domingo, 3 de dezembro de 2017

O Corpo na Idade Média

Continuando as postagens sobre história social e história cultural da Idade Média, hoje temos um artigo em que são abordadas questões referentes ao corpo humano, sobre sua construção durante o período medieval e as diferentes concepções de mundo que nortearam os sentidos da matéria humana: a sacralidade, a degradação, a sexualidade, a doença, o trabalho e a estética.


O CORPO NA IDADE MÉDIA

Roberval Nascimento da Silva Júnior*

RESUMO
O artigo aqui apresentado é uma reflexão que procura discutir sobre a história do corpo, especialmente na Idade Média, com a intenção de refletir sobre a história do corpo, suas dimensões variadas que concorriam na existência humana e os variados sentidos provenientes das tensões causadas na concorrência. Por meio da bibliografia produzida dentro da temática medieval, este trabalho procurou trazer dados e discussões sobre como foi construída a imagem do corpo humano na Idade Média.
Palavras-chave: Corpo na Idade Média, história do corpo, Sociedade medieval, representações do corpo.

1. INTRODUÇÃO
Liber divinorum operum, iluminura 2, folio 9: O espírito e o mundo (detalhe), século XIII.

A Idade Média tem em sua forma complexa de cosmovisão um caráter altamente simbólico de composição dos sentidos. Isso se deve principalmente ao deslocar radical da esfera de experiência do mundo físico para um mundo metafísico, pois a noção de tempo linear determina isso ao pôr como finalidade da existência e da própria história da humanidade a volta de Cristo, a reencarnação, o subir aos céus, por fim, a salvação eterna (salvar-se de que, senão da finitude da vida mortal e cotidiana enfrentada na terra?). Nessa cosmovisão então se encontra presente e com força motora de sentidos a religião do Cristianismo, sendo importantes combustível dessas movimentações os debates teológicos empreendidos no período. À proposição anterior salvaguardo, cautelosamente, que as análises das fontes empreendidas até o momento sobre o caráter cosmovisionário demonstram que a percepção medieval do sobrenatural e do natural não oferece fronteiras tão delimitadas e chegam a compor, concomitantemente, uma realidade observável e cotidiana formada das duas.

Esse matiz simbólico composto pela Idade Média cujo os estudos históricos-antropológicos buscam propor é, em nível de experiência, significadora de uma realidade sensível, física, de experiência imediata com as coisas materiais, que, como no caso do corpo, teria uma imanência configurada no pensamento religioso e comporia uma polissemia da percepção e da experiência com essas coisas materiais.
O corpo, então, é visto como depositário de diversos sentidos sobre uma matéria dócil, cujo a representação se movimenta com as vicissitudes do vivido e que tem, também, uma dimensão simbólica que movimenta seu sentido num frenesi de proposições como a sacralidade do corpo, sua degradação, sexualidade, as doenças, o trabalho, uma estética reprimida, onde o corpo é lugar de pecado e salvação, ao mesmo tempo. É dos componentes dessa polissemia em torno do corpo, na sua relação contextual-histórica medieval, que destino a reflexão neste presente artigo.

2. A CARNE

O corpo humano é substância dotada, além de sua materialidade, de alma e espírito, segundo a tradição cristã. O historiador que se debruça sobre a reflexão desse objeto de estudo na temporalidade medieval deve estar alerta quanto a própria linguagem: apesar de ser possível entrever uma matriz da sociedade Ocidental contemporânea na história da Idade Média, os conceitos utilizados, apesar de guardarem semelhança ou exatidão quanto a sua forma, a palavra, seu significado encontra-se na dimensão da experiência histórica e da significação humana dada no transcorrer desse tempo que é histórico, se transformando nesse processo. Schmitt (2014) expõe bem esse paradigma do pesquisador: “Se o antropólogo é imediatamente confrontado a sistemas de classificação e a um vocabulário radicalmente diferentes daqueles com os quais está familiarizado, o historiador dos períodos antigos da cultura ocidental deve prestar atenção para não considerar como evidente uma terminologia que ele parece reconhecer, mas cujos valores semânticos puderam, ao longos dos séculos, mudar mais rápido do que a forma.”. (p. 305)
A cristandade medieval representa a pessoa dotada de um corpo perecível e sua existência está em dívida com a força de criação divina. Em coabitação ao corpo está a alma, que é também devedora da criação divina, mas não encontra o valor da perecidade em si – é imortal.
A idade Média é marcada pela criação de dualidades, como a do corpo e da alma, componentes do ser humano, mas também de categorias como carne e espírito, que se configuram como moralizantes e determinam condutas boas ou ruins.
A Igreja cristã em seus primórdios (cristianismo primitivo) preconiza a metáfora de um corpo glorioso da pessoa de Cristo que carrega o símbolo da permanência do Verbo da criação entre nós. A carreira do corpo de Cristo é então projetada para o corpo de cada cristão – nascer, morrer e ressuscitar em grande glória. O pecado não deprime esse corpo-templo redimido por Cristo.
Porém, cedo se faz a relação entre potência carnal1 e pecado. Schmitt (2014) fala sobre o elo estabelecido: “Ele coloca, de um lado, que a mácula do pecado original, a falta dos primeiros pais, transmite-se pela geração humana e, por outro, que o corpo, em suas emoções (a “concupiscência”, a “tentação da carne”), é o lugar e o instrumento por excelência do pecado.” (p.306)
Esse elo estabelecido entre carne e pecado tem profundas marcas na cultura medieval do corpo e cria sobre ele um paradigma de desqualificação e repressão. A seguinte afirmação, em resumo, pode ser feita: o corpo dá lugar às trevas do pecado, do pesar e do castigo. O corpo passa a ser um peso. São Gregório Magno qualificará o corpo de abominável vestimenta da alma. (LE GOFF; TRUONG, 2006, p.11).

3. O TRABALHO NA IDADE MÉDIA

A noção de trabalho da Idade Média não escapa desses valores dualistas que se manifestam, estabelecendo um “lugar reservado ao trabalho manual, sucessivamente, alternativamente e por vezes simultaneamente desprezado e valorizado.” (LE GOFF; TRUONG, 2006, p.64)
Os ofícios na idade Média, então, estão submersos nesses movimentos de valorização e desvalorização, entre um trabalho dignificante, a obra criadora do trabalho divino, e o labor, como forma de castigo dado para a humanidade a partir de Adão: “No suor do teu rosto comerás o teu pão” (Gênesis 3:19).
A mulher carrega um peso ainda maior, pois está destinada a ela o trabalho do parto, como diz as Escrituras: Para a mulher sentenciou o SENHOR: “Multiplicarei grandemente o teu sofrimento na gravidez; em meio à agonia darás à luz filhos” (Gênesis 3:16)
Uma influência do mundo greco-romano é a divisão entre o trabalho manual e o ócio, o primeiro é escarnecido e o segundo é louvável. Tal modelo parece se repetir de um lado no modo de vida monástico e na crença medieval de que o trabalho que suja as mãos é de natureza não-nobre e era mal visto perante as camadas de elite da sociedade medieval.
Entre as profissões, algumas foram condenáveis em sua prática e por detrás dessas condenações estão tabus que remontam às sociedades primitivas. Temos o tabu do sangue, da impureza, do dinheiro. (LE GOFF,1979)
A prática da prostituição, que consiste no uso do corpo como mercadoria sexual, é uma profissão que reúne vários desses aspectos condenáveis na sociedade medieval. Em contrapartida, como nos conta Jeffrey Richards (1993) no seu livro sobre minorias, a prostituição era uma prática comum na Europa medieval e existiam poucas cidades que não contavam com um prostíbulo, ou “boa casa”. (p.121)
Enquadro a prostituição neste subtítulo cuja a temática é trabalho baseado nos vestígios que demonstram a essencialidade da prática para o controle social e das tentativas de organizar esse trabalho e pela existência de hierarquias administrativas-organizacionais dentro do ofício.
Tal necessidade de controle social e a relação aparentemente contraditória de uma sociedade profundamente pudica, moralista quanto ao corpo e ao comportamento, e uma prática onde se utiliza do corpo para o sexo em troca de algum benefício, permite entrever atritos entre os intentos de controle moral religioso e os costumes sociais correntes na europa medieval. Era tolerável socialmente que os jovens e solteiros pudessem frequentar das “boas casas”, pois era um meio de afirmar a masculinidade numa sociedade que reprime a homossexualidade, bem como aliviar as necessidades sexuais masculinas, num ganho de controle dos casos de estupros de não-prostitutas e filhas de famílias respeitáveis. Haviam muitos casos de estupro por parte da clientela na prostituição.

