quinta-feira, 28 de julho de 2016

Análise reflexiva sobre a pintura O Historiador (1902), de Irving Couse

O Historiador (1902), pintura do americano Eanger Irving Couse.

No presente texto farei a análise de uma pintura, relacionando seus elementos com o conhecimento adquirido durante as aulas de Historiografia Geral I e II, ministradas pelo professor Auxiliomar, da Universidade Federal do Amazonas, com foco na reflexão sobre as formas que diferentes sociedades criaram para registrar e transmitir suas histórias.

O Historiador (1902) é uma pintura do americano Eanger Irving Couse (1866-1936), famoso por produzir quadros retratando índios norte-americanos do Novo México e do Sudoeste do país. Essa pintura me chamou atenção não apenas pelo título e pelos elementos nela representados, mas em especial por me fazer relembrar das primeiras aulas da disciplina Historiografia Geral, ministrada pelo mestre Auxiliomar Silva Ugarte.

No trabalho de Irving temos retratados dois indígenas, um adulto e outro jovem. Não consegui identificar a qual etnia pertencem, mas podem ser Taos ou Pueblo, os mais registrados pelo autor. O primeiro está registrando, por meio de desenhos feitos no que parece ser um pedaço de couro, a história de uma batalha de sua tribo contra soldados americanos. São identificáveis as figuras de um cavalo, alguns soldados em posição de ataque e outros mortos, nativos na mesma situação, flechas e balas. O jovem parece observar com atenção esse processo e, em uma leitura simbólica, será a próxima geração encarregada de registrar novos acontecimentos e relembrar os que lhe foram transmitidos.

Historiografia (história+grafia), em uma definição bem básica, é a escrita da história. Desde as épocas mais remotas as sociedades desenvolveram formas de registrar suas ações no espaço e no tempo. Como exemplos, podemos citar o grego Heródoto, que escreve história [..] para que nem os feitos dos homens, com o tempo, se reduzam ao esquecimento, nem as obras grandes e admiráveis - tanto as realizadas pelos gregos quanto as realizadas pelos bárbaros - fiquem sem glória e as demais coisas por causa das quais foi o motivo de guerrearem uns com os outros" 1; e os primeiros autores cristãos, que viam na escrita uma forma de preservar os ensinamentos de Jesus Cristo e defender a sua fé (apologia).

Ambos, cronologicamente separados por alguns séculos, tinham suas próprias visões de mundo. Eduardo Natalino dos Santos, citando Alfredo López Austin, define visão de mundo como […] “um conjunto articulado de sistemas ideológicos, relacionados entre si em forma relativamente congruente, com a qual um indivíduo ou grupo social, em um momento histórico, pretende apreender o universo”2. Esses homens, gregos ou cristãos medievais, registravam o momento que viviam, baseados em seus anseios pessoais ou coletivos (o encadeamento cíclico dos fatos, para os gregos; e o eminente apocalipse, para os cristãos) . Eram produtos de sua própria época. A historiografia está em constante produção, sendo alterada diariamente, seja pelas transformações sociais, teóricas ou metodológicas.

apresentada uma breve noção do que é historiografia, podemos voltar ao quadro. Vemos que ela é a escrita da história. Nesse sentido, têm-se a ideia de que as únicas sociedades que possuem história são aquelas com domínio da escrita. Como fica, então, o nosso historiador da pintura, visto que ele é um indígena e está utilizando como registro pinturas rústicas, uma técnica comum nas sociedades primitivas? De fato, ela não está produzindo uma historiografia tradicional, um registro escrito, mas isso não quer dizer que ele não tenha noção de seu passado. O historiador francês Charles-Olivier Carbonell, no contexto das reformulações feitas pela Escola dos Annales, afirma que

[…] “nenhum grupo é amnésico. Para qualquer grupo recordar-se é existir; perder a memória é desaparecer. Não ultrapassou o homem a animalidade quando com o auxílio das palavras conseguiu acrescentar a uma memória instintiva, programada mesquinhamente para a ilusória eternidade da espécie, a memória cultural única capaz de exorcizar a morte e fundar a hereditariedade dos saberes?”3.

Auxílio das palavras, memória cultural e hereditariedade dos saberes. Emprestando essas palavras de Carbonell, podemos compreender como o indígena retratado na pintura produz história: Ele, à sua maneira, registra por meio de desenhos um fato que marcou seu povo (a guerra contra os americanos). Aliado a isso têm a oralidade, uma poderosa arma na transmissão e preservação de conhecimento para as próximas gerações. Os desenhos, os relatos, expressarão sua visão de mundo no momento da produção, trarão discursos visíveis e outros nem tanto. Não será considerada a versão 'oficial' de um fato, mas é a versão particular de uma sociedade construída sob suas próprias concepções e vivências.

Portanto, a pintura O Historiador e os elementos nela representados nos lembram de dois pontos importantes para o conhecimento histórico no campo da Nova História: primeiro, com a ausência de documentos escritos, o historiador pode e deve recorrer a outros tipos de fontes, como manifestações culturais, a oralidade, os mitos, as lendas, as ruínas antigas, as poesias e as palavras. O bom historiador vê possibilidades de trabalho em uma paisagem, no caminhar de uma pessoa, nos diálogos do cotidiano. Por último, a construção de uma narrativa histórica não é exclusiva das sociedades letradas, pois as culturas mais primitivas desenvolveram outras técnicas de representar suas percepções de mundo.


NOTAS:

1SOUSA, Paulo Ângelo de Meneses. Memória histórica e narrativa em Heródoto. Revista Humanitas, UFPI, 2009, P. 84.

2SANTOS, Eduardo Natalino dos. Tempo, Espaço e Passado na Mesoamérica. São Paulo, Alameda, 2009, p. 45.


