humana, se perder nos quadros que não representam senão costumes privados?

Existem no homem dois homens: o homem de seu século e o homem de todos os séculos: o grande pintor deve acima de tudo se fixar na semelhança deste último. Talvez hoje se valorizem demais a semelhança, e, pode-se dizer, a cópia da fisionomia de cada época. É possível que, na história como nas artes, representemos melhor do que faziam antigamente os costumes, os interiores, todo o material da sociedade; mas uma figura de Rafael, com o fundo negligenciado e flagrantes anacronismos, não apagaria as perfeições da segunda ordem? Quando se representavam os personagens de Racine com as perucas à moda de Luís XIV, os espectadores não ficavam nem menos maravilhados nem menos comovidos. Por quê? porque se via o homem no lugar de homens. [...]

Eis o que me parece verdadeiro no sistema da história descritiva: a história nunca é uma obra de filosofia; ela é um quadro; é preciso juntar à narração a representação do objeto, ou seja, é preciso ao mesmo tempo desenhar e pintar; é preciso dar aos personagens a linguagem e os sentimentos de seu tempo, não olhá-los através de nossas próprias opiniões, principal causa da alteração dos fatos. Se, tomando por regra aquilo que acreditamos da liberdade, da igualdade, da religião, de todos os princípios políticos, aplicamos essa regra à antiga ordem das coisas, nós falseamos a verdade, exigimos dos homens que vivem nessa ordem coisas das quais eles nem mesmo tinham ideia. Nada estava tão mal quanto pensávamos; o padre, o nobre, o burguês, o vassalo possuíam noções do justo e do injusto diferentes das nossas: era um outro mundo, um mundo sem dúvida menos próximo dos princípios gerais naturais do que o mundo presente, mas ao qual não faltavam nem grandeza, nem força, como testemunham seus atos e sua duração. Não nos apressemos em nos pronunciar muito desdenhosamente sobre o passado: quem sabe se a sociedade desse momento, que nos parecia superior (e que foi de fato em muitos pontos) à antiga sociedade, não parecerá a nossos sobrinhos, dentro de dois ou três séculos, aquilo que nos parece a sociedade de dois ou três séculos anteriores ao nosso? Nos alegraríamos no túmulo de sermos julgados pelas gerações futuras com o mesmo rigor com que julgamos nossos ancestrais? O que há de bom, de sincero na história descritiva é que ela narra os tempos tais como eles foram.

O outro sistema histórico moderno, o sistema fatalista, tem, acredito, inconvenientes bem menos graves, porque ele separa a moral da ação humana; sob esse aspecto terei daqui a pouco ocasião de combatê-lo, falando dos escritores de talento que o adotaram. Aqui direi somente que o sistema que baniu o indivíduo para se ocupar apenas da espécie caiu no excesso oposto ao sistema da história descritiva. Anular totalmente o indivíduo, não lhe dar senão a posição de uma cifra, a qual vem numa série de um número, é contestar-lhe o valor absoluto que ele possui, independentemente de seu valor relativo. Assim como um século influi sobre um homem, um homem influi sobre um século; e se um homem é o representante das ideias do tempo, muito mais ainda o tempo é o representante das ideias do homem.

O segundo sistema da história moderna tem seu lado verdadeiro, tal como o primeiro. É certo que não se pode hoje omitir a história da espécie; que há realmente revoluções inevitáveis porque elas não são realizadas nos espíritos antes de serem realizadas no exterior; que a história da humanidade, da sociedade geral, da civilização universal, não deve ser mascarada pela história da individualidade social, pelos eventos particulares a um século e a um país. A perfeição seria o manejo dos três sistemas: a história filosófica, a história particular, a história geral; admitir as reflexões, os quadros, os grandes resultados da civilização, rejeitando dos três sistemas aquilo que possuem de exclusivo e de sofístico.

Ademais, se é bom possuir alguns princípios fixados ao tomar da pena, é, parece-me, uma questão ociosa perguntar como a história deve ser escrita: cada historiador a escreve segundo seu próprio gênio; um a conta bem, outro a pinta melhor; este aqui é sentencioso, aquele outro, indiferente ou patético, incrédulo ou religioso: toda matéria é boa, desde que verdadeira. Juntar a gravidade da história ao interesse da memória, ser ao mesmo tempo Tucídides e Plutarco, Tácito e Suetônio, Bossuet e Froissard, e assentar os fundamentos de seu trabalho sobre os princípios gerais da escola moderna, que maravilha! Mas e aqueles aos quais o céu não atribuiu esse conjunto de talentos, dos quais um apenas serie suficiente para a glória de muitos homens? Cada um escreverá como vê, como sente; não se pode exigir do historiador senão o conhecimento dos fatos, a imparcialidade do julgamento e o estilo, se puder.


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