4. FOLIA E PENITÊNCIA: BALANÇA MORAL DO MEDIEVO

A vida cotidiana na Idade Média vê sua dinâmica articulada entre “Quaresma e Carnaval”, remetendo ao famoso quadro de Bruegel de título “O Combate do Carnaval e da Quaresma”. São os representantes de dois extremos, resumidos pela falta e pelo excesso.
Foi a Igreja que iniciou a normatização dos atos sexuais alheios, buscando enquadrar nas regras os momentos, os tipos de parceiro e em que lugares as pessoas poderiam praticar seu sexo.
O corpo em sua dimensão sexual na Idade Média é majoritariamente desvalorizado, as pulsões e o desejo carnal, amplamente reprimidos. O casamento cristão, que aparece, não sem dificuldade, no século XIII, será uma tentativa de remediar a concupiscência. Só tolerável e compreensível a relação sexual com a única finalidade de procriar. A profilaxia frente a um corpo que tem em sua carne as fraquezas das paixões é justamente dominá-las e reprimi-las. Qualquer método contraceptivo era mal visto pelos clérigos pois se caracterizaria como um ataque à natureza criada pelo divino por desejo de prazer.
Para cada forma de pensamento e intenções, principalmente de cunho moralizante, é preciso que uma elaboração de terminologias seja empreendida de forma que sejam determinantes no seu universo de significação, quase como se santificadas na linguagem, como explícito na citação: “caro (a carne), luxuria (a luxúria), fornicatio (a fornicação), forjam o vocabulário cristão da ideologia anticorporal.” (LE GOFF; TRUONG, 2006, p.42)
Santo Anselmo, arcebispo da Cantuária (1033-1109) escreve em uma de suas orações:
Existe um mal, um mal acima de todos os males, que tenho consciência de que está sempre comigo, que dolorosa e penosamente dilacera e aflige minha alma. Esteve comigo desde o berço, cresceu comigo na infância, na adolescência, na minha juventude e sempre permaneceu comigo, e não me abandona mesmo agora que meus membros estão fraquejando por causa da minha velhice. Este mal é o desejo sexual, o deleite carnal, a tempestade de luxúria que esmagou e demoliu minha alma infeliz, sugando dela toda a sua força e deixando-a fraca e vazia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

SCHMITT, Jean-Claude. O corpo, os ritos, os sonhos, o tempo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias na idade média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed.,1993.
LE GOFF, Jacques. TRUONG, Nicolas. Uma história do corpo na idade média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
LE GOFF, J. O homem medieval. Lisboa: Editorial Presença, 1989.
LE GOFF, J. A civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1995. v. 2. [original: 1964].
NOTAS:
1 Aqui entende-se como a força de desejo, ligada à carne, que leva ao ato.


*Roberval Nascimento da Silva Júnior, 20, é acadêmico do 4° período do curso de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Suas áreas de interesse acadêmico são a Antropologia e a Teoria da História, com ênfase na relação entre História e Memória nas obras de Paul Ricoeur e Alessandro Portelli.




















CRÉDITO DA IMAGEM:

www.ricardocosta.com

sábado, 2 de dezembro de 2017

Cristianismo e heresias: O nascimento de uma nova fé à luz do Império Romano no século II. O contexto pagão e suas influências para as apologias cristãs

Hoje estarei dando início a uma série de postagens sobre história social e história cultural da Idade Média, a partir de artigos produzidos pelos alunos do 4° período do curso de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), da disciplina História Medieval II, ministrada pelo professor Me. Tiago José Cavalcanti Atroch e da qual fui Monitor esse ano.

CRISTIANISMO E HERESIAS: O NASCIMENTO DE UMA NOVA FÉ À LUZ DO IMPÉRIO ROMANO NO SÉCULO II. O CONTEXTO PAGÃO E SUAS INFLUÊNCIAS PARA AS APOLOGIAS CRISTÃS

Inara Kezia Gama Araújo¹

RESUMO
A ênfase do artigo é apresentar o impacto do cristianismo no império romano no século II d.C. Sua proliferação interferiu na política, cultura e religião. Os cristãos não adoravam os deuses pagãos, e com isso os seguidores acreditavam que se alguma desgraça ao povo acontecesse, era imediato culpar os cristãos por não cultuar os deuses. Do século II a III d.C, o crescimento do cristianismo não podia ser mais controlado, e isso chamou atenção dos romanos. As escrituras apologéticas cristãs mostravam sua racionalização da fé cristã, sua moral e argumentos filosóficos. Afinal, a multicultural de Alexandria é o princípio de vários povos vivendo em uma cidade de tamanha exuberância de filosofia, arte, cultura, linguagem, religião e costumes. Os apologistas cristãos tinham admiração pela erudição grega, e em suas escritas, harmonizam o cristianismo para com os gregos. O imperador romano Constantino oficializou o cristianismo como a verdadeira religião, assim, abolindo o paganismo. Apesar disso, é difícil acreditar nessa abolição. Suas influências são visíveis, tanto pelo contexto, como na construção de sua identidade cultural.
Palavras-chave: cristianismo primitivo, apologias, heresias, paganismo, doutrina, identidade cultural.

1 INTRODUÇÃO

Fílon de Alexandria (circa 20 a.C. - 50 d.C.), filósofo judeu-helenista. Gravura presente na obra "Les vrais pourtraits et vies des hommes illustres grecz, latins et payens" (1584), de André Thevet.

O resgate do contexto da antiguidade tem o objetivo de enfatizar a forma como o cristianismo foi se expandindo e ganhando seguidores. Apesar muitos terem abandonado suas antigas crenças, o cenário de templos, exaltação ao ser Divino e sua imagem, é fruto da identidade pagã. Como é possível se converte e deixar de seguir tudo que fez parte da construção da identidade social, político, econômico e social?
Segundo Werner Jaeger, a civilização grega exerceu uma profunda influência sobre a mentalidade cristã. A filosofia grega tem suas influências nas doutrinas cristãs. O novo testamento é o início do cristianismo primitivo, tem suas raízes na Paideia Grega e é onde se encontra uma postura ética e moral. Clemente de Alexandria e Orígenes de Alexandria são os primeiros escritores cristãos, e eles fizeram parte da educação grega.
A influência pagã no cristianismo, tem uma relação mítica. É notável, como os cristãos eram obedientes ao seu Deus e acreditavam na ressurreição de cristo. Não é diferente a dos pagãos. Se tratando de mito, o paganismo é recheado de mitologias na qual, todos os deuses, tinham seus aspectos, seja ela na guerra, na colheita, na prosperidade, na fertilidade, na sabedoria e etc. O mito serve para exaltar seu Deus, seus deuses. Afinal, Mitologia e religião têm suas diferenças.
E claro, como a proposta do artigo é mostrar a fundação do cristianismo, é impossível esquecer-se dos judeus. Logo no início, o cristianismo se difundiu nas cidades helênicas entre os judeus da Diáspora, sendo assim, vista como uma seita no judaísmo. O Judaísmo se tornou subitamente conhecido, e tem uma relação com a educação grega, onde Fílon de Alexandria adaptou-se com a filosofia grega.
A diversificação de religiões (egípcia, grega, romana e judia) é um dos assuntos que busco explicar por meio da nova religião nascida no império romano. É um assunto complexo, contudo, procurei especificar suas características que o contexto apresenta.
Os conflitos religiosos após a oficialização do cristianismo, é importante para melhor compreensão de como eles fazem parte do nosso cotidiano e a construção do imaginário. Sendo assim, cabe a nós reconhecer de como a antiguidade nos proporciona tamanha atração com seus legados e construção histórica. Minha intenção de buscar o cristianismo primitivo, foi para melhor enriquecimento e entendimento de como os pagãos são tratados com mais fervor como hereges na idade média, já em um período na qual é o ápice do cristianismo, formada como uma doutrina e a igreja católica sendo a elite.