3CARBONELL, Charles-Olivier. Historiografia. Lisboa, Teorema, tradução de Pedro Jordão, 1992, p. 7.


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terça-feira, 19 de julho de 2016

Prefácio dos Estudos Históricos de René Chateaubriand (III)

François-René de Chateaubriand. Pintura de Anne-Louis Girodet de Roussy-Trioson.

Terceira e última parte da série de postagens Prefácio dos Estudos Históricos de René Chateaubriand, no qual o autor romântico discorre sobre os temas Escola Histórica da Alemanha, Filosofia da história e a história na Inglaterra e na Itália.

Escola Histórica da Alemanha. Filosofia da história. A história na Inglaterra e na Itália

Próximos a nós, enquanto fundávamos nossa escola política, a Alemanha estabelecia suas novas doutrinas e nos ultrapassava nas altas regiões da inteligência: ela fazia entra a filosofia na história, não essa filosofia do século XVIII, que consistia em lavrar sentenças morais ou antirreligiosas, mas essa filosofia que procura a essência dos seres; que, penetrando o envelope do mundo sensível, procura se não há ali sob esse envelope alguma coisa mais real, mais viva, causa dos fenômenos sociais.

Descobrir as leis que regem a espécie humana; tomar por base de operações as três ou quatro tradições disseminadas entre todos os povos da Terra; reconstruir a sociedade sobre essas tradições, da mesma maneira que se restaura um monumento a partir de suas ruínas, seguir o desenvolvimento das ideias e das instituições nessa sociedade; assinalar suas transformações, indagar à história se não existe na humanidade algum movimento natural, o qual, manifestando-se em épocas fixas nas posições dadas, pode fazer predizer o retorno desta ou daquela revolução, como se anuncia a reaparição dos cometas cujas curvas foram calculadas: esses são interesses imensos. Quem é o homem? De onde vem? Para onde vai? Que veio fazer aqui? Quais são seus destinos? Os arquivos do mundo forneceriam respostas para essas questões? Existe em cada origem nacional uma idade religiosa? Dessa época passa-se para uma época heroica? Dessa época heroica a uma época social? Dessa época social a uma época propriamente humana? Dessa época humana a uma época filosófica? Existe um Homero que canta em todos os países, em diferentes línguas, no berço de todos os povos? A Alemanha se divide sobre tais questões em dois partidos: o partido filosófico e o partido histórico.

O partido filosófico-histórico, à cabeça do qual se coloca Hegel, pretende que a alma universal se manifesta na humanidade por quatro modos: um substantivo, idêntico, imóvel, é encontrado no Oriente; outro individual, variado, ativo, encontra-se na Grécia; o terceiro se compõe do dois primeiros numa luta perpétua e existiu em Roma; o quarto sai da luta do terceiro para harmonizar o que estava diverso: existe nas nações de origem germânica.

Assim o Oriente, a Grécia, Roma, a Germânia oferecem as quatro formas e os quatro princípios históricos da sociedade. Cada grande massa de povos, colocados nessas categorias geográficas, tira de suas posições diversas a natureza de seu gênio, o caráter de suas leis, o gênero de eventos de sua vida social.

O partido histórico se atém somente aos fatos e rejeita toda fórmula filosófica. Niebuhr, seu ilustre chefe, cuja perda recente foi deplorada pelo mundo letrado, compôs a história romana que precedeu Roma; mas não reconstruiu seu monumento ciclópico em torno de uma ideia. Savigny, que seguiu a história do direito romano desde sua época poética até a época filosófica à qual chegamos, não procura mais o princípio abstrato que parece ter dado a esse direito uma espécie de eternidade.

A escola filosófico-histórica de nossos vizinhos procede, como se vê, pela síntese, e a escola puramente histórica, pela análise. Estes são os dois métodos naturalmente aplicáveis à ideia e à forma. A escola histórica diz que o fato coloca em movimento o espírito humano: esta última escola reconhece ainda um encadeamento providencial na ordem dos eventos. Essas duas escolas tomam na Alemanha o nome de sistema racional e sistema supranatural.

Afinadas com as duas escolas históricas, marcham duas escolas teológicas que se unem às duas primeiras segundo duas diversas afinidades. Essas escolas teológicas são cristãs; mas uma faz sair o cristianismo da razão pura; a outra, da revelação. Nesse país onde tantos altos estudos são levados tão longe, não ocorre a ninguém que a falta da ideia cristã na sociedade seja uma prova dos progressos da civilização. [...]


FONTE GERAL DA SÉRIE DE POSTAGENS:

MALATIAN, Teresa. Chateaubriand. In: MALERBA, Jurandir. Lições de história: o caminho da ciência no longo século XIX. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. pp 113-131.

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terça-feira, 12 de julho de 2016

Construindo a Idade Média

1° imagem: parte da pintura O triunfo da morte (1562), de Peter Bruegel. 2° imagem: Catedral Gótica de Orvieto, Itália.

Texto produzido a partir de exercício avaliativo sobre História Medieval I ministrado pelo Professor Dr. Sínval Carlos Mello Gonçalves como primeira nota da disciplina.

Aprendemos no ensino básico que a Idade Média é uma parte da História da Europa que vai do século V ao século XV. O ano de 476, com a queda do Império Romano do Ocidente, é o marco inaugural; e o fim ocorre em 1453, quando os turcos otomanos tomam Constantinopla, capital do Império do Oriente. Vez ou outra, um professor ou professora podem se referir a esse milênio de história europeia como a “Idade das Trevas”, marcada pela supremacia e opressão da Igreja e por crises e guerras. Outros, no entanto, podem fazer o contrário, se referindo a esse recorte histórico como uma época de avanços técnicos, de fabulosas produções artísticas e de valorização das tradições. O objetivo desse texto é justamente esse: entender como foram construídas, ao longo dos séculos, diferentes imagens desse período histórico.

