quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

A condição do negro após a Abolição: cenário político-social e mecanismos de exclusão

Família de negros no Morro da Babilônia, no Rio de Janeiro. Foto do início do século XX.

A recente produção acadêmica na área das Ciências Humanas sobre o Brasil no período do Segundo Reinado abriu novos horizontes de possibilidades de pesquisa e de questionamentos. A partir de indagações, críticas e a inserção de novos elementos na investigação, passou-se a desmistificar antigas concepções até então enraizadas na historiografia. A escravidão, o processo de abolição e a condição do negro após sua concretização foram alguns dos temas que passaram a ser analisados a partir de novas perspectivas. A figura de "redentores" de certos agentes do Império e a "bondade" dos proprietários de escravos são exemplos do que foi repensado.

A historiador Wlamyra Albuquerque, em O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil, afirma que, mesmo com a dissolução das relações jurídicas entre senhores e escravos, do fim de uma legislação que sustentava a relação de domínio sobre o outro por sua condição, surgiram, paralelamente às "mudanças", novos mecanismos que impediam o acesso dos homens de cor ao cenário político-social que se firmava com a nova conjuntura política.

Dentro de uma linha da História social e cultural, também compartilhada do campo das representações, a socióloga Angela Alonso e a historiadora Lilia Moritz Schwarcz analisam o período, o processo de abolição e os projetos que foram pensados para a posteridade. 

Angela Alonso e Lilia Moritz compartilham de um recorte cronológico que, à exceção de alguns momentos, vai da década de 1870 até 1880, podendo, em alguns casos, ser perpassado. Verifica-se nesse período o aumento das discussões e dos embates entre setores da Monarquia e dos Republicanos abolicionistas, entre conservadores e progressistas.

Aliás, falando em embates, o título do livro de Angela Alonso, Flores, Votos e Balas: O movimento abolicionista brasileiro (1868-88), é bastante sugestivo, sendo uma exemplificação das principais etapas desse período. As 'flores' se referem aos debates, no seio de alguns setores políticos da Monarquia, sobre as possibilidades de se abolir a escravidão, que já era vista como uma forma de trabalho que não se adequava mais às nações que tinham o anseio de se modernizar. No caso dos 'votos', o que está em jogo é o enfraquecimento dos saquaremas, os políticos conservadores, e a ascensão dos liberais e progressistas, o que acabou por abrir o caminho para o fim da escravidão. As 'balas' são a fase mais turbulenta, marcada por ações armadas, pela repressão, pelo uso de força e pela violência de contrários e favoráveis.

Angela, de uma perspectiva sociológica, identifica como fator íntimo das discussões sobre a abolição a introdução de ideias positivistas no Império e a urbanização e desenvolvimento do capitalismo industrial. Monarquia, Catolicismo e Escravidão formavam um tripé rudimentar e um obstáculo para a introdução de um novo modo de produção econômica.

Lilia Moritz Schwarcz, em Dos males da dádiva: sobre as ambiguidades no processo da abolição brasileira, analisa, em um primeiro momento, as formas como a abolição foi apropriada pela Monarquia, que criou para si a imagem de sistema popular redentor das pessoas de cor, acreditando que tal ação traria a recuperação de um modelo político já bastante desgastado. Com o fim da escravidão e a não indenização dos proprietários, a Monarquia ruiu, sendo extinguido o Império de Dom Pedro II. As apropriações e projeções não partiram apenas do Estado Imperial. Schwarcz identifica proprietários, homens brancos da elite, se apresentando ou sendo apresentados em jornais da época como "bons samaritanos" ao alforriar seus escravos. As libertações, destaca, tornavam-se motivo de festas onde imperava a passividade do escravo e a suposta bondade de seu dono.

Diferente de outras partes da América, o Império e as elites passaram a imagem de que a emancipação dos escravos foi pacífica, sem maiores tumultos que perturbassem a ordem. As supostas relações de apadrinhamento, de proximidade e cordialidade eram utilizadas para manter os libertos nas propriedades de seus antigos senhores. Paga-se, agora, um salário, um baixo salário, prendendo assim o negro à terra, o que, de certa forma, compensava o antigo dono de suas perdas com o fim do sistema escravista.

Nos anos finais do Império e com o advento da República, ganharam terreno ideias de determinismo racial e de paternalismo. As pessoas de cor, mesmo libertas, continuavam em um plano inferiorizado. Como inserir tão grande contingente na sociedade? O ex-escravo precisava ser civilizado, se libertando de seus costumes, em um processo lento mas necessário para os dirigentes e agentes econômicos do capital. O Estado e os novos proprietários assumem a posição de paternalistas nesse processo. Para endossar os novos mecanismos de diferenciação social, surgem distinções linguísticas: Preto e Negro. O preto é o tipo ideal, submisso, indiferente, fácil de controlar, dócil e disposto ao trabalho. O negro é rebelde, violento, o fugitivo que forma quilombos na mata. Uma matéria publicada no Correio Paulistano, em 13/05/1895, mostra a visão que se tinha dos ex-escravos:

"O que eles dizem e o que eles fazem

(...) e a boa raça africana, tão dócil, tão afetiva, tão amiga, fator de riqueza nacional, a velha raça de Caim, em cujas tetas submissas bebemos, grande parte de nossa vida nacional está aí a nosso lado, humilde e sempre boa, honesta, moderada, serviçal, proliferando em paz, entregue a si mesma, sem incomodar os brancos. Que simpatia por essa velha pária da existência! Que beleza no seu fetichismo, na sua aflição primitiva, no amor que tem aos filhos dos brancos! Incorporada ao povo brasileiro, ela que não nos incomoda vive conosco à parte, sentindo conosco as coisas que sentimos...." (CUNHA E GOMES, 2007, p. 31)

Juridicamente o negro não era mais escravo, mas, por outros meios, continuava em uma posição que lembrava os tempos não tão antigos do Império. Ele não era mais um incômodo, a lembrar do medo das elites de uma rebelião nos moldes da que ocorreu no Haiti, mas vivia à parte da sociedade. Portanto, mesmo após o fim da escravidão, surgiram novos mecanismos que dificultaram a inserção dos ex-escravos, dos negros, na sociedade. Pode-se pensar, como afirma Angela Alonso, que a Abolição foi um movimento plenamente arquitetado pelas elites que buscavam espaço, agora, em um novo sistema político, econômico e social.