2 OS APOLOGISTAS: A ERUDIÇÃO GREGA NA CONSTRUÇÃO DO CRISTIANISMO

Alexandria, por seu notório esplendor cultural e filosófico, tem como os primeiros apologistas cristão, Clemente e Orígenes. Grandes admiradores da erudição grega aproveitaram da Paideia grega pra desenvolver a nova crença. Tornaram-se os principais fundadores da filosofia cristã. Ambos nasceram na metade do século II. A inclusão do cristianismo no ambiente helênico era para fortalecer seu crescimento e assim sendo, adaptar-se a cultura grega para desenvolver suas apologias e o discurso teológico-cristão.
Os apologistas do século II tem um nível de intelectualidade, por isso, precisavam fazer do cristianismo, uma filosofia apropriada para com a cultura de Alexandria.
A intenção de Clemente era a “conversão” dos helenos, porém, sabia que para tal iniciativa, teria que traduzir a linguagem cristã. Assim, as apologias cristãs são herdadas da filosofia helênica, como diz Joana Clímaco:
Clemente, ele próprio um grego converso, vivenciou a atmosfera da Segunda sofistica; era um grande admirador da cultura e tradição filosófica dos helenos, apesar de repudiar o politeísmo e suas práticas. Fazia uso da Paideia grega para justificar racionalmente a sua fé e exortar os gregos à conversão. Nesse sentido, empregava sua erudição e sua capacidade retórica com o intuito apologético, pois acreditava que só por intermédio da razão se conheceria a verdadeira essência de deus. Dessa forma, conciliava sua fé cristã com uma curiosidade pelo universal, comparando textos de tradições diversas. Seu ponto de partida foram as escrituras judaicas, que transformaram em objeto de teologia, associando a fé e razão. (Alexandria Greco-romana: hibridismo cultural do contexto a fundação ao cristianismo, p. 81-82).
O neoplatonismo, uma escola filosófica, na qual Orígenes de Alexandria fez parte, é uma escola pagã. Uma escola que se organiza a partir de Plotiano. O filósofo estimulava praticas ascéticas como importante aspecto de vida do filósofo, com o intuito de fazer as pessoas caminhem em uma vida contemplativa separada de preocupações corpóreas e terrenas. Seguindo isso, a semelhança entre o cristianismo e o neoplatonismo, onde o individuo acreditava na alma personifica e liberta para alcançar a salvação. Porém, apesar das tendências espiritualistas e místicas do neoplatonismo, o comprometimento com a argumentação filosófica, o distingue da percepção cristã. Mas, ambas são formadas no cenário intelectual de Alexandria.
Fílon de Alexandria é do século I d.C conseguiu conciliar a fé judaica com a educação helenizada. Conquistou a cidadania alexandrina e incluído em suas esferas administrativas, um caso raro entre os outros judeus da cidade. Podemos considerar Fílon o primeiro filósofo judeu, sua utilização da filosofia grega, apesar de suas crenças judaicas, pode se dizer que foi um meio de participar do processo de interação da linguagem grega. Influenciou apologistas cristãos e pensadores judeus posteriores, filósofos islâmicos, dando origem ao neoplatonismo medieval. Joana Clímaco diz o seguinte:
A familiaridade de Fílon com a filosofia grega fora talvez uma consequência de proximidade entre a intelectualidade judaica de Alexandria e as escolas filosóficas gregas difundidas até então (orfismo, estoicismo, ceticismo, pitagorismo e platonismo), muitas das quais foram revitalizadas no ambiente eclético da cidade. Sua filosofia judaico-helenística também se somou ao sincretismo resultante do contato da filosofia grega com as religiões orientais. Ao conciliar escrituras bíblicas com a filosofia grega, as obras de Fílon foram fundamentais para a expansão da cultura clássica do mundo romano, para a interpretação bíblica desenvolvida pelos Padres da Igreja e formação da teologia cristã e para a difusão do neoplatonismo nos séculos seguintes, que teve Alexandria como um de seus centros mais expressivos. Nesse sentido, a metrópole ainda facilitava o encontro de mundos através de seus núcleos intelectuais. (Alexandria Greco-romana: hibridismo cultural do contexto de fundação ao cristianismo, p. 79)

3 MITOLOGIA E RELIGIÃO: A NARRATIVA GLORIOSA DE SEUS DEUSES, ASSOCIADA À FIGURA DO HOMEM PARA SUA EXALTAÇÃO DIVINA

Como de costume de antigas civilizações politeístas, seus deuses são sempre associados com os acontecimentos da humanidade. Seus feitos são eternizados em templos, esculturas, rituais e o mais digno dentro dessas características, é sua relação com a imagem do rei. Quando se trata de prosperidade do reino, o estabelecimento da ordem cósmica é o primordial para a segurança do povo e é claro, do rei. Grandes faraós egípcios, helênicos, ptolomeus e romanos, têm suas características semelhantes à do Egito faraônico.
O faraó (casa grande) era o principal da escala social. Rei, sacerdote, chefe militar, senhor dos exércitos, filho e protegido de tais deuses, era uma figura exaltada, repeitada e temível. Gregos, macedônios e romanos, são incluídos nesses aspectos. Ora, quem que quisesse se tornar o faraó, não queria ser glorificado? Foi assim que Alexandre, o Grande, em 332 a.C. quando ele derrotou os persas no segundo domínio no Egito, foi recebido como o salvador, e se tornou o faraó, sendo conhecido como o filho de Zeus-Amon. Otaviano (futuramente Imperador Augusto), após sua batalha de Àcio em 31 a.C, derrotando Marco Antônio e se tornando o Senhor do Egito, se tornou faraó e governou o Egito como seu domínio pessoal. No Egito Romano, o período faraônico “perde seu esplendor”, mas a sua identidade é mantida, principalmente na imagem do imperador.
Augusto transformou o Egito como província imperial, governada por um prefeito de ordem equestre, designado diretamente pelo imperador. O prefeito era a autoridade máxima local: comandante do exército, chefe da administração civil e das finanças e magistrado.
Os cultos aos deuses, é uma das tradições pagãs, na qual, determinado deus(a) tem sua personificação e narrado a sua história, cuja sua ênfase é retratar o seu significado e sua grandiosidade para que seu nome seja um feito místico escrito, narrativo e eternizado.
Qual a relação dos cultos pagãos para os cultos cristãos? Um dos mais famosos mitos egípcios é de Isis e Osíris. O episódio conta o assassinato de Osíris e a busca de Isis pelos pedaços de Osíris espalhados pelas margens do rio Nilo. No ritual, a pessoa que queria iniciar-se, deveria se apresentar em publico como um deus e chamava a ele mesmo de renascido. Assim, para com os cristãos. Quando Jesus foi crucificado, morto e sepultado, e no terceiro dia ressuscitou. Quando eles eram batizados, acreditavam que estavam renascendo. Suas semelhanças, é clara nas suas crenças e que seus Deuses e Deus voltaram a viver após a morte.
Essas crenças é anterior a época cristã, sendo assim, é visível que a religião pagã tem participações nas crenças cristãs. Faço observações de traços semelhantes nas partes da oração do Credo: “Creio no espírito Santo” “Na ressurreição da carne, na vida eterna “, é explícito como suas crenças é comparável aos dos pagãos, eram obedientes aos seus Deuses e mostravam isso através de cultos e rituais, na qual suas praticas são para agradecer e retribuir o que suas proteções, prosperidade e também em aspectos mais pessoais, são atendidos através de sua divindade.
Seja no politeísmo ou monoteísmo, suas semelhanças são em questão da função do divino eterno, como seu feito histórico faz parte de suas vidas e de que a gratidão, respeito e benevolência são executados através de seus cultos e rituais.
Minha intenção não é misturar as crenças religiosas, e sim, deixar notório como cada uma tem sua semelhança e de como podemos compreender a essência do poder divino em nossas vidas, como esses seres fizeram e ainda fazem parte da nossa identidade cultural. Atribuir as comparações, é enfatizar de como mitologia e religião, por mais que muitas vezes possamos juntá-las em um único corpo, é possível e correto separá-las para melhor conhecimento de que mito é uma história recheada de feitos históricos, cujo determinado Deus ou Deus tem seu legado construído e sua função para a vida de seus seguidores e religião é uma instituição formada que parte do poder da crença e tem seu princípio sobrenatural e tem sistemas de doutrina.