O nome que esse período recebe, Idade “Média”, já carrega um estigma, como se este fosse algo menor entre a Antiguidade Clássica e a Idade Moderna. Em 1469, o bibliotecário do Vaticano e humanista Giovanni Andrea, cunhou o termo Idade Média (medium aevum, media tempestas, mediae aetas), uma idade do médio, intervalo entre a Antiguidade Clássica, período de esplendor cultural para os humanistas, e a Idade Moderna, tempo em que viviam, marcado por inovações e revalorização da cultura greco-romana. Francesco Petrarca (1304-1374) em seu poema épico África, utilizou a palavra escuridão para se referir à sua época.

Ela surge como instrumento historiográfico no recorte da história em três idades (Antiguidade, Idade Média, Tempos Modernos) feito pelos eruditos alemães no século XVII, dos quais podemos citar Rausin, em 1639; Gisbertus Voetius; em 1644; e Georg Horn, em 1666. Nesse ponto, por mais que ainda seja intervalo, ela ganha destaque ao aparecer como uma parte integrada à história ocidental. O historiador eclesiástico Caesar Baronius, recuperando os escritos de Petrarca, cunhou o termo saeculum obscurum (século obscuro, Idade das Trevas).

Os iluministas do século XVIII, mergulhados no espírito crítico e na valorização da razão, e amantes das liberdades burguesas, veem na figura da Igreja medieval e no modelo de Estado os sinônimos de obscurantismo e supressão da liberdade de pensamento. Adam Smith, autor de A Riqueza das Nações, vê na economia feudal e no controle estatal os contrapontos ao liberalismo e progresso de sua época. O século das “Luzes” foi decisivo para a construção da imagem duradoura que ficou da Idade Média: Uma época de fanatismo religioso, irracionalismo, repressão intelectual e atraso econômico.

O Movimento Romancista do século XIX, em oposição às visões negativas forjadas anteriormente pelo Iluminismo, ao qual fazia oposição, e ao racionalismo e liberalismo de sua época, idealizou a Idade Média como um período de espiritualidade, de exaltação das tradições nacionais e das visões fantásticas de mundo. Inúmeras obras com temática medieval cavaleiresca foram publicadas no período, como Ivanhoé, romance histórico de Walter Scott. As nações europeias buscam suas raízes históricas nos francos, nos gauleses, nos celtas, nos visigodos e nos saxões.

Segundo o historiador e professor Jérôme Baschet (2006) “[…] a Idade Média convida, com particular acuidade, a uma reflexão sobre a construção social e sobre a função presente da representação do passado” (p. 26). Analisando essa citação podemos compreender como as representações, construções da Idade Média, feitas em tempos posteriores, atendem a interesses distintos, que vão desde a depreciação (século XV) à valorização (século XIX). 

Como devemos, então, nos referir a Idade Média? “Nem legenda negra, nem legenda rosa”, escreveu Le Goff. Devemos evitar tanto a imagem de uma Idade das Trevas como a idealização de uma época de ouro. É uma característica comum das culturas humanas buscar através de construções do passado bases para se assentar como novas e civilizadas, ou valorizar o passado para criticar sua própria época.


FONTE:

BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo Editora, 2006.

CRÉDITO DAS IMAGENS:

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sexta-feira, 8 de julho de 2016

A interpretação política dos pensadores Clássicos à Karl Marx

Por Roosewelt Sena


O que é política, livro do escritor Wolfgang Leo Maar, (Brasiliense, 1994, 109 pág.) é uma obra que, em termos gerais, trata de política de uma forma clara e objetiva. É apresentado um panorama da atividade política desde os tempos antigos até os dias atuais, bem como suas causas e consequências. Na resenha a seguir é apresentado o resumo de um trecho da obra, pág. 29-45.

Iniciando o raciocínio a partir de que a política se firmou como atividade social dos homens no decorrer da História, o autor passa a conceber as inúmeras concepções que este termo, desde a Antiguidade até os dias modernos, apresenta, sempre compilando as ideais centrais da sociedade como democracia e direito. A todo o momento a atividade política se desenvolve, seja a partir dos parâmetros sociais, seja em virtude das necessidades da sociedade.

Falar sobre política é mais do que falar sobre Estado ou partidos, mas é levar em consideração o que motivou a formação dessas instituições. Daí surge a importância dos movimentos sociais que serviriam de eixo para a representação das necessidades populares.

A atividade política entre os gregos é baseada na democracia. Esta não era estendida a toda a população, mas somente aos homens, filhos de atenienses (mulheres e estrangeiros não tinham o direito de participar da vida política). Os gregos são na verdade os precursores da democracia. A expressão “política” nasce a partir da atividade que o homem executava na “pólis”. Ao contrário de outras sociedades do seu tempo, na Grécia a política tornou-se o elo constituinte da sociedade. Tanto Platão quanto Aristóteles eram avessos à democracia mas possuem alguns pontos em suas obras que esclarecem o ideal político grego.

Para Platão o político se diferencia dos demais homens por ter um maior conhecimento da “pólis” e das atividades vinculadas a ela a fim de oferecer uma luz para os demais homens. Para Aristóteles a política associa-se a todas as demais ciências para alcançar um determinado fim que é o “bem supremo dos homens”. A partir daí tem-se um ideal coletivo que, agregado à política torna esta mais sujeita às necessidades do povo, mais “democrática”.

O que transforma o homem em cidadão é a ética, por sua vertente pedagógica. O espaço de tomada das decisões amplia-se do soberano para o restante da sociedade. Não é mais o rei que tem a autoridade máxima (como em uma monarquia) mas quem decide é o povo (democracia).