BIBLIOGRAFIA:

ALONSO, Angela. Flores, Votos e Balas: O movimento abolicionista brasileiro (1868-88). São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Dos males da dádiva: sobre as ambiguidades no processo da abolição brasileira. In: GOMES, Flávio dos S; CUNHA, Olívia Maria da. (organizadores). Quase cidadão. Histórias e antropologias da pós-emancipação. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.



CRÉDITO DA IMAGEM:

http://guiajosecarlosmelo.blogspot.com.br





segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

A Revolta de 14 de Janeiro de 1892

Igreja de Nossa Senhora de Fátima em 1969, ainda em obras. Foto de Jankiel cedida pelo pesquisador Ed Lincon.

O bairro Praça 14 de Janeiro, localizado na zona Sul de Manaus, fronteiriço aos bairros Centro, Cachoeirinha e Adrianópolis, tem suas origens ligadas aos conflitos políticos característicos da Primeira República no final do século XIX, e também às ondas migratórias vindas do Nordeste nesse mesmo período. Dividirei o texto em duas partes, a primeira sobre a revolta de 14 de Janeiro de 1892, data referência para o bairro; e a segunda sobre sua evolução ao longo do tempo.

O alvorecer da República em Manaus foi marcado por disputas políticas entre os partidos Democrático e Nacional. Após a passagem de Augusto Ximeno de Villeroy pelo recém instalado Governo do Estado do Amazonas (04/01/1890 - 02/11/1890), assumiu o governo Eduardo Gonçalves Ribeiro, até então Oficial de Gabinete e Diretor de Obras Públicas. Em pouco tempo, Eduardo Ribeiro, entre outras coisas, aumentou as rendas do município, decretou uma constituição provisória e diminuiu pela metade a dívida pública.

O governo central destituiu Eduardo Ribeiro, do Partido Democrático, de seu cargo, nomeando para o governo o coronel Gregório Thaumaturgo de Azevedo, antigo governador do Piauí entre 26/12/1889 e 04/06/1890 (1), que naquele momento encontrava-se em Recife. A notícia da destituição de Eduardo Ribeiro não agradou a população:

"O povo, convocado em boletim, reuniu-se à tarde, em frente ao palácio, não consentindo que Eduardo Ribeiro deixasse a governança. Aclamou-o entusiasticamente. Os oradores sucederam-se em vários pontos da cidade, protestando contra o ato dos altos poderes da República, lavrando-se uma ata (1884-1891), que foi assinada por centenas de pessoas de todas as classes sociais" (2).

Thaumaturgo de Azevedo continuou em Recife. No entanto, o capitão de fragata José Inácio Borges Machado, a serviço do governo central, intimou Eduardo Ribeiro a deixar o governo nas mãos do Coronel Guilherme José Moreira, 1° vice-governador, e este assim o fez em 05/05/1891. Guilherme Moreira foi substituído pelo interventor federal Coronel Antônio Gomes Pimentel em 25/05/1891, imbuído da missão de executar as ordens do governo central para o Estado (3). 

A maioria do Congresso Constituinte do Amazonas era formada por membros do Partido Democrático. Influenciado pelo interventor Antônio Gomes Pimentel, elegeu como governador Gregório Thaumaturgo de Azevedo e, como vice, Guilherme José Moreira. Como Gregório ainda não estava em Manaus, Guilherme José Moreira ficou à frente do governo, tomando algumas medidas que favoreciam os membros de seu partido. Vindo do Rio de Janeiro, Gregório Thaumaturgo foi empossado governador em 01/09/1891. Vendo as medidas tomadas por Guilherme Moreira, desentendeu-se com os Democráticos.

O novo governador tinha um plano ambicioso para estruturar a capital e o interior, o que demandava grandes somas. Solicitou, em 15/09/1891, o empréstimo de 14.000.000$000. Apresentando suas medidas, mal recebidas pelos Democráticos (o empréstimo foi negado), e desfazendo algumas tomadas anteriormente por seu vice, rompeu com o partido (4). Tinha início, assim, a ferrenha oposição dos Democráticos ao governador Thaumaturgo de Azevedo, apoiado pelo Partido Nacional. De acordo com Arthur Cezar Ferreira Reis, as acusações contra o governador eram as seguintes:

"[...] de ter lesado o Estado em 24:000$000 que deixara de pagar ao transferir os seus direitos à Companhia Vila Brandão, como contratante de uma empresa predial, e de ter realizado essa transferência já no governo, o que taxavam de ilegal e pouco liso" (5).

A situação de Gregório Thaumaturgo de Azevedo piorou quando o Presidente Marechal Deodoro da Fonseca renunciou ao cargo em 23/11/1891, entregando o país ao vice Floriano Peixoto. O democráticos contavam com o apoio de Floriano Peixoto, condição que perfeitamente delineou os rumos de uma revolta para depor o governador do Amazonas. No dia 14 de janeiro de 1892, data referência para o bairro Praça 14 de Janeiro, teve lugar a Revolta de 14 de Janeiro, como passou a ser referenciada nos jornais:

"[...] a 14 de janeiro, à tarde, teve lugar na Praça General Osório, fronteira ao quartel do exército, um meeting, promovido pelos democráticos. Os oradores inflamaram-se, aclamando o capitão de fragata José Ignácio Borges Machado, comandante da flotilha, capitão Porfírio Francisco da Rosa, comandante interino do 36 de infantaria, e desembargador Luiz Duarte para formarem a junta que deveria governar o Estado até a chegada de Eduardo Ribeiro, proclamado governador na reunião. A seguir, uma comissão, composta dos srs. Lima Bacuri, dr. Almino Alvares Afonso e major Leonardo Antônio Malcher, dirigiu-se ao palácio, no propósito de intimar o dr. Thaumaturgo a deixar o poder. Recebida, antes de terminar a missão de que estava encarregada foi expulsa, maltratada, espancada, jogada pelas escadarias de palácio abaixo. Houve tiros e mortos. O coronel Lima Bacuri e o dr. Almino Afonso saíram feridos a bala, enquanto o major Malcher sofria escoriações assás graves pelo corpo. O meeting dissolveu-se, pois os que dele participavam não dispunham de armas para reagir e o pânico era grande" (6).