4 HERESIAS: O SEU IMPACTO NA DOUTRINA CRISTÃ E SEU CRESCIMENTO PARTINDO DA ANTIGUIDADE AO CONTEXTO DA IDADE MÉDIA

De origem grega, hairesis, significa “escolha, preferência pessoal”, porém certas vezes a versão portuguesa traduz como “seita”. Por isso, procurei contextualizá-la com o seu impacto perante os cristãos e de que como os hereges têm sua resistência até na Idade Média, onde a igreja católica apostólica romana exerce seu poder e sua poderosa elite.
No século IV d.C, o imperador romano Constantino(306-337), até então pagão, se batizou e oficializou a verdadeira religião: cristianismo. A partir de então, o paganismo entra em decadência (prefiro usar essa palavra do que dizer que foi abolida ou teve seu fim), dando um ponta pé inicial para um fervoroso cenário de conflitos religiosos onde cristãos e pagãos são os protagonistas.
O fortalecimento da fé cristã, causou um profundo impacto de identidade cultural, nas estruturas política, militar, sacerdotal, administrativo, e econômico, como fala Márcia Vasques:
Esta nova estrutura política alterou completamente a estrutura antiga do poder egípcio e, embora o país, no geral, tenha se mantido próspero durante o período romano, o enfraquecimento da economia dos templos e o rígido controle sobre a classe sacerdotal, preparou o caminho para o colapso dos templos egípcios e abriu espaço, no século IV d.C, para uma nova religião que crescia rapidamente: o cristianismo. (Crenças funerárias e identidade cultural no Egito Romano: máscaras de múmia, p. 10-11)
Assim como o cristianismo no início foi considerado uma seita perante os judeus e que os próprios consideravam os cristãos como hereges, por não seguirem sua doutrina religiosa, agora consideram os pagãos como hereges, aqueles de uma falsa mediação cultural.
A igreja católica na idade média era uma organização totalitária. Doutrinal, hierarquizada, autoritários e rituais estabelecidos. Qualquer divergência em relação a essa organizada e abrangente estrutura, infligia à ordem temporal divinamente ordenada, portanto, não seria tolerado.
A heresia era, como definiu o bispo Roberto Grosseteste no século XIII “uma opinião escolhida pela percepção humana, contrária à Sagrada Escritura, publicamente admitida e obstinadamente defendida”. A heresia popular não parecia preocupar a igreja, a sociedade estática, defensiva contra-ataques vindos de forças exteriores e havia pouco tempo para a experiência religiosa ou para debate intelectual. Contudo, isso mudou com uma explosão de exercício que os eruditos nomearam de “o Renascimento do século XII”. Esse fervor religioso foi acompanhada de uma denominação que Brenda Bolton chama de “a reforma medieval”.
Ambos foram fundamentais para o favorecimento de concentração no indivíduo, e na religião, uma procura individual pela redenção e o desejo do cristão leigo comum por uma relação mais direta e pessoal com Deus.
A igreja também começou a reforma-se. O papado que foi salvo de uma decadência no final do século XI por uma sucessão de papas reformadores, tiveram a responsabilidade de ordenar a casa. Lançou uma campanha contra a simonia (a venda de indulgências), o controle leigo sobre bispados e benefícios, o casamento de clérigos e impudência do clero.
Essa reforma, fez com que o papado fosse uma instituição monárquica organizada, burocrática e legalista, com o clero transformando-se numa casa fechada e exclusiva. Uma escola de pensamento que encara toda heresia ocidental como essencialmente maniqueísta. As ações e opiniões dos hereges ocidentais era um evangelismo provocado pela reação ao mundismo percebido e á corrupção da Igreja. Defino segundo Jeffrey Richards:
[...] a busca por uma vida religiosa mais completa e satisfatória através da austeridade pessoal, da adesão ao evangelho e da pregação foi um tema central. Foi a recusa da Igreja de reconhecer plenamente essas aspirações e essas práticas que transformou seus adeptos em hereges. [...] A heresia medieval nasceu das condições e da psicologia da sociedade medieval. tratava-se de dissensão religiosa e, em sua parte, de dissensão religiosa popular.(Sexo, desvio e danação: as minorias na idade média, p. 55)

5 CONCLUSÃO

É nítida a influência do paganismo no cristianismo. Seja ela em apologias, cultos e rituais. A inclusão tem como concepção, observar a forma de que como as identidades são plurais e como é uma construção social e mostram-se moveis. Pagãos, judeus e cristãos fazem parte do mesmo contexto. O paganismo não teve seu fim, pelo contrário, apesar dos cristãos abolirem os cultos Deuses, sua identidade esta viva em cultos, templos, escrituras e a imagem do ser divino exaltado, mais eficaz dentro de uma doutrina

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

JAEGER, Wener. Cristianismo primitivo e a Paideia grega. Tradução: Daniel da Costa. Santo Andre, SP: Academia cristã, 2014.
KOESTER, Helmut. Introdução ao novo testamento. São Paulo: Paulus, 2005. v.2
CLÍMACO, Joana Campos. Alexandria Greco-romana: hibridismo cultural do contexto de fundação ao cristianismo./ Atravessando mundos: ensaios sobre a imaginação medieval./ Sínval Carlos Mello Gonçalves. Manaus: EDUA, 2015
VASQUES, Márcia Severina. Crenças funerárias e identidade cultural no Egito Romano: máscaras de múmia. São Paulo, 2005. v.1

RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias na idade média. Tradução: Marco Antonio Esteves da Rocha e Renato Aguiar. Rio de janeiro: Jorge Zahard Ed, 1993.


¹ Inara Kezia Gama Araújo, 18, é acadêmica do 4° período do curso de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Sua área de pesquisa é a História Antiga, com destaque para o Egito Antigo, com ênfase no resgate da importância da imagem do faraó em torno do sistema político-religioso. Trabalha a identidade cultural, crendo na importância de se esclarecer como o contexto multicultural faz parte da nossa identidade, abrangendo aspectos sociais, políticos, econômicos, linguísticos e religiosos.







CRÉDITO DA IMAGEM:

commons.wikimedia.org

sábado, 25 de novembro de 2017

Manaus e seus historiadores (1949)

Geraldo de Macedo Pinheiro (1920-1996).

O texto a seguir foi escrito pelo Procurador de Justiça, Secretário de Estado do Interior e Justiça e antropólogo Dr. Geraldo de Macedo Pinheiro (1920-1996), por ocasião da passagem do centenário da elevação de Manaus à categoria de cidade, e publicado originalmente no Jornal do Comércio em 26/02/1949 com o título "Manáus e seus historiadores". Nesse texto, Geraldo Pinheiro traça um breve panorama dos historiadores da cidade, indo do final do século XIX e início do século XX com Bento Aranha e Bertino Miranda, até a década de 1940 com a história social e cultural de Mário Ypiranga Monteiro, além das crônicas de Anísio Jobim e Júlio Uchôa.


Manáus e seus historiadores

Por Geraldo Pinheiro, especial para o Jornal do Comércio

A passagem do centenário de Manaus constituiu motivo para o aparecimento de novos trabalhos que vieram a completar a parca bibliografia histórica da cidade. A antiga tapera, a que alude Euclides da Cunha, transformada numa moderníssima cidade, com todo o conforto da civilização, teve rápido desenvolvimento. Apagaram-se da "urbs" as velhas moradias e desapareceram as antigas sobrevivências dos costumes indígenas. Transmudou-se, em poucos anos, num centro de civilização com agitada vida política e literária. Cedo atraiu vultos eminentes das mais diversas localidades do país. Seus recantos foram visitados por sábios da maior representação mental da velha Europa e dos Estados Unidos, os quais aqui se desenfastiaram da monotonia de longas viagens. Nos seus salões floresceram, durante décadas, os sagrados cultos da oratória e da poesia. Os seus jornais estamparam as mais belas páginas de uma geração irrequieta e barulhenta. Grandes nomes da literatura nacional aqui conviveram e foram alvo das mais retumbantes manifestações. A crônica social da cidade é, assim, das mais curiosas e está exigindo ainda novas revelações. Mercê de tanta vida febricitante, de tanta produção literária, conta-se a dedos os seus genuínos historiadores, os seus dedicados filhos, que tiveram de lançar suas beneditinas vistas para o passado da cidade.

Tudo estava por fazer. As referências à sua história dormiam na poeira dos arquivos, nas velhas obras de cronistas, nos livros de viagem dos naturalistas.

O seu primeiro historiador foi inegavelmente Bento Aranha, o velho Bento, a quem o Amazonas e suas instituições políticas e culturais tanto devem. Político e historiador, organizando bibliotecas, relatórios, mensagens, colecionando as produções poéticas do seu pai, não se esqueceu ele de voltar as suas vistas para a terra baré e dedicar-lhe um dos mais curiosos trabalhos.

"Um olhar pelo passado", folheto de poucas páginas, é sem favor algum a primeira contribuição à história topográfica da cidade, das suas ruas e nomenclaturas, tão bem explicada com amor e dedicação aí por volta de 1897.

Uma década após ao seu aparecimento, outro cultor da nossa história, o simples B. M., Bertino de Miranda, publicou um volume mais sólido e mais bem documentado: "A Cidade de Manaus - história de seus motins políticos".

B. M. anexou ao seu livro as mais interessantes atas de sessão da Câmara Municipal. Todo o seu esforço foi baseado quase nessa documentação e se tal não fizesse até hoje talvez não disporíamos de melhores fontes.

Todas as contribuições de uma plêiade brilhante de amazonenses e intelectuais aqui radicados, como Bento Aranha, Aprígio de Menezes, J. B. Faria e Sousa, Gaspar Guimarães e Alfredo da Mata e outros mais, não bastaram para infundir, no ânimo dos nossos conterrâneos, o amor pelo nosso passado. Anos e anos decorrem com pouca produção no domínio da história. As belas iniciativas de Bento Aranha e Bernardo Ramos, através do "Arquivo do Amazonas" e da "Revista do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas" como que se eclipsaram.