O modelo de atividade política centralizada de Roma tornou-se um modelo para sociedades contemporâneas. Para os romanos manterem seus monopólios sobre suas riquezas e seus domínios passam a executar uma política voltada para o interesse particular, diferente do que acontecia na Grécia. O Estado Romano então governaria em favor de uma classe, os patrícios, impondo os interesses desses sobre os demais.

Além do domínio do Estado também havia a relação entre tutor e pupilo, que era mediada pelo direito romano, e através deste se garantia a não interferência do Estado na propriedade privada, ou nos interesses dos patrícios.

Roma não era uma pólis por que a atividade política não tem relações com cidade-estado, mas sim de relações entre militares, burocratas e burgueses e suas práticas de manipulação, corrupção e repressão.

As causas da queda do Império Romano estariam nele mesmo. Por ser o único estado, baseando sua atividade política em uma concepção institucional, não pôde sustentar-se para sempre, com adventos de crises e guerras, tomadas de fronteiras, tudo isso cooperou para o seu caos. Esses são pontos indicados por Gramsci. 

Durante a idade média a atividade política apresenta uma duplicidade, de um lado a nobreza exercia o “poder político” fazendo o uso da dominação pela força, do outro o clero executava o “poder civil” agindo com persuasão e convencimento para com a sociedade.

Sendo o governo o agente da atividade política de um Estado, este impõe suas condições. Através do seu agente, a atividade política do Estado realiza-se concretamente, pelo exercício do poder do governo. Com isso temos a dimensão do domínio que o governo pode atingir para alcançar seus objetivos, na esfera política. O livro de Maquiavel é um conjunto de lições para que se conquiste ou se mantenha um principado.

O que caracteriza o príncipe é a virtude, nesse sentido, para Maquiavel, a política torna-se acessível a todos. Torna-se a “arte do possível”. A teoria política de Maquiavel corresponde aos anseios de adquirir influencia por parte da burguesia mercantil, que perdeu seu significado na estrutura monárquica. Para Locke, principal teórico da revolução burguesa na Inglaterra, o governo civil fornece instrumentos de poder que permitem que “nossos” interesses se transformem numa orientação política para a sociedade.

O Príncipe de Maquiavel é virtuoso quando apresenta de maneira eficaz o poder do Estado. A virtude do príncipe estaria na força e na astúcia com que governa e não na justiça em relação aos governados. Enquanto a burguesia dependia de sua própria astúcia e força, o proletariado precisaria repousar na sua própria capacidade de mobilização para se tornar um agente político.

Com Maquiavel, a questão do governo é deslocada para o estado. A questão básica para Maquiavel seria as condições de ser governado, o que o levaria a estudar o Estado. Para Marx, o Estado precisa se submeter ao comportamento e aos interesses manifestados nessa classe. Neste sentido a atividade política se desloca do Estado para a luta de classes. A inovação de Marx foi atribuir a estas classes “sociais” um significado político sem transformá-las em classes “políticas”, de suporte à atividade política nos moldes do Estado.

A uma determinada sociedade civil corresponde um determinado tipo de Estado político, que não é mais expressão daquela; o Estado passaria a ser moldado pelas objetivações da sociedade que governa. A necessidade de estudar as relações entre governantes e governados daria lugar, como cerne da própria atividade política, à análise entre classes dominantes e as clássicas dominadas, entre exploradores e explorados; na sociedade capitalista essas relações seriam determinadas propriedades ou não dos meios de produção material.

A partir do exposto, é notável o quanto a centralidade da atividade política varia conforme o período, a necessidade, e forma social. Em cada período histórico o núcleo do processo político se dispersa ora pelo Estado, por meio das instituições políticas, embora estas, em certas situações, não regulamentam a atividade política sobre os parâmetros sociais atendendo apenas uma parte da sociedade. Isso nos faz compreender o quanto o sistema político varia em sua forma estrutural. Contemplando as formas de governo analisadas por Platão e Aristóteles, entendemos que logo uma sociedade exerce seu papel político sob as rédias de governantes que por um lado governam em direção a um objetivo público, e outras vezes em prol do particular, dos próprios políticos ou de uma classe dita dominante.


Roosewelt Sena, 22, é acadêmico de História na UFAM (Universidade Federal do Amazonas) e poeta.


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quinta-feira, 7 de julho de 2016

O Método Histórico

O bispo Virgil von Salzburg (746-784) medita profundamente sobre um texto que leu.

O trabalho do historiador, para o senso comum, se resume em uma simples seleção e memorização de fatos dispersos no tempo, cada um com suas especifidades. Esse trabalho, na verdade, consiste de um método histórico, ordenado da seguinte forma: 1) escolha do tema de estudo; 2) coleta de informações sobre ele; 3) análise crítica das informações reunidas; 4) estabelecimento de relação entre os fatos; 5) por último são tiradas conclusões. As etapas variam de historiador para historiador. Ciro Flamarion, da área da História Antiga, sugere quatro: seleção de tema, coleta de dados, crítica e elaboração, síntese e redação.

Num primeiro momento, o profissional da História já deve ter em mente, quando for realizar uma pesquisa, do tema a ser estudado. Geralmente, se escolhe algo de interesse pessoal; algo que tenha despertado a curiosidade. Um detalhe: tem que ser feito um recorte sobre o tema. Algo muito geral dificulta a pesquisa. Substitua, por exemplo, uma História Geral do Amazonas por Amazonas Colonial entre 1750 e 1800.

Um dos diferenciais que a pesquisa pode ter é o ineditismo. O pesquisador pode apresentar para a comunidade um tema nunca antes trabalhado ou trabalhar um tema que já foi amplamente trabalhado por outros autores, mas pode apresentar este sob uma nova perspectiva.

Definido o tema, é necessário verificar se, para a elaboração de seu estudo, existem fontes (registros) sobre o tema e se estas estão disponíveis. Se existem, o historiador os seleciona e reúne para começar a dar forma a sua pesquisa. Esse processo de seleção das fontes se chama heurística. Às vez, a partir de uma única fonte, são descobertas muitas outras.