Houve uma única morte, a do soldado do Batalhão Militar de Polícia João Fernandes Pimenta, que deixou mulher e seis filhos menores (7). Gregório Thaumaturgo acusou o coronel Lima Bacuri de ter sido o responsável pelo disparo que vitimou o soldado. No entanto, como este também fora ferido durante a confusão, e os depoimentos serem bastante divergentes, nada foi comprovado (8). O Intendente Municipal Sérgio Pessoa, de forma a homenagear o falecido, sugeriu que a então Praça da Conciliação passasse a ser denominada Praça Fernandes Pimenta, e que lhe fosse concedido um jazigo perpétuo no Cemitério São João Batista (9). Essa nomenclatura parece não ter vingado por muito tempo, pois no final desse mesmo ano o local já aparece referenciado como Praça 14 de Janeiro (10).

Voltando ao motim, Gregório Thaumaturgo abandonou o palácio, mas não entregou seu cargo. Decretou, por 30 dias, estado de sítio na capital. Em outro decreto, de 22/01/1892, desterrou os principais líderes Democráticos para São Paulo de Olivença e Tabatinga:

"Art 1° - São desterrados para S. Paulo de Olivença, o Barão do Juruá, o Dr. João Franklin de Alencar Araripe e o Dr. Arminio Adolpho Pontes e Souza; para Tabatinga, o Tenente-Coronel Emílio José Moreira, Dr. Luiz Duarte da Silva, Dr. José Tavares da Cunha Mello e Dr. Antonio Henrique de Almeida Junior" (11).

Arthur Reis incrementa essas informações, tendo sido também desterrados "Raymundo Antonio Fernandes, para Airão, Francisco Joaquim Ferreira de Carvalho, para Moura; e Desembargador José Antonio Floresta Bastos e capitão Leonardo Antonio Malcher para Carvoeiro" (12). O governo federal ficou ciente da situação, ordenando que Thaumaturgo de Azevedo entregasse o governo ao capitão de fragata José Inácio Borges Machado. O governador negou e, por ordem do Presidente Floriano Peixoto, tenentes do exército e da marinha do RJ desembarcaram em Manaus, reunindo-se com os Democráticos. Ambos preferiram agir não pela força das armas, mas a partir de uma intimação. Cercado por todos os lados, Gregório Thaumaturgo entregou o governo a Borges Machado, que governou de 27/02/1892 até 11/03/1892, entregando o cargo a Eduardo Gonçalves Ribeiro, que dissolveu o Congresso, sendo eleito governador, assumindo em 23 de julho de 1892.


NOTAS:


(1) LOPES, Raimundo Helio. Gregório Thaumaturgo de Azevedo. Verbete, CPDOC, s.d.
(2) REIS, Arthur Cezar Ferreira. História do Amazonas. 2° Ed. Belo Horizonte: Itatiaia; Manaus: Superintendência Cultural do Amazonas, 1989,  p. 249.
(3) PONTES FILHO, Raimundo Pereira. Estudos de História do Amazonas. Manaus: Editora Valer, 2000, p. 148.
(4) REIS, Arthur, op cit, p. 251-252. Arthur Cezar Ferreira Reis cita que, uma das medidas tomadas por Thaumaturgo de Azevedo que desagradou os Democráticos foi o pedido de rescisão do contrato de esgotos feito por Guilherme Moreira, por considerá-lo oneroso e prejudicial à higiene pública. A Assembleia negou o pedido.
(5) REIS, Arthur, op cit, p. 252.
(6) Ibidem, p. 253.
(7) João Fernandes Pimenta. Diário de Manáos: Propriedade de uma Associação. 17/01/1892.
(8) Amazonas: Órgão do Partido Republicano Democrata, 10/11/1892. Uma das testemunhas afirmava que o coronel Lima Bacuri havia entrado no palácio portando um revólver, quando foi comprovado que o tiro que vitimou João Fernandes Pimenta era de um fuzil da polícia.
(9) Diário de Manáos: Propriedade de uma Associação, 07/02/1892.
(10) Amazonas: Órgão do Partido Republicano Democrata, 28/12/1892.
(11) Diário de Manáos: Propriedade de uma Associação, 22/01/1892.
(12) REIS, Arthur, op cit, p. 253.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Edifício Benchimol & Irmão, entre as ruas Marcílio Dias e José Paranaguá

Edifício Benchimol & Irmão. À esquerda, em 1969; à direita, em 2014.

Diariamente passamos por construções que possuem suas origens desconhecidas. São edifícios, casarões e palacetes em sua maioria abandonados, administrados de longe, com alguns raros exemplares preservados. O tempo é corrido e, dadas as circunstâncias, ficar parado observando esses locais em vias públicas tornou-se algo bastante arriscado, dado o aumento considerável da criminalidade. Após fazer a pesquisa sobre o casarão abandonado da família Grosso, na Av. Joaquim Nabuco, decidi que iria a campo para esmiuçar as origens (ou parte delas) de algumas dessas construções do Centro e de outras partes da cidade. O prédio do texto de hoje é o antigo Edifício Benchimol & Irmão.

Localizado entre as ruas Marcílio Dias e José Paranaguá, em frente a Praça da Polícia (Heliodoro Balbi), o Edifício Benchimol & Irmão foi uma das várias construções erguidas na cidade com uma arquitetura modernista, em consonância com as transformações econômicas surgidas com a instalação da Zona Franca. Era o momento de recuperação da cidade e de integração do estado ao Brasil como área de pleno desenvolvimento.

Sobre sua inauguração, em 23 de outubro de 1969, lê-se o seguinte em uma nota do Jornal A Crítica:

“Foi inaugurado ontem o moderno edifício da firma Benchimol & Irmão, localizado na esquina da rua Marcílio Dias com a Praça Roosewelt, sendo as suas linhas modernas todas revestidas de pastilhas. Na parte térrea funcionará mais uma loja Bemol para a venda de eletrodomésticos, e nos seus 5 andares confortáveis apartamentos e salas para escritório. É mais uma contribuição do grupo comercial comandado pelos irmãos Samuel e Saul Benchimol, para o embelezamento de nossa cidade”¹.

No lugar onde foi construído esse edifício existiu uma construção com várias portas que serviu de Biblioteca Pública. Em 1895 o então governador Eduardo Gonçalves Ribeiro reorganizou a Biblioteca Pública do Estado², transferindo seu material do Gymnásio Amazonense para esse prédio, onde a instituição passou a funcionar:

“Não possuindo o Estado um edifício apropriado para o serviço da Bibliotheca e não havendo mesmo nesta capital um próprio em condições de servir, lancei mão dos acanhados comodos de um armazem situado à Praça da Constituição e para elle mandei transportar os restos da antiga Bibliotheca Publica que se achavam em uma sala do Gymnazio Amazonense”³.