Um sopro renovador consegue, felizmente, levantar o interesse de uma nova geração de estudiosos, fazendo reacender o entusiasmo dos próprios velhos. Eis que reaparece novamente a "Revista do Instituto", quase morta com o seu primeiro número e a "Revista Amazonense". Desse grupo, destaca-se Arthur Reis, o mais completo historiador do Amazonas, a quem todos nós devemos uma nova orientação e o descobrimento e a revelação de importantes documentos. E ainda sob essa influência salutar que ele lança "Manaus e outras vilas". Trabalho bem documentado, vários aspectos da vida da cidade foram focalizados sob prismas novos e detalhes mais ricos.

O chamado glebarismo literário degenerou-se, porém, no mais frio desamor pela terra. Guindados às posições chaves, alguns representantes desse movimento preferiram a boa comodidade e nada fizeram pela cultura do povo. Abriu-se assim novo período de inércia.

Chegamos agora à nova meta. Sopram melhores ventos. O esforço pessoal indica novos rumos. Anísio Jobim e Júlio Uchôa são os animadores desse movimento e deles provêm a iniciativa da publicação de crônicas históricas as mais diversas, focalizando ângulos da nossa formação e da evolução social do Amazonas, estampando ambos e outros estudiosos excelentes produções históricas. A Júlio Uchôa prende-se a primeira tentativa séria de divulgação sistemática à frente, como se achava, do seu modelar Departamento Estadual de Estatística. É esta repartição que divulga, em nossos tempos, as preciosas crônicas de Mário Ypiranga, versando costumes de Manaus antiga, a nomenclatura de suas ruas e os seus tipos populares.

Este jovem historiador amazonense conseguiu transformar-se na mais douta autoridade da história da cidade com o seu livro "Fundação de Manaus", valiosa publicação que é bem obra de seu esforço pessoal, salvando documentos que apodrecem nos velhos e desaparelhados arquivos da cidade.

As bases da história de Manaus estão, definitivamente, assentadas com o lançamento desse livro. Todo manauense deveria lê-lo para melhor conhecer e divulgar a história da cidade, sabido que são raros aqueles que ousam levantar a cortina que nos separa do passado.


FONTE:

Jornal do Comércio, 26/02/1949


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sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Giovanni Villani: Pensamento Histórico e Prática Historiográfica

Estátua de Giovanni Villani na Loggia del Mercato Nuovo, em Florença, na Itália.

Giovanni Villani (1276-1348) foi banqueiro, diplomata e cronista florentino, autor da densa obra Nuova Crônica, escrita na primeira metade do século XIV, que narra a história da cidade de Florença desde sua fundação até o período em que escreve.

Inspirado pela grandeza da cidade de Roma, na época capital dos Estados Papais, e pelas transformações pelas quais passavam as cidades Estados italianas, prosperando cultural e comercialmente, Giovanni buscou as origens de Florença no passado romano, de sua fundação por Júlio César enquanto uma colônia. Ao escrever, tinha como objetivos preservar as memórias da cidade e dar exemplos para as gerações futuras do que deveria ou não ser seguido. A história como exemplo das ações humanas é uma tônica da historiografia romana clássica, podendo ser citados autores como Tito Lívio e Cornélio Tácito, mantida na crônica medieval. Aliás, os exemplos, em alguns casos, chegam a ser mais importantes que os fatos narrados, importando antes os efeitos morais que estes produzirão nos leitores que suas veracidades. A cidade, em oposição ao mundo rural, é o objeto de estudo do cronista medieval, que assemelha suas instituições às da antiga República de Roma.

As crônicas que se proliferaram pela Europa desde o século XII passaram a ser escritas em línguas vernáculas, isto é, na língua de cada país, contribuindo para a formação de identidades nacionais. Villani escreve sua crônica em toscano, em dialeto vulgar. De acordo com Vânia Vidal Luiz, a escolha da língua vulgar tinha como propósito "[...] oferecer aos cidadãos de Florença uma obra que preservasse a memória da cidade, por um lado, e que tornasse os exemplos que dela pudessem advir, acessíveis a um público amplo, por outro, já que seria igualmente aproveitada por todos" (2014, p. 105-6). O latim é a língua erudita, refinada, dos humanistas, que vai de encontro com seus escritos que são mais separados de perspectivas religiosas e místicas do que as crônicas medievais.

A exemplo das duas perspectivas anteriormente citadas, Villani utiliza uma estrutura de história providencial emprestada de Paulo Orósio (385-420), historiador e apologista cristão romano. Uma narrativa providencial implica uma perspectiva em que Deus é a base e a causa dos eventos históricos. No entanto, Giovanni não deixa a figura divina interferir nas ações dos homens, mas ela ainda "[...] opera no sentido de puni-los em suas más ações, e em recompensá-los pelas boas, fazendo com que haja uma relação no devir humano entre causa e consequência, que pode ser interrompida mediante o exemplum" (LUIZ, 2014, p. 110). Pendendo para um aspecto mais místico estão suas citações sobre o alinhamento de corpos celestes ou situações astrais favoráveis, bem como o registro de adivinhações e maus agouros.

Sobre o desenvolvimento de sua narrativa, são abordadas na primeira parte a Torre de Babel e sua destruição, que dispersou a população na terra. Após a destruição, a humanidade é dividida em três porções de terra, cada uma correspondente à descendência dos filhos de Noé, com a Europa sendo habitada pelos descendentes de Jafé, a Ásia pelos descendentes de Sem e a África pelos descendentes de Cam. Posteriormente, faz uma digressão sobre a cidade de Fiesole, rival de sua cidade natal e destruída pelos florentinos no início do século XI. Os troianos se fazem presentes na cidade através de príncipes emigrados. Os romanos ganham destaque ao construírem um templo dedicado a Marte e, em uma perseguição imperial em 270, martirizam São Miniato. No bojo das transformações do Império, que aos poucos se torna cristão, o templo de Marte é consagrado a São João, tornando-se a Catedral de Florença. Três capítulos são dedicados à presença dos francos na região, com Villani afirmando que Carlos Magno reconstruiu Florença após mais de dois séculos de domínio lombardo. Quanto mais próxima da época do autor, mais densa se torna a crônica. Ganham destaque no século XI as disputas entre o Império e o Papado. A partir do século XII, escreve John Burrow, 

as rixas e os arranjos constitucionais florentinos, e a defesa de suas liberdades em face das ameaças externas, são agora o centro da narrativa - embora ainda haja excursões a outra partes, além de um relato sobre as origens da briga entre as facções políticas rivais dos guelfos e guibelinos em Florença, informando quais importantes famílias apoiavam qual lado (BURROW, 2007, p. 315)

Nos últimos livros são descritas as facções de grandes famílias e de classes, e os tumultos que surgiam com suas disputas. Villani dá atenção aos emblemas dos estandartes das corporações de ofícios, que representavam as ocupações dos grupos (uma ovelha branca para os comerciantes de lã, um alicate para os ferreiros etc).

Quanto aos referenciais, além da Bíblia e da estrutura de Paulo Orósio, Villani cita que, quando estava em Roma durante o Jubileu do ano de 1300, ocasião que o inspirou a escrever, leu a história e os grandes feitos dos romanos escritos por Virgílio, Salústio, Lucano, Orósio, Valério e Tito Lívio (LUIZ, 2014, p. 113). A influência de Virgílio se encontra nos escritos sobre os troianos, podendo o autor ter lido a Eneida. Mesmo gostando do estado de prosperidade de Florença, o autor adverte que a tranquilidade e prosperidade excessivas anestesiam os homens e fazem emergir o orgulho e a corrupção, estando aí a influência de Salústio, que evidencia os vícios dos homens nas obras A Conspiração de Catilina A Vida dos Doze Césares. Villani utiliza o segundo livro de Farsália, obra de Lucano, como fonte sobre as ações de Júlio César. Em Valério e Tito Lívio o autor busca as origens remotas da República Romana, dos tempos de Júnio Bruto e dos Tarquínios. Outra influência de Tito Lívio, identificada por Burrow, é a visão crítica que Villani tem da mistura entre romanos nobres e fiesolanos cruéis e violentos, migrados para Florença, "que faz lembrar as assimilações na história de Roma, como descrita por Tito Lívio" (BURROW, 2007, p. 315).