As fontes são divididas em dois grupos: as materiais e imateriais. As primeiras se referem a vestígios concretos de épocas passadas, como cartas, manuscritos, jornais, utensílios domésticos etc. As fontes imateriais são os registros intangíveis, como a tradição oral, que passa de geração em geração. O historiador, ainda analisando as fontes, as diferencia entre primária e secundária. Basicamente, as fontes primárias são registros contemporâneos ao acontecimento (ex: cartas escritas pelos inconfidentes mineiros no século XVIII). As fontes secundárias são registros indiretos posteriores a um período histórico (ex: compilação de cartas da Inconfidência Mineira feita no século XX).

Atualmente, existem várias formas de se averiguar a veracidade de um documento, como o teste de seus materiais (tinta, papel) em laboratório. Entram aí profissionais de outras áreas: arqueólogos, linguistas e antropólogos. Mas, frequentemente o historiador se vê diante de documentos sem data, sem autores identificáveis, o que torna o processo crítico mais difícil.

Reunidas as fontes, o historiador começa a se questionar sobre o (s) acontecimento (s) do passado. São feitas duas críticas: a externa e a interna. A crítica externa tem o intuito de se verificar a autenticidade do documento, se este é originário da época a qual se especula, se foi escrito pelo suposto autor ou se foram feitas alterações. Com a crítica interna o pesquisador analisa o conteúdo do documento, quais as verdades ou mentiras ele carrega, os fatores (religiosos, ideológicos) que influenciaram sua produção, as omissões, invenções e participações no acontecimento.

Verificada a confiabilidade das fontes e feitas as críticas, o historiador passa a interpretar os fatos, estabelece relações entre eles e tenta explicá-los. Ele analisa as evidências sobre um tema e levanta hipóteses, fazendo um diálogo com as fontes, tornando-as vivas. Esse processo se chama reconstrução imaginativa. A imaginação, aqui, não tem o sentido comum de criar coisas, mas sim de criatividade e talento ao extrair o máximo de informações das fontes.

A História é uma ciência que não se testa em laboratório, pois trabalha com as relações de mudança que o homem realiza no tempo. Um fato como a Revolução de 1789 não pode ser replicado. Os historiadores não buscam uma causa, mas sim múltiplas “causas” que culminaram em um evento.

O último processo da pesquisa histórica é a redação. Uma boa pesquisa merece uma narrativa de igual qualidade. Se aconselha que o pesquisador planeje a estrutura narrativa, que apresente nela o tema, os problemas, as hipóteses, as notas de rodapé e a metodologia empregada. O texto deve ser apresentado seguindo uma sequência de ideias. Devem ser evitados erros de gramática, de concordância e de ortografia. Devem ser dados os créditos para citações, notas e trabalhos de terceiros. Por último, construa uma argumentação objetiva, com boa argumentação e poder de persuasão.


FONTE:

MARTINS FILHO, Amilcar Vianna. Como Escrever a História da Sua Cidade. Belo Horizonte: Instituto Cultural Amilcar Martins, 2005, p. 39-59.



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domingo, 3 de julho de 2016

As Guerras da história

A Musa Clio escrevendo história, 1763. Franz Ignaz Günther.

Resenha do capítulo 12 do livro A história dos homens (2004), de Josep Fontana. Intitulado As guerras da história, o autor nos mostra, com exemplos da Europa à Ásia, como a História, no século XX, foi sendo controlada pelo Estado e pelas classes dominantes, interessadas em garantir a "transmissão" das versões que lhes favoreciam.

A produção historiográfica sempre esteve em poder das classes dominantes, que a utiliza para manter seu status e garantir a continuidade do que é considerado uma história verdadeira. Duas questões se constituem em empecilhos para essas classes: Primeiro, nem todos os historiadores, produtores da escrita histórica, se curvam diante de suas vontades; Segundo, é necessário que se vigie constantemente os conteúdos transmitidos através do ensino, visando sempre a manutenção do status quo. As posições políticas, sempre divergentes e, muitas vezes, levadas ao extremo, têm grande peso na interpretação do passado, “o que constantemente levou a autênticas “guerras da história”1

Josep Fontana, historiador catalão, faz um breve panorama de como ficou a historiografia na Espanha durante a ditadura franquista dos anos 1930, década marcada pela ascensão dos embates políticos e ideológicos entre liberalismo, comunismo e fascismo. Nas escolas, universidades e outras instituições, a história abordada era a Nacional, com forte cunho patriótico e doutrinador. O passado espanhol era alterado em nome das convenções políticas, como quando “uma arqueologia impregnada de racismo nazista que menosprezava os iberos mediterrâneos, revalorizava os celtas “ários” - esquecendo-se definitivamente de possíveis mestiçagens celtibéricas – e que chegou a procurar, num vaso antigo, antecedentes da saudação fascista do braço erguido”2.

O panorama da Espanha não sofre grandes mudanças com o fim da Ditadura Franquista. Ao assumir o governo, o Partido Socialista Espanhol, e mais tarde o Partido Popular, continuavam a “fabricar” e difundir a produção histórica nos moldes patriotas e ultranacionalistas, com ameaça de censura aos livros que não se enquadravam aos parâmetros estabelecidos pelo Estado.

Saindo da Península Ibérica, as guerras da história se mostram mais violentas na outra parte do Mundo Ocidental, com maiores agravantes após a divisão ideológica causada pela Guerra Fria. Segundo Fontana, desde os anos 1930 se notam conflitos no ensino de História nos Estados Unidos, onde os livros que não se adequassem aos valores conservadores e patrióticos eram censurados e eliminados. A Associação Nacional de Manufaturas, nos anos 1940, possuía mais de 6.800 vigias locais, com a missão de manter a educação livre do perigo do coletivismo, que pode ser interpretado como Comunismo.