Esse antigo armazém, transformado entre 1895-96 em Biblioteca Pública, aparece em uma fotografia de 1902 da praça, naquela época denominada da Constituição, de autoria de Felipe Fidanza e publicada no Álbum do Amazonas.

Atrás do Batalhão da Polícia Militar do Amazonas, o antigo armazém onde décadas mais tarde foi construído o edifício. Foto de 1902.

O Edifício Benchimol & Irmão abrigou uma filial das lojas Bemol até a década de 2000. Mais tarde passou a funcionar no térreo a Celina Decoração.


NOTAS:

¹ Jornal A Crítica, 24/10/1969.
² Governo do Estado. Decreto N° 86 de 17 de outubro de 1895.
³ Mensagem lida perante o Congresso dos Srs. Representantes em 1° de março de 1896 pelo Exm. Sr. Dr. Eduardo Gonçalves Ribeiro, Governador do Estado.


AGRADECIMENTOS:


Ao pesquisador Ed Lincon, por ter cedido o recorte do jornal A Crítica.


CRÉDITO DAS IMAGENS:

Jornal A Crítica, 23/10/1969
Google Maps, 2014
Álbum do Amazonas - 1902

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

Uma ida aos cinemas do passado

Da esquerda para a direita: Dona Yayá; o pesquisador Ed Lincon; e um cartaz do filme 'As Três Espadas do Zorro'.

Reproduzo, a seguir, uma entrevista do amigo e pesquisador Ed Lincon para a Revista Amazônia Cabocla, realizada em dezembro do ano passado. Ed Lincon, que se tornou o maior conhecedor da história dos cinemas da cidade, conta um pouco de sua vivência nesses espaços e de sua trajetória de pesquisas. Confiram:

De pergunta em pergunta, de curiosidade em curiosidade, Ed Lincon Barros da Silva acabou por se tornar o maior conhecedor das histórias dos cinemas de Manaus, desde a primeira exibição de filmes, ocorrida em 1897, no Teatro Amazonas.

"Comecei a me interessar pelas histórias dos cinemas locais a partir dos relatos que ouvia dos mais velhos e que falavam das salas que eu não conhecera, inclusive algumas demolidas. Era o Odeon, o Avenida, o Polytheama, o Éden, o Palace, o Vitória, o Ideal. Só conheci, e frequentei, o Guarany, o Ipiranga e o Popular, este, havia mudado de nome para cine Pop", contou.

E o primeiro cinema frequentado por Ed, o Guarany, tornou-se sua paixão. "A primeira vez que fui a uma sala de cinema, em 1976, eu tinha sete anos e nem sabia ler, mas jamais esqueci o nome do filme, 'As Três Espadas do Zorro', legendado. Me encantei de imediato por aquilo que só via na TV, em preto e branco. Foi a primeira vez que assisti a um filme colorido", disse.

A SINA DOS SETE

"O Guarany parecia um castelo, em estilo mourisco. A estrutura interna dele era algo fascinante, além do que havia sido um teatro. Fiquei muito triste quando soube que seria demolido, o que aconteceu em 1984. Sua fachada era pintada num tom verde bem claro, quase branco. Somente ao redor da bilheteria era pintado de verde escuro", recordou. "No aniversário do cinema, colocavam a tela na praça Heliodoro Balbi e viravam o projetor nessa direção, passando filmes de graça e distribuindo brindes. E tinham as portas laterais, imensas, que deslizavam sobre trilhos e em noites de muito calor, ficavam abertas", explicou. "E descobri a sina do número sete que o perseguiu até o fim. Os três nomes que o prédio teve: Julieta, Alcazar e Guarany tinham sete letras. Foi inaugurado em 1907 e fechou em 1984, 77 anos depois. Ficava na esquina com a avenida 7 de Setembro, e tinha nos muros da fachada, sete portais de cada lado. O terreno foi adquirido em 1897", listou.

"O Odeon foi o único que teve duas versões. A primeira construída exclusivamente para cinema, pois nem palco tinha, com os outros. Depois, na década de 1950, ficou luxuoso e foi o primeiro a possuir ar condicionado na cidade, enquanto os demais continuaram com ventiladores. O Avenida tinha a dona Yayá, esposa do sr. Aurélio, sócio gerente da empresa Bernardino. Ela ficava na entrada do cinema contando trechos do filme em exibição para os mais exitantes em entrar. Chamava a atenção o rosto exageradamente maquiado pelo rouge", completou.

SEM ENCANTO

Ed Lincon passou a pesquisar mais profundamente as histórias dos cinemas a partir de 1994. "Pesquisei na Biblioteca Pública, no Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, na biblioteca da Associação Comercial e na internet. Meu pai, tios, primos e vizinhos que conheceram aquelas salas, me ajudaram bastante, bem como a professora Selda Vale da Costa e Joaquim Marinho, o empresário que mais cinemas teve em Manaus. Selda e Marinho, além de informações valiosas, também me deram rico material de seu acervo pessoal", afirmou.

Já os cinemas atuais, não encantam Ed Lincon. "Os cinemas dos shoppings perderam o encanto que as antigas salas possuíam porque não tem nomes e são todos parecidos. A arquitetura das salas antigas era outra coisa que chamava a atenção. Eu não vou mais ao cinema por falta de tempo, ingressos, pipoca e refrigerantes caros e violência nas ruas. Prefiro assistir aos filmes em casa, em DVD. É mais cômodo. Mas assistir na tela grande ainda me encanta", finalizou.


Uma ida aos cinemas do passado. Revista Amazônia Cabocla, dezembro de 2017, p. 20-21.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

São Raimundo: Aspectos interessantes da vida do populoso bairro de um habitante-matusalém

Igarapé de São Raimundo. Cartão postal do início do século XX.

Transcrevo, a seguir, uma matéria publicada em 1929 no Jornal do Comércio com o título São Raymundo: Aspectos interessantes da vida do populoso bairro de um habitante-mathusalem, crônica investigativa sobre diferentes aspectos do bairro de São Raimundo, na época um subúrbio distante da capital. Para que os leitores tenham uma sensação de maior proximidade com a narrativa, bastante interessante, e de dar maior vivacidade aos elementos do bairro descritos naquele final da década de 1920, transcrevi o material sem fazer alterações na grafia.


SÃO RAYMUNDO: ASPECTOS INTERESSANTES DA VIDA DO POPULOSO BAIRRO DE UM HABITANTE-MATHUSALEM

Os bairros de Manáos não tiveram ainda quem dissesse de sua vida já bem curiosa, escrevendo sobre seus typos, sobre os seus aspectos pittorescos, narrando do que vae em sua intimidade. E no entanto possuem característicos interessantes.