Analisando a transição da escrita cronista para a historiografia humanista, John Burrow afirma que as opiniões de Villani "[...] eram teológicas, astrológicas e apocalípticas, e não abrangentemente políticas e historiográficas" (BURROW, 2014, p. 318). Por outro lado, Vânia Vidal insere a crônica de Villani na tempora moderna (tempos modernos), na prosperidade vivida e percebida pelos habitantes de Florença. A crônica é nuova porque é a expressão de seu tempo, o tempo de existência lendária e histórica da cidade. "É o tempo que ultrapassará o próprio tempo, de uma Florença tornada eterna através da monumentalização de seu passado, e de seus feitos" (LUIZ, 2014, p. 107). Os feitos, os exemplos, conferem identidade à cidade dessa crônica urbana do século XIV.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

LUIZ, Vânia Vidal. Fórum de verdade e ficção: a Crônica de Giovanni Villani na Florença medieval. Rio de Janeiro, UNIRIO, 2014. Dissertação (Mestrado em História Social).

BURROW, John. Uma história das histórias: de Heródoto e Tucídides ao século XX. Tradução de Nana Vaz de Castro. Rio de Janeiro, Record, 2013.

PORTA, G. (curia). Nuova Cronica, di Giovanni Villani. Parma, Fondazione Pietro Bembo/Ugo Guanda Editore, 1991. Disponível em Letteratura italiana Einaudi - http://www.letteraturaitaliana.net/pdf/Volume_2/t48.pdf

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segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Janelas para o crime: Os ventanistas

Pedro Camilo da Silva. Especialidade: Ventanista. FONTE: Jornal do Comércio, 15/06/1948.

Os crimes estão entre as principais preocupações das populações urbanas e, há um bom tempo, das que vivem em zonas rurais. Não existiu um tempo em que não ocorressem crimes e também não existem fronteiras para as ações dos criminosos. Interessante notar como seus modus operandi vão se modificando ao longo das décadas. Se no período imperial a preocupação de alguns Presidentes da Província do Amazonas eram os ataques de “índios bravios”1, hoje existem massacres que em segundos ganham repercussão mundial2.

O tipo de criminoso abordado nesse texto remete ao passado, tanto por seu modus operandi quanto pelo termo arcaico que o designa. O ventanista era o arrombador de outros tempos, o criminoso que vez ou outra surgia nas páginas policiais por entrar em uma residência pela janela (ventana, em espanhol) e furtar os objetos que estivessem ao seu alcance. A falta só era dada no dia seguinte, quando se percebia a janela forçada ou mesmo quebrada. Na hierarquia do mundo do crime, estava ao lado dos que eram considerados de menor grau, como os batedores de carteira, os ladrões de galinha e os falsificadores.

Na ausência de processos criminais, os jornais são as melhores fontes para trabalhar sua atuação e ocorrências na cidade de Manaus. Algumas notas policiais são ricas em informações, estampando até mesmo fotos do criminoso, como é o caso da que foi produzida após a captura de Pedro Camilo da Silva. Pedro Camilo da Silva nasceu em 25 de junho de 1923, na Paraíba do Norte (antiga denominação do atual Estado da Paraíba). Era filho de Joaquim Camilo da Silva e Maria Joana do Espírito Santo. Era agricultor, solteiro, tendo residido por um tempo na rua Miranda Leão. Era pardo, com cabelos e olhos castanhos, sempre de barba e bigode raspados. Foi autor de diversos furtos a residências de Manaus e Belém. Vestia-se a rigor, podendo se passar facilmente por um homem da sociedade entre as pessoas. Ao ser preso, foi com os policiais até sua nova residência, uma barraca na rua General Glicério, no bairro da Cachoeirinha. Apesar do local, os policiais encontraram uma casa bem arrumada com cama, rádio, ventilador e lavatório. Os agentes revistaram duas malas, encontrando grande quantidade de pijamas, camisas e ternos de linho e de marca. O autor da nota deixa claro que as pessoas deveriam continuar em alerta, pois ele poderia ser solto a qualquer momento3.

Os guardas-noturnos, com seus apitos, conseguiam impedir, em alguns casos, suas ações. Quando não, somente no outro dia, quando se dava falta pelos objetos, que a polícia era acionada, começando assim uma verdadeira caçada pela cidade. Interessante como os guardas, com seus apitos, lembram, em alguns aspectos, os “seguranças” informais, pagos pelos moradores, que se revezam de noite pelas ruas de alguns bairros da cidade, utilizando apitos e pedaços de pau.

Pedro Camilo atuava sozinho, mas existiam ventanistas que eram membros de gangues cujos membros davam cobertura mútua para a prática de furtos pela cidade. No Beco do Comércio, no antigo bairro dos Bilhares (atual São Geraldo), na Avenida João Coelho (atual Constantino Nery), em 1959, foram presos, após a confissão do membro João Soares Monteiro, cinco criminosos: Pedro Fernandes Freitas (ventanista e assaltante); Elias Meira Ferreira (gatuno, ventanista e assaltante); Gerson Pereira de Araújo, vulgo ‘Pernambuco’ (arrombador e assaltante); Pedro Barros Silva, vulgo ‘Russo’ e ‘Mascarado’ (arrombador, ventanista e assaltante)4. Era uma gangue formada quase que exclusivamente por ventanistas.

João Maurício dos Santos, ventanista e batedor de carteira. FONTE: Jornal do Comércio, 13/04/1966.

Em batidas policiais da DRF (Delegacia de Roubos e Furtos) sempre figurava entre os presos um ventanista. Esse foi o caso de João Maurício dos Santos, que além de ventanista era um experiente batedor de carteira, capturado com mais 23 criminosos5. Ventanista e batedor de carteira. Ao longo das décadas, nas notas policiais, percebe-se que os ventanistas foram se “especializando” em outras áreas, tornando-se mais agressivos e perigosos. Não era difícil encontrá-los envolvidos em assassinatos6 ou sendo mortos pelos moradores das casas que invadiam7. A prática ventanista, que antes era considerada um crime de menor potencial, passou a ser considerada a porta de entrada para crimes mais graves, para o vício e para o tráfico de drogas que já grassava pela cidade. Os ventanistas mais jovem eram facilmente incorporados pelos traficantes como olheiros e entregadores de seus produtos.

O ventanista clássico, se assim o posso chamar, o que apenas se preocupava em entrar pela janela da casa e furtar os objetos, desapareceu, assim como o termo, há muito em desuso. O escritor e jornalista Carlos Heitor Cony, em texto publicado na Folha de São Paulo, escreveu que o [...] “ventanista tinha de ter uma habilidade manual específica, hoje substituída por um 38 ou por arma de uso exclusivo das forças armadas”8. Os arrombadores continuam existindo, estão mais violentos, sem nada a perder, entrando nas casas para matar ou morrer. Essas são mutações históricas nos modos de agir dos criminosos, mutações essas que serão abordadas em texto futuro.


NOTAS:

1 Estrella do Amazonas, 02/08/1856

2 O massacre ocorrido no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em 01/01/2017, no qual 56 presos foram mortos, foi noticiado nos principais jornais da Espanha, da Inglaterra, dos Estados Unidos e das nações sul-americanas vizinhas.

3 Jornal do Comércio, 15/06/1948

4 Jornal do Comércio, 28/02/1959

5 Jornal do Comércio, 13/04/1966

6 Pedro Diaz, batedor de carteira e ventanista, foi preso após confessar ter assassinado o também batedor de carteira Vitor Martinez, em um caso passional que envolvia a disputa por uma mulher de nome Dolores Oliveira, moradora do bairro Morro da Liberdade. Jornal do Comércio, 16/04/1970.

7 Em 1968, “João das Frangas” foi metralhado ao entrar no quintal de uma casa no Morro da Liberdade. Jornal do Comércio, 24/09/1971.

8 Carlos Heitor Cony. Os ventanistas. Folha de São Paulo, quinta-feira, 20/02/2003.

FONTES:

Estrella do Amazonas, 02/08/1856
Jornal do Comércio, 15/06/1948
Jornal do Comércio, 28/02/1959
Jornal do Comércio, 13/04/1966
Jornal do Comércio, 16/04/1970
Jornal do Comércio, 24/09/1971
Folha de São Paulo, 20/02/2003

domingo, 19 de novembro de 2017

Hotel Cassina (1° parte)

Hoje em ruínas, o Hotel Cassina foi no passado o principal ponto de encontro da boemia manauara.

Mais uma vez, o professor e historiador Aguinaldo Nascimento Figueiredo é o autor convidado da semana, dessa vez com o texto Hotel Cassina (1° parte), um recorte de seu livro A Boemia de Manaus, ainda não publicado.