Após o fim da Primeira Guerra Mundial e a ascensão de duas forças antagônicas, Liberalismo (representado pelos Estados Unidos) e Comunismo (representado pela URSS), os Estados Unidos passaram a atacar a história progressista de historiadores como Charles Beard e Carl Becker; e a elaborar uma história objetiva, que transmitisse ensinamentos morais. Nunca houve, nas palavras de Fontana, “uma associação tão íntima entre os historiadores e o poder que se estabeleceu nestes anos3. Historiadores de prestigiadas universidades passaram a trabalhar na CIA, na OSS, no Departamento de Estado e em outros órgãos do governo. A produção historiográfica que começava a se formar nesses anos de embates ideológicos visava não só a consolidação dos Estados Unidos como principal potência mundial e a defesa dos valores tradicionais americanos, mas também atendia ao interesse governamental sobre informações dos “inimigos”. Surgem sovietólogos, kremlinólogos, matérias universitárias sobre a Ásia e a Rússia. O historiador George Kennan fixa as linhas da política norte-americana em relação a URSS; e o professor emérito de História Russa, Richard Pipes, num primeiro momento, ataca o comunismo, para mais tarde, minar o estado de bem-estar social.

Aliava-se à história, nesse período, a sociologia, surgindo a sociologia histórica, que interpretava os fatos históricos a partir de modelos sociológicos esquemáticos. Também era produzida uma história erudita, representada por maciços trabalhos de compilação documental. Sociologia Histórica e História Erudita eram voltadas para o estudo de conflitos sociais e formas de evitá-los ou contê-los. Podem ser citadas as obras de Barrington Moore Jr., Charles Tilly e Theda Skocpol.

A repressão tornou-se constante no cenário intelectual americano. Livros considerados subversivos, com tendências pró-comunistas, eram censurados. A Daughters of the American Revolution chegou a denunciar 170 livros nessa categoria, que continham, por exemplo, expressões sobre coletividade, algo considerado pró-comunista. Esse clima repressivo permitiu o surgimento de uma História baseada na predestinação, na doutrina Destino Manifesto e em outros “talentos” considerados natos dos Estados Unidos. Não eram feitas menções às conquistas dos nativos, a grupos marginalizados e não eram feitas críticas sociais. Fontana, citando Gendzier, afirma que “voltava-se, ao mesmo tempo, à doutrina da objetividade, à rejeição da “ideologia” - isto é, das ideias dos outros – e da “construção social”4

Os Estados Unidos, representantes máximos do lado liberal da Guerra Fria, tinham de estender sua influência para outros países. Seus ideais eram difundidos através do Congresso pela Liberdade da Cultura (CCF), dirigido pela CIA e amparados por recursos provenientes do Plano Marshall. Eram financiadas revistas propagandistas dos ideais norte-americanos da Europa à Oceania: Na França, existiu a publicação preuves; na Grã-Bretanha, a Encounter; Cuadernos, na Espanha; Tempo Presente, na Itália; e outras de mesmo cunho na Austrália, na Índia e no Japão.

Outros campos do conhecimento humano passaram por transformações radicais dentro desse contexto. No campo das Artes, por exemplo, o realismo, vertente utilizada para popularizar as artes, é substituído pelo expressionismo abstrato. Essa vertente tem uma linguagem complexa, entendida apenas por uma pequena elite intelectual. As exposições dos artistas expressionistas abstratos eram financiadas pela CIA. No curso de Letras das universidades, língua e literatura passam a ser estudados sem se levar em conta o contexto social e histórico, apenas o conteúdo do texto. É um estudo elitista, que evita críticas tanto da direita quanto da esquerda. No estudo de Ciências Sociais, a National Science Foundation pedia para aqueles que solicitassem apoio para seus estudos evitar qualquer ligação com reformas ou bem-estar social. Se o apoio viesse da iniciativa privada, os pedidos eram, por exemplo, que se evitassem pesquisas sobre relações de raça.

Dando um salto cronológico de quase 50 anos, Josep Fontana sai do período da Guerra Fria e entra nos anos 90, afirmando, no entanto, que a luta não terminou naqueles tempos de visível divisão ideológica. Nessa década, o presidente George W. Bush empreendeu uma grande reforma na educação dos jovens americanos, na qual estava incluído o conhecimento das “diferentes heranças culturais da nação”. A comissão encarregada da área da História teve uma tarefa árdua ao englobar uma gama de minorias presentes no país, numa tentativa de construir uma história verdadeiramente global. Os novos parâmetros de ensino ficaram prontos em 1994, e quase de imediato passaram a ser denunciados por grandes veículos de comunicação do porte de Wall Street Journal, que os acusavam “como uma conspiração para inculcar uma educação ao estilo comunista ou nazista, dentro de uma campanha contra o multiculturalismo e contra os “tenured radicals”: os professores “radicais” que se acreditava, sem fundamento algum, controlassem os ensinos de história, literatura ou antropologia nas universidades norte-americanas”5. Emergiam novamente os conflitos da época da guerra, que de fato nunca foram superados.

As perseguições ao marxismo e seus simpatizantes continuava a funcionar com o mesmo mecanismo dos anos 40: os vigilantes e historiadores alinhados à classe dominante. O historiador David Abraham foi perseguido pelo também historiador Henry A. Turner; Norman Cantor atacava Lawrence Stone; Robert Conquest, que em seu último livro mostrara como as “ideias revolucionárias devastaram mentes, movimentos e países inteiros”, atacava o historiador inglês Eric Hobsbawm, autor de História do Século XX, livro bem-aceito até nos meios liberais britânicos.