São Raymundo e Constantinópolis, por exemplo, são os bairros onde vive, em sua maior parte, a gente de nossos estabelecimentos industriaes.

Há figuras e factos, em cada um delles, que merecem a observação de um chronista habil. No sentido de dar alguma coisa dessas figuras e desses factos visitamos São Raymundo, separado do perímetro urbano da cidade pelo igarapé de mesmo nome.

Fomos acompanhados do sr. Olympio de Carvalho, pessoa influente de largo prestígio no bairro. Saltamos do bonde de Fabrica de Cerveja e nos dirigimos à rampa, ao lado da serraria Hore. Ahi, innumeras canôas de catraieiros aguardavam disputando preferências, os que se destinavam a São Raymundo. Eram muitas dellas, enfeitadas com bandeirinhas, outras com ramos de flores: a Ceará, a Queira Deus, a Vencedora, a Gegé, a Dona Cota, a Ave etc. Tomamos a Ave e atravessamos. Deviam ser nove horas da manhã quando saltamos na rampa de desembarque. Esta, ainda em projecto, toda esburacada e suja, sem o menor conforto para os que se movimentam alli, carecendo a vistas dos poderes competentes pois, sendo a parte mais baixa do terreno, é destruída pela enxurrada que corre de quasi todos os pontos ao bairro.

Continuamos para cima. A subdelegacia local, a cargo do sr. Arthur Pinheiro, ultimamente instalada em novo predio, acha-se bem conservada e limpa. Mais adiante está o grupo escolar Olavo Bilac de que é diretora dona Luiza do Nascimento. O predio foi adaptado ao fim actual, construído para o mercadinho, na administração municipal do dr. Dorval Porto.

a frequência é de duzentos e oitenta e seis alumnos de ambos os sexos. Funccionam diariamente aulas de curso elementar e as nocturnas, com cento e poucos alumnos. A criançada é alegre e parece animada nos estudos.

Do grupo, prosseguimos. Lá no alto as ruas são alinhadas e limpas. Cinco de Setembro, por exemplo, é larga e longa, margeada por casas quasi todas de taipa, de um só tamanho e com apparencia egual. Poucas as de alvenaria, entre elas a residência dos vicentinos, a do sr. Valentim Normando, o posto prophylatico, o grupo escolar. O resto das ruas, de terra batida, contribue em muito para o pittoresco quadro que se tem a vista. Nem por isso, porem, deixa de carecer reparos serios, um calçamento de pedra tosca, ao menos. Estavamos no ponto mais elevado do terreno, porque São Raymundo é uma colina, que de longe se avista.

Lembramo-nos de que Manáos ao nascer, quando se abriam as primeiras ruas e se levantavam as primeiras habitações, deveria ter sido assim. Absorviamos nessas recordações quando o nosso cicerone nos chamou a attenção - olhe agora para cá.

Deixamos o olhar ser conduzido ao ponto que nos indicava. Era um panorama dos mais bellos que se descortinava - Manáos, a cupula do Theatro Amazonas, a igreja dos Remédios, a cathedral, o reservatorio d' agua, a Beneficente Portugueza e outros grandes edificios destacados do vermelho-escuro dos telhados das casas menores. Do lado da bahia, o roadway, o mercado, as embarcações e as tralhas, sempre em movimento. Mudando a vista para os lados de Paricatuba, o espectaculo, tambem delicioso: a immensidão da bahia onde innumeras canôas a vela, de pescadores, sulcavam com rumos diversos.

Estivemos depois na Sociedade União Beneficente de São Raymundo, sob a orientação do sr. Olympio de Carvalho, bem installada, em predio proprio e confortavel. Conta numero superior a quatrocentos socios. Na sua séde vae funccionar agora uma aula nocturna, a ser iniciada opportunamente. Passamos depois para a do São Raymundo Sport Club, o nucleo desportivo do bairro, confiado á direcção dos srs. Pedro Pacheco, Joaquim Garvia e Graça Thiago. Possue campo de esportes e séde propria.

São Raymundo não se diverte só alli. Tem tambem o seu cinema, o Iris, bem arranjado, em casa espaçosa, com palco onde, á noite, o Pedro Brandão divertia o pessoal.

Passando por uma rua, onde os moradores nos observavam, o Carapanã, como é mais conhecido no bairro o sr. Olympio de Carvalho, acenou para dentro de uma casa:

- Bom dia, meu velho!
- Quem é? perguntamos.
- É o homem mais velho de São Raymundo.

Manifestamos desejo de ve-lo.

Entramos na casa. Fomos então apresentados ao sr. José Sant'Anna Araujo, diante de quem se descobrem respeitosamente todos os são raymundenses.

Conta o velho Sant'Anna centro e treze annos de idade. Não tem filhos, nem nunca foi pae. Vive só no mundo.

Arqueado sob o peso de tão grande existencia, o velho Sant'Anna ainda tem forças para trabalhar: varre a casa e o quintal, cuida das gallinhas e de vez em quando da uma volta pela beira do igarapé.

Está em São Raymundo desde mil oitocentos e setenta e cinco. Viu aquillo tudo ainda matta, onde iam caçar. Foi um dos seus primeiros habitantes e, segundo nos disse, não quer mais sahir de lá.

Pessoa communicativa e sympathica, o velho Sant'Anna é um palrador de primeira ordem. Sabe a chronica de tudo e de todos. Ao despedirmo-nos, elle accenou da janelinha da casa.

- Adeus, mocinho! Eu fico por aqui esperando por ella. Atrapalhamo-nos, mas o Carapanã nos explicou que elle se referia á morte.

Em vasto descampado, na zona alta, fica a praça de São Raymundo. Calculam-lhe a area em cento e trinta metros de extensão por noventa de largura. Ahi se ergue a capella do santo padroeiro, bem limpinha e conservada. De aspecto bisonho, lembrando os templos que os missionarios levantavam pelo nosso sertão, ás investidas em nome da fé catholica e da civilisação, pacificando o gentio.

A direita, o predio dos vicentinos, séde da Sociedade São Vicente de Paula. Entregue aos cuidados do padre Monteiro funccionam alli aulas de cathecismo. Do lado esquerdo da igreja, na esquina da praça com a rua Cinco de Setembro, o cemiterio.

Quanto á população toda ella é pacata, ordeira mesmo. Nos dias uteis todos trabalham. Os homens largam-se para as officinas e para as fabricas, ou para outro qualquer mister cá na cidade.