Por Aguinaldo Nascimento Figueiredo

O lugar boêmio mais famoso da cidade na era da borracha (1890/1910) foi o Hotel Cassina, localizado na atual rua Bernardo Ramos, no Centro Antigo de Manaus. O prédio do hotel, de estilo eclético, foi construído em 1899, e pertencia ao comerciante italiano Andrea Cassina. Erguido em dois pavimentos, possuía duas dezenas de aposentos e um restaurante na parte superior, que servia também de salão de festas, este, decorado com papéis de parede com motivos orientais, cortinas de seda verdes, mesas redondas e cadeiras leves importadas da Europa, forradas com toalhas de linho inglês. Ao lado da escada de acesso ficava o palco das apresentações artísticas, com sua famosa ribalta vermelha, candelabros providos de lâmpadas elétricas, com soalho revestido com tábuas de madeiras de lei.

Os quartos eram decorados com cortinas sóbrias e móveis italianos, camas americanas providas de colchão de mola, cobertas com colchas da Inglaterra, guarnecidas de travesseiros de penas de ganso e coxins de cetim da Índia.

Serviço de Táxi

No cardápio estavam presentes o que de mais requintado existia em matéria de gastronomia internacional. Os funcionários, principalmente os garçons, uniformizados em estilo europeu, serviam do caviar russo ao champanhe francês, além de peixes desidratados como salmão, esturjão e bacalhau norueguês entre outros mimos exigidos por uma clientela abastada que, muitas das vezes, sequer sabia o que estava degustando.

O Hotel Cassina foi um dos primeiros no Brasil a oferecer o serviço de táxi para seus clientes a partir de automóveis, com choferes também uniformizados, educados, cujos veículos estacionavam na frente do estabelecimento, oferecendo serviços de tournée pelos pontos de referência da cidade. Os serviços eram concorridíssimos, pois uma estadia em seus aposentos dependia de reservas antecipadas em até seis meses.

Seus momentos de glória ocorreram no período áureo da borracha, quando os barões do látex, gastavam suas libras esterlinas em diversões mundanas. O lugar ficou tão famoso que chegou a hospedar figures ilustres do mundo político e artístico a exemplo de um governador que residiu nele por vários anos, e recebeu o poeta Coelho Neto, quando de sua estadia na capital da borracha.

Leilões de virgens

O hotel oferecia outros tipos de comodidades para o deleite de sua seleta clientela, como um cassino, combinando com outras atividades tipo shows de dançarinas de can-can e a prática aberta do lenocínio.

Nas noites de funções, o hotel oferecia a companhia de mulheres bonitas e perfumadas, vindas da Europa, principalmente francesas, polacas, italianas e russas, que atendiam aos clientes endinheirados no seu famoso salão, servindo bebidas caras. Nos confortáveis aposentos os magnatas da borracha ou ilustres visitantes promoviam verdadeiras orgias baconianas que incluíam inclusive leilões de virgens caboclas.

Sabe-se, porém, que as mulheres 'importadas' não eram lá tão 'sangue puro' como se dizia na época e, tratavam-se, na maioria dos casos, de mulheres judias migradas de regiões da Rússia e Ucrânia, muitas delas, já 'sambadas' para o exercício do mister sexual, mas que se valiam da experiência na arte da sedução, principalmente por falarem outros idiomas, mais ainda, do complexo de inferioridade de colonizado do patrão da borracha, que achava que as 'coisas' de fora eram melhores do que as de casa, como até hoje.


Aguinaldo Nascimento Figueiredo é professor, escritor e historiador, autor dos livros História Geral do Amazonas (7 edições); Santa Luzia: História e Memória do povo do Emboca (2008); e Os Samurais das Selvas: A presença japonesa no Amazonas (2012).









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Manaus de Antigamente

sábado, 18 de novembro de 2017

Canções da Guerra Civil


Reproduzo a seguir, de forma integral, o capítulo Canções da Guerra Civil, do livro História da Música Popular Americana (1963), de David Ewen, onde são abordadas as canções criadas durante esse conflito, canções essas que expressavam os diferentes sentimentos que surgiam nos campos de batalha do Sul e do Norte:

Origina-se da Guerra Civil uma rica literatura de canções que refletem os vários graus de emoção despertados em ambos os campos de luta - o fervor e as amarguras, a exaltação e o desespero, as esperanças e as frustrações, a nostalgia e a solidão.

As primeiras canções da Guerra Civil destinavam-se a inflamar o patriotismo dos beligerantes, a insuflá-los para a luta. O Sul apropriou-se da melodia da canção de "minstrel show" de Dan Emmett, "Dixie", paramentou-a com nova letra marcial, e adotou-a como sua canção de guerra. O fato de ser nortista o autor de "Dixie" foi convenientemente esquecido, tendo sido admitido que circulasse uma notícia segundo a qual a música era em verdade da autoria de um negro, que falava de seus laços indissolúveis com o seu senhor e as terras do Sul. Durante toda a guerra, "Dixie" foi a canção favorita do Sul. Momentos antes de o General Pickett atacar Gettysburg, ordenou que a executassem, para levantar o moral das tropas. Depois de Appomattox, Abraham Lincoln observou que, uma vez que o Norte conquistara o Sul, também conquistara "Dixie", como presa de guerra. Como prova de seu próprio entusiasmo por "Dixie", pediu à banda que se achava nas proximidades da Casa Branca que a tocasse para ele.

Considerando a íntima identificação de "Dixie" com o Sul, seu autor - Dan Emmett - tornou-se alvo dos ataques de diversos jornais do Norte, apesar de ter sido apenas vítima inocente de uma confiscação. Para contrabalançar a influência de sua canção no Sul, Emmett escreveu uma nova letra para sua melodia, exortando o Norte a recordar-se de Bunker Hill e a "receber aqueles traidores do Sul com firmeza". Mas, embora com esses novos versos, "Dixie" nunca se tornou popular no Norte.

"Maryland, My Maryland" foi outra canção de guerra grandemente querida no Sul. A letra era da autoria de James Ryder Randall, professor de Literatura Inglesa no Colégio Poydras, em Louisiana. Tendo lido, num noticiário de jornal, a maneira como, ao passarem por Baltimore, tinham sido atacadas as tropas do Norte, Randall de logo percebeu nesse episódio uma fonte preciosa de propaganda para ajudar a fazer com que Maryland aderisse ao Sul. Numa noite de vigília de 1861, escreveu um inflamado poema, "Maryland, My Maryland", e conseguiu publicá-lo num jornal de Baltimore. Pouco depois, num comício destinado a incitar o povo de Baltimore a aderir à causa do Sul, o poema foi cantado por Jennie Cary, com a conhecida melodia alemã, "O Tannenbaum". Provocou tal explosão de entusiasmo, que os que se achavam fora do auditório afluíram às janelas para saber o que ocorria. Jennie Cary voltaria a interpretar a canção, com igual sucesso, num concerto para os homens das forças de Beauregard. Em 1862, a canção foi publicada, letra e música, alcançando imediata e ampla popularidade.

"The Bonnie Blue Flag" foi uma terceira canção a tornar-se popular no Sul, cabendo a honra dessa popularidade a Henry Macarthy, artista de teatro. Sua letra descrevia os acontecimentos que conduziram à secessão; a melodia era a de uma cantiga popular irlandesa, "The Jaunting Car". Macarthy lançou "The Bonnie Blue Flag" num ato por ele apresentado em Nova Orleans, em 1861, o qual depois seria repetido através de todo o Sul, onde a canção foi ouvida e adotada pelos soldados Confederados.

Mas, como no campo de batalha, foi ao Norte que coube a primazia na competição entre canções de guerra. Porque foi o Norte, e não o Sul, que produziu os dois principais compositores desse gênero de música: George Frederick Root e Henry Work.

George Frederick Root (1820-1895) nasceu em Sheffield, Massachusetts, e recebeu uma perfeita educação musical em Boston e Paris. Depois de haver-se dedicado ao ensino da música em Boston e Nova Iorque, propendeu para a composição de música popular - aparentemente com uma certa dose de condescendência, tanto assim que a edição de seus trabalhos foi feita sob pseudônimo - Wurzel (Wurzel é a tradução alemã da palavra Root, raiz). Várias de suas canções publicadas entre 1853 e 1855 obtiveram sucesso: "The Hazel Dell", "Rosalie, the Prairie Flower", "There's Music in the Air" (que mais tarde gozaria de popularidade em diversos colégios) e o hino evangélico "The Shining Shore".