Voltando à Europa dividida, a Grã-Bretanha, alinhada ao lado Liberal, tinha como instrumento de propaganda anticomunista o IRD ((Information Research Department), que tinha como colaboradores o ilustre escritor George Orwell, que em troca do apoio de divulgação internacional das obras A revolução dos bichos e 1984, entregou 130 comunistas ao governo. Também colaborava o historiador e “sovietólogo” Robert Conquest. A educação básica, no governo de Margaret Tatcher, foi alvo de campanhas que visavam um ensino baseado em “valores britânicos”, sem espaço ao multiculturalismo e às camadas mais baixas da sociedade, que constitui objeto de estudo da História Social. A História que Tatcher desejava nos currículos escolares era factual, limitando-se aos feitos dos primeiros-ministros, questões políticas e guerras.

Nem sempre as Guerras da História se davam de forma tão abrangente como ocorreu nos Estados Unidos. Às vezes, um único fato passado, quando revisitado e interpretado sob diferentes tendências políticas, é motivo para acalorados debates acadêmicos. Em 1989, nos 200 anos da Revolução Francesa, chegava ao fim o regime soviético. Os historiadores que naquele momento abordavam a Revolução Francesa, revisionistas, a apresentava como um fenômeno sem consequências de transformações sociais e ponto de partida de momentos políticos do século XX como a Revolução Soviética e a vitória do bolchevismo.

A Revolução Francesa começara a ser minada por um novo revisionismo histórico, inaugurado por Alfred Cobban, que em 1964 afirmou que a Revolução Francesa não possuía um caráter social; e que em 1789 não existia feudalismo de um lado e burguesia revolucionária do outro. As formulações de Cobban tiveram influência em historiadores ex-comunistas, que buscavam uma forma de redenção pelo passado. Um desses foi o historiador François Furet, que apoiado por grupos da direita norte-americana, teve uma rápida ascensão no meio acadêmico, se apresentando ao público como uma nova autoridade sobre a revolução. Furet, que tinha uma maior preocupação com a historiografia do que com a história, foi rejeitado nos meios acadêmicos. Outra característica de sua produção era a divisão da revolução entre a liberal e reformista de 1789; e a má, do período do terror, de 1792-1794, antecedente do comunismo russo. Para Fontana, o cúmulo da sem-vergonhice de Furet viria com o Dictionnaire critique de la Révolution française (1988), quando a especialista Mona Ozouf e os organizadores “permitiram-se, por exemplo, excluir um nome como o de Albert Soboul, cuja obra de pesquisador no terreno específico da história revolucionária é superior às do diretor, sua cúmplice e do bando inteiro juntos6.

Hunt, Baker e Furet atacavam a interpretação social da revolução. Para esses autores, para se compreender a Revolução Francesa é preciso entender o “espaço conceitual em que foi inventada”. Foi apontado, em uma revista de renome acadêmico, que os impostos eram a causa do grande mal estar público que desencadeou a revolução. Para Colin Jones, esses autores estavam reduzindo a Revolução Francesa a um acontecimento linguístico, esquecendo suas implicações econômicas e sociais. Essa redução nada mais era do que uma tentativa de combater a interpretação jacobino-marxista, vista pelos revisionistas como dogmática e inflexível.

Mas foi nessa interpretação que, segundo Fontana, ocorreram avanços nos estudos sociais da Revolução Francesa. A história universitária traz à tona questões sociais a tempos ignoradas pelos revisionistas: as lutas na sociedade camponesa, caminho aberto por Pierre de Saint Jacob; o enriquecimento de uns e o empobrecimento de outros; diminuição da classe média; a novas interpretações de Hoffman e Moriceau, sobre a crise do século XVIII e sua inserção na longa duração; Kaplan com o abastecimento de Paris; Markov e Anatoli Ado com a reaparição do feudalismo e o balanço agrário, ignorados por Cobban; e McPhee e outros sobre as revoltas camponesas e seus desdobramentos no século XIX. A burguesia, desde o século XIX considerada a classe que encaminhou a revolução ao seu ápice, não é uma invenção dos jacobinos-marxistas, mas sim dos historiadores restauradores como François Guizot. Num primeiro momento, os burgueses, cansados da política do Velho Regime, se juntaram à Revolução, “mas que, uma vez conseguidas as mínimas liberdades reivindicadas, se apressaram em pedir ao estado o controle social que os defendesse dos trabalhadores”7. Nessa guerra, para Fontana, não há nada de positivo do legado desse revisionismo que não apresentou novas perspectivas em relação ao que atacava, na maioria das vezes, sem argumentos sólidos. Restou uma história pós-revisionista, que busca na sociedade francesa mudanças que nela se produziram a longo prazo.

A Alemanha do pós-guerra estava arruinada não só em sua política e economia, mas também em sua identidade histórica, que precisava, depois do fim do nazismo, ser redefinida. Repartida entre as potências vencedores do conflito, cada região, uma sob influência capitalista e outra comunista, tinha uma forma de interpretar a história recente alemã (nazismo e holocausto judeu). A República Democrática Alemã, comunista, fazia a interpretação através do mecanicismo dogmático stalinista, e, de acordo com a Terceira Internacional, interpretavam o nazismo como um capitalismo monopolista de estado. Surgia a escola histórica Stamokap. Essa visão histórica do nazismo foi divulgada na obra de Walter Ulbritch, A Legenda do Socialismo alemão ou O imperialismo alemão fascista.

Colocar o Nazismo como um tipo de capitalismo implicava em reduzir a culpa alemã, expandindo-a para um âmbito mundial. Para os membros da escola, a ascensão de Hitler não representou mudanças socioeconômicas significativas na transição da República de Weimar para a Ditadura nazista, tendo em vista que, para eles, Hitler nada mais era que um fantoche do capitalismo alemão, e que os verdadeiros culpados pelos crimes nazistas eram os empresários e banqueiros alemães. O holocausto judeu ficava em segundo plano, pois, nessa perspectiva histórica, os principais perseguidos pelo regime nazista eram os comunistas e os trabalhadores.