O commercio ainda não se desenvolveu como deve e pode. São poucos os estabelecimentos, na maioria mercearias. Ha tambem alguns botequins. Interessante é uma casa de pasto flutuante, amarrada á margem do igarapé. Alli, ás onze horas, grande numero de pessoas vae almoçar, custando cada refeição oitocentos e mil réis.

Medico não mora nenhum lá, mas existe a pharmacia São Raymundo de propriedade dos srs. Castro e Vieira. O posto de prophylaxia funcciona normalmente todos os dias. Três vezes por semana vae alli o dr. Angelo D' Urso, que attende pacientemente quantos o procuram, pelo que é muito estimado. Seu nome é lembrado constantemente.

A luz electrica, fornecida pela Manáos Tramways, está distribuida em focos pequenos, espalhados em varios pontos.

O grande problema a ser resolvido continua sendo o da ligação a Manáos por uma ponte. Não notamos aspiração maior entre os habitantes. A esse respeito o deputado Dorval Porto, quando superintendente, traçou um plano que dava a ponte partindo do fim da rua Commendador Alexandre Amorim, ao lado da serraria Rodolpho de Vries, passando sobre o igarapé, indo terminar naquelle bairro, á esquerda da residencia do sr. Henrique Pinheiro. Na impossibilidade da construção dessa ponte, disseram-nos moradores dalli, ao menos a rampa nos satisfaria.

Voltamos afinal para a rampa afim de atravessarmos para a cidade. Ahi chegamos, seriam onze horas. Uma surpreza nos estava reservada: a essa hora todas as usinas, serrarias, fabricas daquellas immediações sirenavam a um só tempo.

Do estabelecimento do sr. Pedro Pacheco, á margem do igarapé, onde fomos acolhidos gentilmente, presenciamos um curiosissimo espectaculo. Todas as catraias, que fazem o serviço de transporte de São Raymundo para a cidade e vice-versa, andavam em movimento.

Era hora do operariado voltar para o almoço e as pequenas canôas, em numero superior a quarenta, iam e vinham apinhadas de gente.

Perguntamos ao Ceará (era nosso catraieiro):

- Você gosta d' aqui?
- Ah! isto aqui é um céo aberto e eu não dou São Raymundo pelos Educandos nem a pau, respondeu-nos. É que existe uma grande rivalidade entre os moradores desses dois bairros.

Voltamos afinal de São Raymundo, convencidos, pelo que observamos, dado o clima e a salubridade do logar, que é aquelle, com os seus mil e quinhentos habitantes, um dos bairros de maior futuro de Manáos.


FONTE:

Jornal do Comércio, 15/06/1929


CRÉDITO DA IMAGEM:

Manaus de Antigamente

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

A visita de Dom Pedro de Orléans e Bragança a Manaus

Dom Pedro de Orleans e Bragança (1875-1940), Príncipe do Grão-Pará (1875-1891), Príncipe Imperial do Brasil (1891-1908) e Príncipe de Orleans e Bragança.

Em 1927, Dom Pedro de Orleans e Bragança (1875-1940), filho de Isabel Cristina Leopoldina de Bragança, a Princesa Isabel, e do Príncipe Imperial Consorte Gastão de Orleans, o Conde D' Eu, e neto de Dom Pedro II, visitou a cidade de Manaus, último destino de sua rota de excursões pelos estados da região Norte.

D. Pedro, acompanhado de sua esposa Princesa Elisabeth Dobrzensky de Dobrzenicz, e da filha Princesa Isabel de Orleans e Bragança, chegou em Manaus na tarde de 23 de maio de 1927 a bordo do vapor 'Distrito Federal', sendo anunciado com fogos de artifício, recebido por autoridades políticas e militares e por grande número de pessoas que tomaram o Porto. Ao desembarcar, os membros da Família Imperial foram levados pela população para a Praça Oswaldo Cruz, onde foram por ela aclamados. A pedido da Associação Comercial do Amazonas, o comércio em geral fechou as portas em respeito aos visitantes, bem como a Associação dos Empregados suspendeu uma das sessões que realizaria naquele dia.

Em meio à multidão, D. Pedro entrou em um carro presidencial, acompanhado do Capitão Oliveira Goes, Hugo Ribeiro Carneiro, governador do Acre, que também estava no vapor Distrito Federal, e do Major Floriano Machado, posto à sua disposição pelo governador do Estado do Amazonas. Elisabeth e sua filha foram em outro carro, na companhia da família do Dr. Mello Rezende. Outros automóveis, com pessoas da sociedade manauara, acompanharam a comitiva de D. Pedro, que recebeu continências de uma força policial que estava no local.

A comitiva seguiu pela Avenida Eduardo Ribeiro, dobrando a Avenida Sete de Setembro, indo em direção à Avenida Joaquim Nabuco e desta para a Praça dos Remédios, parando em frente ao Palacete do Dr. Mello Rezende, onde ficaram hospedados os príncipes. De noite, às 21 horas, os Mello Rezende realizaram uma grande recepção, que contou com a presença de outras famílias da elite. Por muitas horas, até meia-noite, várias pessoas se aglomeraram na porta da casa para ver D. Pedro.

No dia seguinte, o Centro Acadêmico do Curso de Ciências Jurídicas e Sociais da Universidade de Manáos visitou o príncipe, que afirmou ter gostado bastante do Amazonas, região que o encantou não só pelas dimensões, mas por abrigar, entre as selvas, uma cidade como Manaus. Por todas as regiões do mundo que passou, esta foi a que mais lhe deixou impressionado. Impressão semelhante teve seu secretário, o Tenente Mario Baldi, oficial do Exército Austríaco, que não esperava encontrar uma cidade tão linda como Manaus. Afirmava, ainda, ser o Amazonas o dínamo do Brasil.

Nos dias que se seguiram, D. Pedro visitou as seguintes empresas e instituições: Fábrica de Cerveja Amazonense; Manáos Harbour Limited; Clube Inglês; Correios, Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA); Clube Alemão; e Academia Amazonense de Letras, instituição da qual teve boa impressão, principalmente de seus acadêmicos. Na noite de 28 de maio, a empresa Fontenelle, dona do Polytheama, ofereceu aos príncipes uma noite de gala, exibindo o filme Uma noite gloriosa (1924), drama norte-americano editado pela Paramount e protagonizado por Elaine Hammerstein. Como atrações musicais figuraram a Amazônia Jazz, com vasto repertório, e a Banda da Polícia Militar do Amazonas.