Em 1859, Root transferiu-se para Chicago, onde se faria sócio da casa editora Root and Cady, que seu irmão mais velho ajudara a fundar um ano antes. Ao irromper a Guerra Civil, Root, como compositor de canções, orientou sua atividade para o esforço de guerra, escrevendo tanto a letra como a música de suas composições. Sua primeira canção de guerra, "The First Gun Is Fired", estimulada pela segunda convocação de Lincoln dirigida aos voluntários, em 1863, não passou de um fracasso, mas a segunda canção, "The Battle Cry of Freedom", publicada naquele mesmo ano pela firma Root and Cady, foi sua obra prima. O "duo" de cantores, Frank e Jules Lombard, apresentou a canção de maneira tão impressionante, num comício realizado na Chicago Court House Square, que o auditório, em conjunto, começou a cantar espontaneamente um dos refrões. A canção tornou-se particularmente popular entre os soldados da União. Escrevia um deles na época: "Uma sociedade de canto, que veio ao campo de batalha, de Chicago, trouxe consigo essa canção recém-lançada, que cruzou o campo como um relâmpago. O efeito foi quase milagroso. Comunicou uma alegria e um entusiasmo imenso às tropas, como se se tratasse de uma esplêndida vitória. Era ouvida noite e dia, em torno de cada fogueira e em todas as barracas. Jamais me esquecerei de como aqueles homens estrondeavam a frase - 'E embora possa ser pobre, jamais será escravo'".

Root continuou a produzir canções de guerra - algumas marciais, outras sentimentais - até o fim do conflito. As melhores foram: "Just Before the Battle, Mother", em 1863; "Tramp! Tramp! Tramp!", em 1864; e, em 1865, "On, On, the Boys Came Marching" e "The Vacant Chair", esta última inspirada na morte de um tenente do 15° Regimento de Infantaria de Massachusetts.

Henry Clay Work (1832-1884), levado por seus profundos sentimentos abolicionistas e unionistas, escreveu algumas das mais eloquentes canções de Guerra do Norte. Como Root, compunha letra e música. Era filho de um ativo abolicionista, cujo lar era uma estação no Caminho de Ferro Subterrâneo¹ por onde mais de 4.000 escravos escaparam.

Work nasceu em Middletown, Connecticut. Quando trabalhava como aprendiz de tipógrafo em Hartford, descobriu um acordeão num quarto sobre a oficina e em breve estava a usá-lo para compor canções. Sua primeira canção foi "We Are Coming, Sister Mary", que, segundo dizem, foi comprada pelos "Ed Christy Minstrels" por 25 dólares, e cantada com sucesso durante os dez anos que se seguiram à sua primeira publicação. Em 1854, Work mudou-se para Chicago, para trabalhar como tipógrafo. Fez aí amizade com George Root, por cuja insistência começou a escrever canções de guerra, tão logo teve início a Guerra Civil. A primeira foi "Kingdom Coming", animada melodia popular para versos em dialeto negro. Alcançou tal sucesso, imediatamente após sua publicação pela firma Root and Cady, que Work se sentiu encorajado a abandonar a tipografia e dedicar-se à composição de canções. Depois da invasão da Pennsylvannia pelo General Lee, Work compôs "The Song Of Thousand Years", e, em consequência de sua apreensão ante o destino do Norte, compôs "God Save the Nation". Escreveu também agradáveis canções humorísticas: "Grafted into the Army", em 1862; "Babylon Is Fallen!", em 1863; e "Wake Nicodemus!", em 1864. A canção a que seu nome estará sempre associado apareceu em 1865, nos últimos meses da guerra. Trata-se de "Marching through Georgia", inspirada no histórico avanço do General Sherman para o mar. (Muitos anos depois, a Universidade de Princeton utilizou-se de sua melodia para uma canção de futebol).

Depois que o primeiro tiro foi desferido, também Stephen Foster começou a dirigir sua energia musical no sentido de compor canções de guerra. Ao contrário de Work e Root, não obstante, o que produziu foi muito fraco - entre as peças mais fracas de toda a sua obra. Nenhuma de suas canções de guerra gozou de particular popularidade, e nenhuma sobreviveu. Eis algumas das canções da Guerra Civil, de autoria de Foster: "We Are Coming, Father Abraham", com letra de James Sloan Gibbons, a qual já havia sido musicada por Luther Orlando Emerson, entre outros; "We, ve a Million in the Field" e "Was My Brother in the Battle?", todas de 1862; e, em 1863, "When This Dreadful War Is Ended", "My Boy is Coming from the War", "Nothing but a Plain Old Soldier" e "For the Dear Old Flag I Die".

Oriundas do Norte, mais três outras canções da Guerra Civil são ainda hoje relembradas. "The Battle Hymm of the Republic" era um poema da famosa sufragista e poetisa Julia Ward Howe, composto para uma melodia de William Steffe, muito difundida nos camp meetings² de congregações negras, e conhecidas como "Say Brothers, Will You Meet Us?". No começo da Guerra Civil, essa mesma melodia fora utilizada para a canção "John Brown's Body", que pretendia satirizar um ingênuo e infeliz soldado do 12° Regimento de Massachusetts. Quando os soldados do Norte marchavam para a luta, costumavam acertar o passo cantando essa vibrante canção. Julia Ward Howe ouviu-os cantá-la um dia, em dezembro de 1861, e nessa mesma noite, em seu quarto de hotel, escreveu para ela um eloquente poema, "The Battle Hymm of the Republic". Foi publicada pela primeira vez em The Atlantic Monthly, em fevereiro de 1862, e pouco depois republicada em vários jornais, revistas e em livros de hinos do exército. A canção foi publicada por três diferentes casas editoras. O capelão do 122° Regimento de Voluntários de Ohio ensinou-a a seus soldados. Diz-se que quando Lincoln a ouviu pela primeira vez ficou tão comovido que pediu que a cantassem novamente.

"Tenting on the Old Camp Ground", na qual a solidão terrível do soldado encontra pungente expressão, foi escrita por Walter Kittredge, em 1862. Na véspera de seu recrutamento, Kittredge compôs a letra e a música dessa triste canção, para traduzir seu próprio sofrimento por ter de abandonar o lar e a esposa. Tendo sido vítima, no entanto, de um ataque de febre reumática, o exército o dispensou. Tentaria, depois, vender a canção, mas sem exito, de vez que os editores, onde quer que os procurasse, consideravam-na por demais depressiva para que o público a apreciasse. Agradou, todavia, à Família Hutchinson, que repetidas vezes a apresentou em seus concertos, tendo sido por sua influência que afinal foi publicada por Oliver Ditson, em 1864, com resultados compensadores. Continuou sendo cantada muito tempo depois de terminada a guerra, como peça preferida em acampamentos de soldados, comícios e outros gêneros de reuniões marciais.

"When Johnny Comes Marching Home", de Patrick S. Gilmore, em verdade tornou-se famosa mais tarde, outra guerra, no que pese ter sido composta para a Guerra Civil, quando obteve o sucesso inicial, convém frisar. Patrick S. Gilmore (1829-1892) tornou-se famoso depois da Guerra Civil, como regente da célebre "Gilmore Band", que se exibiu em concertos através de toda a América e ajudou a popularizar a moda dos concertos de orquestras no país. Foi também organizador de grandiosos festivais e festas comemorativas, em que se utilizava de conjuntos musicais imensos. Gilmore fundou sua primeira orquestra exatamente um ano antes da Guerra Civil. Em 1860 incorporou esse conjunto ao 24° Regimento de Voluntários de Massachusetts, conquistando, em consequência, o título de Regente-Geral, com o posto de Coronel. Em 1863 escreveu a letra e a música de "When Johnny Comes Marching Home" e publicou-a sob o pseudônimo de Louis Lambert. Sua orquestra lançou a canção e ajudou a torná-la conhecida entre os soldados da União. Mesmo no Sul, a melodia era tão apreciada que foi usada como música de "For Bales!", canção de versos humorísticos. Mas a grande popularidade de "When Johnny Comes Marching Home" pertence a um período posterior. Revivida com êxito durante a Guerra Hispano-Americana, tornou-se uma de suas principais canções; é hoje em dia habitualmente associada apenas a esta última guerra. Desde o início deste século, "When Johnny Comes Marching Home" tem aparecido em variadas versões - como foxtrote - durante a I Guerra Mundial e como composição sinfônica em ambiciosas adaptações de Roy Harris e Morton Gould.

NOTAS:

¹ O Caminho de Ferro Subterrâneo "era simplesmente um caminho ao logo do qual os negros fugitivos eram auxiliados por filantropos brancos e por aqueles da sua própria raça que viviam nos estados não escravagistas". (Rex Harris - Jazz - p. 53 - Editora Ulisseia - Lisboa - Rio de Janeiro). Eram as "famosas rotas de evasão dos escravos através da fronteira para os estados do Norte". (Id.) (N. do T.)

² Camp meetings - Reuniões religiosas ao ar livre. (N. do T.)


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

EWEN, David. História da Música Popular Americana - As canções populares, o teatro musicado e o jazz na América, dos tempos coloniais aos dias de hoje. Tradução de Miécio Teti. Rio de Janeiro: Editora Letras e Artes, 1963, p. 42-49.



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