Dom Pedro de Orléans e Bragança e sua comitiva partiram no dia 30 de maio de 1927, finalizando aquela que foi uma das visitas mais memoráveis que Manaus recebeu, apesar de ser pouco conhecida. Interessante notar que, décadas antes, nos anos finais do Império, seu pai, Conde D' Eu, em visita a Manaus, fora recebido com desconfiança e manifestos dos republicanos. Passadas quase três décadas, quando a ideia de um 3° Reinado já não tinha tanta força quanto antes, seu filho, D. Pedro, realizou sua visita tranquilamente.


FONTES:

Jornal do Comércio, 24/05/1927
Jornal do Comércio, 27/05/1927
O Acadêmico - Órgão dos Estudantes da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais de Manaus, 19/06/1927


CRÉDITO DA IMAGEM:

Museu Mariano Procópio/commons.wikimedia.org

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

A Igreja Católica e a regulamentação das atividades sexuais na Idade Média

As atividades sexuais fazem parte do campo da vida privada. Pelo menos, é assim que se pensa. No período medieval, onde não existia uma delimitação clara entre o público e o privado, a principal instituição da época, a Igreja, conseguia regular as atividades sexuais de seus seguidores, estabelecendo valores como a castidade, o matrimônio e o sexo para procriação. No presente artigo, a partir de uma discussão historiográfica entre autores como Jacques Le Goff e Jeffrey Richards, buscou-se apresentar as formas como a Igreja Católica regulamentava e orientava as atividades sexuais de seus fiéis.

RESUMO
Thaieny Gama*
Este artigo tem como objetivo apresentar as regulamentações e orientações da Igreja Católica quanto à sexualidade na Idade Média. Além disso, aponta as penitências para os pecados sexuais desse período. No primeiro momento se destacam a relação dos historiadores com a temática da sexualidade. Em seguida, os valores de virgindade, castidade e matrimônio são apontados como elementos argumentativos para as regulamentações das práticas sexuais dos fiéis. Por fim, são abordadas as punições para os crimes sexuais. Na conclusão ressalta-se a relação da sexualidade da Idade Média com a contemporaneidade destacando as mentalidades ainda constituídas na sociedade.
Palavras-chave: Sexualidade – Igreja Católica – Idade Média

INTRODUÇÃO

A sexualidade na Idade Média nunca foi bem expressada como hoje conhecemos e falamos. A Igreja Católica fortemente presente na vida dos fiéis e na dissipação da moral no comportamento social, coibiu as discussões quanto às atividades sexuais e regulamentou orientações para as relações.
Atualmente falar de sexualidade é comum e não é reprimido, porém, se conhecermos as orientações da Igreja Católica na Idade Média, haverá grandes discordâncias e questionamentos quanto às normas estabelecidas em lei.
Diante disso, não podemos descartar quem escreveu essas regulamentações: o clero era os poucos letrados daquele período. E seria muito conivente repudiar os desejos sexuais com essas normas e indicá-las aos fiéis. Le Goff e Truong (2006) reforçam essa afirmativa destacando que “os documentos em que se baseiam os historiadores refletem somente o pensamento dos homens que detêm o poder de escrever, de descrever e de depreciar, ou seja, os monges e os eclesiásticos que, devido a seus votos de castidade, eram largamente versados no ascetismo.” (LE GOFF; TRUONG, 2006, p. 41)
Com isso, os ensinamentos cristãos em relação à sexualidade estavam voltados para a manutenção da ordem divina através dos valores da virgindade, da castidade e do matrimônio, onde as atividades sexuais seriam apenas para os objetivos de reprodução e não por meramente saciar o desejo carnal.
“O sexo não deveria ser usado por mero prazer. Segundo esta definição, todo sexo fora do casamento, tanto heterossexual quanto homossexual, era pecado, e, dentro do casamento, só deveria ser usado para fins de procriação.” (RICHARDS, 1993, p. 34)
Contudo, o controle da Igreja Católica aos fiéis para manutenção da ordem divina, seria garantido com as confissões e consequentemente as atribuições às penitências para os crimes sexuais. Dessa forma, o individuo se livraria da culpa do pecado e a Igreja Católica seguraria o fluxo natural da vida por meio de suas orientações.
Por isso, esse artigo tem como objetivo destacar as regulamentações e orientações da Igreja Católica quanto à sexualidade na Idade Média e apresentar as penitências que cada crime se submeteria.

REGULAMENTAÇÃO DA SEXUALIDADE NA IDADE MÉDIA

'Le-livre-de-Lancelot-du-Lac', França, circa 1401-1425.

Devido à expansão do cristianismo no período medieval, a instituição Igreja Católica disseminou e refletiu os valores da doutrina cristã. Dentre as diversas orientações e regulamentações, os atos sexuais também foram prescritos com base no poder do impulso sexual de cada indivíduo.
De acordo com Richards (1993), os pensadores cristãos desse período no geral encaravam o sexo com uma ação desnecessária que confundiria a vocação de uma pessoa: “a busca da perfeição espiritual, que é, por definição, não sexual e transcende a carne”. (RICHARDS, 1993, p. 34)
Com isso, os ensinamentos cristãos eram voltados para a prática do celibato e a virgindade como ações de elevação da vida da pessoa. Na questão da sexualidade, os preceitos tinham como primícias apenas a reprodução, porém, essa indicação era voltada apenas para os casados. “A cópula só é compreendida e tolerada com a única finalidade de procriar”. (LE GOFF; TRUONG, 2006, p. 41). O sexo fora do casamento era considerado pecado.
Por isso, Leal (2010) apresenta três valores que a Igreja Católica ressaltava aos fiéis: a virgindade, a castidade e o matrimônio. A virgindade era uma condução a imitação à vida de Maria e de Jesus. Maria como exemplo de serviço a Deus e Jesus como verbo que virou carne, perfeição de Deus. A castidade estava voltada ao seguimento das vidas dos santos na perspectiva de afastar-se do pecado e de aproximar-se de Deus. E o matrimônio era visto como sacramento que permitia a relação sexual do homem com a mulher da forma correta e para a perpetuação da vida na terra, considerada graça divina.
Diante disso, a Igreja Católica apresenta regulamentações para as práticas sexuais. Le Goff e Truong (2006) afirmam que nas relações sexuais a mulher deve ser a passiva e o homem o ativo. Assim, o corpo da mulher casada pertenceria ao seu marido. Essa afirmação é reforçada mesmo quando os teólogos apresentam a ideia sobre a relação de igualdade entre o homem e a mulher a partir da criação de Adão e Eva.
Richards (1993) ressalta que a posição apropriada para a relação sexual era a “posição do missionário, frente a frente com o homem por cima e a mulher embaixo” (RICHARDS, 1993, p. 40)
Além disso, a Igreja Católica proibia as relações sexuais em dias de festas religiosas e jejuns. Conforme Klapisch-Zuber (1989) a Igreja estabeleceu um calendário para os momentos que o casal poderia ter relações sexuais. As proibições eram para o momento da quaresma, do advento, páscoa, pentecostes e outros dias santos. Durante a gravidez da mulher, do aleitamento, dos quarenta dias após o parto e das regras menstruais, o casal também era proibido às práticas sexuais.
Le Goff e Truong (2006) afirmam que qualquer tentativa contraceptiva era pecado. Richards (1993) menciona que embora não haja especificação, o sexo anal e oral era considerado contraceptivo. Outras práticas eram conhecidas na Idade Média e denunciadas pela Igreja Católica:
Várias formas de contracepção, fossem elas efetivas ou não, eram conhecidas e presumivelmente praticadas: poções destiladas a partir de diversas plantas, exercícios de ginástica realizados após a relação, unguentos aplicados sobre os órgãos genitais masculinos, líquidos introduzidos no útero antes ou depois da relação, pessários. (RICHARDS, 1993, p. 42)
Klapisch-Zuber (1989) aponta que apesar do corpo da mulher ser de propriedade do marido, ela não deve ceder ao homem um pedido que seja pecado ou que vá contra a natureza. Dessa forma, a única maneira de infringir o dever de mulher é quando o homem impõe uma posição ou ação que vai contra a ordem de Deus.
Le Goff e Truong (2006) destacam como pecados outras práticas sexuais: “Felação, sodomia, masturbação, adultério, seguramente, mas também a fornicação com os monges, são, um a um, sucessivamente condenados.” (LE GOFF; TRUONG, 2006, p. 44)
Respectivamente, Richards (1993) aponta que o amor cortês, amor do homem solteiro e jovem pela mulher casada, era necessário ser evitado, pois, poderia provocar o adultério e consequentemente o nascimento de filhos bastardos.
Leal (2010) menciona que a prática sexual do homem com animais era uma ação natural na Idade Média, mas a Igreja Católica não aceitava essa relação, denominando esse ato como bestialidade irracional. Uma prática contra a ordem divina.
Para garantir o controle eclesiástico e a disciplina do laicato, além de propiciar “uma válvula de escape para o sofrimento individual derivado de uma consciência de culpa” (RICHADS, 1993, p. 38), a Igreja Católica estabeleceu a confissão e a penitência como ações centrais da Igreja. Por isso, para facilitar a penitência atribuída a cada pecado, o clero criou um documento que listavam os pecados e os métodos para lidar com eles. As questões sexuais eram a maior categoria que se atribuíam penitências. A mais comum era o jejum com pão e água, ou, abstinência sexual, havendo uma escala de punição. (RICHARDS, 1993, p. 39)
As penas mais pesadas eram reservadas para incesto, sodomia e bestialidade; quinze anos para infratores habituais. Mas existiam penalidade menores para outros delitos homossexuais, tais como masturbação mútua e sexo interfemural. Em outros penitenciais, o sexo anal incorria uma pena de sete anos; delitos homossexuais menores, dois ou três anos. Meninos eram punidos com penas muito menos pesadas do que os adultos. (RICHARDS, 1993, p. 40)
Nesse sentido, Leal (2010) ressalta que o sexo oral, incesto, adultério e sodomia eram práticas consideradas abomináveis, e, a punição poderia se definida em excomunhão e interdição perpétua do matrimônio e da relação sexual.
Para expressar o amadurecimento da Igreja Católica quanto aos pecados sexuais, Richards (1993) apresenta uma mudança referente ao estupro: “O estupro não era condenado pelos penitenciais, mas o raptus1 era.” (RICHARDS, 1993, p. 41). O raptus era um crime contra a propriedade privada, pois, era o roubo de uma mulher de sua família. Não está relacionado com o estupro que conhecemos atualmente. Posteriormente, o raptus tornou-se um crime sexual contra mulheres não casadas e recomendava-se pena de morte para tal delito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As influências da Igreja Católica na questão da sexualidade ainda é presente no dia a dia. Suas regulamentações sofreram alterações, mas ainda estabelecem um comportamento doutrinário a homens e mulheres. Porém, com a estabilização do estado laico, a Igreja já não persegue os indivíduos e não impõe suas doutrinas a sociedade.
Após as leituras e o desenvolvimento deste artigo, percebemos o quanto as mentalidades a essas orientações são presentes na atualidade. Destaco as relações de machismo frequentemente encontrado na sociedade no que tange a submissão e violência contra a mulher. Essa visão da mulher como o sexo frágil, com inteligência inferior e com tarefas voltadas para a família, visivelmente são reflexos dos comportamentos da Idade Média. Um grande desafio para os professores de história na perspectiva de salientar esse debate na sala de aula.
Por fim, reforço que essa temática ainda precisa ser mais trabalhada na ânsia de refletir sobre essa influência da Igreja Católica e visualizar os paradigmas que a sociedade está encaixada para estabelecer novos caminhos. Na expectativa de fomentar o compromisso social que cada um tem a contribuir para uma sociedade mais justa e fraterna.


1 Raptus significa sequestro.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

KLAPISCH-ZUBER, Christiane. A mulher e a família in: LE GOFF, Jacques. O homem Medieval. Lisboa: Editorial Presença, 1989.

LEAL, Raphael. Religião e sexo: do controle da Idade Média e sua herança na contemporaneidade. IV Colóquio de História: Abordagens Indisciplinares sobre a História da Sexualidade. 19 de novembro de 2010. Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).

LE GOFF, Jaques; TRUONG, Nicolas. Uma história do corpo na Idade Média. Tradução: Marcos Flamínio Peres. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p.41.

RICHARDS, Jeffrey. Sexo, Desvio e Danação: as minorias na Idade Média. Tradução: Marco Antonio da Rocha e Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993, p. 34.


*Thaieny Gama é acadêmica do 4° período do curso de História na UFAM, com interesse na área de pesquisa sobre História do Brasil (Golpe Civil Militar).

E-mail: thaieny.gama@hotmail.com








CRÉDITO DA IMAGEM:

http://www.cvltnation.com