Na República Federal Alemã, capitalista, a culpa pelo nazismo era direcionada a um alvo específico, e evitava-se qualquer tentativa de responsabilizar o sistema econômico capitalista. Os alvos eram alguns poucos líderes do regime. Os crimes cometidos na Alemanha Nazista, dentre eles o extermínio em massa dos judeus, era responsabilidade dos dirigentes, não do povo alemão. Os historiadores da República Federal, nacionalistas e conservadores, consideravam o nazismo um regime totalitário semelhante ao comunismo. O Holocausto, nas produções historiográficas, era ocultado; e fabricavam-se resistências ao nazismo. No entanto, na década de 1960, surgiriam historiadores preocupados com a história social, como Hans-Ulrich Wehler e Jurgen Kocka, da escola de Bielefeld, que defendia uma nova história com a utilização de métodos e teorias das ciências sociais.

O Holocausto, agora, passaria a ser estudado através de duas vertentes, a intencionalista e a funcionalista. As duas vertentes responsabilizavam dirigentes pelo massacre, mas divergiam entre si nos seguintes aspectos: Para os primeiros, o extermínio era um projeto prévio de limpeza “racial” da Europa; Para os funcionalistas, esse extermínio foi realizado de forma prática, sem um projeto prévio, pois o grande número de prisioneiros era um problema, aos quais somava-se a invasão soviética.

No final dos anos 1980, a culpabilidade desses dirigentes seria revista. Ernst Nolte, historiador de direita, já afirmava, nos anos 70, tentava diminuir a culpa das atrocidades nazistas, dando como exemplos “piores” as ações norte-americanas no Vietnã e o regime stalinista. Em 1983, ao publicar O marxismo e a revolução industrial, sustentava que o holocausto era uma resposta ao marxismo e à Revolução Soviética. Em artigo publicado em 1986, Nolte afirmou que o povo alemão deveria parar de aceitar as culpas a ele impostas. Para esse historiador “Hitler não havia feito mais que seguir o exemplo do comunismo soviético e o extermínio dos judeus não havia sido mais que uma medida preventiva para poupar os alemães do genocídio de classe com que os ameaçavam os bolcheviques8. Ernst recebeu uma resposta de Jurgen Habermas, que denunciava sua característica apologética, isto é, de defesa ao nazismo ou hitlerismo. O debate dividiu conservadores e sociais-democratas, mas não se produziu novo conhecimento histórico.

Novas pesquisas historiográficas vieram à tona, e os argumentos de Nolte e dos revisionistas iam perdendo espaço. Essas novas pesquisas, segundo Fontana, mostraram que Stálin não atacaria a Alemanha, e Hitler sabia disso. A guerra preventiva de Hitler foi um pretexto para atacar a nação russa, numa investida final contra o “bolchevismo-judeu”. O ataque à Rússia e o extermínio de milhões de judeus “não foram fatos bélicos “normais”, senão que representam um novo tipo de guerra encaminhada à aniquilação total e sistemática, pela fome e pelas execuções, de milhões de seres humanos em nome da luta contra os fantasmas hitlerianos do judeu-bolchevismo”9. Os argumentos dos historiadores conservadores cada vez mais ficavam insustentáveis. Guerras da História surgiam entre os judeus, em críticas a obras como A destruição dos judeus da Europa, de Raul Hilberg, por ter minimizado a resistência desse povo durante o nazismo; Einchmann em Jerusalém, de Hannah Arendt, por afirmar que alguns judeus colaboraram com o holocausto; e Por que o céu não se escureceu?, de Arno Mayer, por ter afirmado que o anti-bolchevismo foi tão importante quanto o anti-semitismo e que era um elemento para explicar o holocausto.

Os debates cessaram por um tempo, mas voltaram com força em 1996, ano da publicação de Os verdugos voluntários de Hitler, de Daniel Goldhagen. A polêmica da obra surge quando Goldhagen, revisitando fontes já conhecidas, sustenta que o Holocausto judeu foi o ápice natural do anti-semitismo alemão, arraigado em sua cultura. Dentre as fontes está Christopher Browing, que culpava “homens ordinários” pelos crimes, enquanto Goldhagen culpava “alemães ordinários”. A obra, criticada por não possuir rigor científico, foi reconhecida por Hans-Ulrich, por formular a abordagem sobre um tema incômodo como era o da participação da população alemã durante o regime nazista.

Terminada a repercussão do livro de Goldhagen, surgiu uma nova linha de pesquisa, ou frente de guerra: o papel dos grandes industriais durante o regime nazista. Essa nova guerra emergiu depois de mais de 50 anos de silêncio político, que começava a ser quebrado. Esses grandes grupos industriais, que tiveram forte participação nos crimes cometidos entre 1939 e 1945, blindavam-se através da construção de histórias empresariais, produzidas acadêmicos renomados. Em 1998, Michael Pinto-Duschinsk publicou um artigo com o título “Vender o passado”, no qual denunciava os historiadores que, bem pagos, aceitavam fazer as histórias de empresas alemãs, visando apagar seus passados ligados ao nazismo. Em 1999, o historiador Jonathan Steinberg trazia mais uma denúncia sobre o passado judeu e o nazismo, dessa vez sobre o ouro dos semitas. Steinberg e mais um grupo de historiadores, reunidos pelo Banco Alemão, estudando documentos da sucursal do banco de Istambul, chegaram à conclusão de que um quarto do ouro era proveniente dos campos de concentração.

No mesmo ano, o estudo de documentos das quatro sucursais do banco da Alta Silésia, revelou pagamentos realizados para construir o campo de Auschwitz. O grupo de Steinberg ficou em evidência, sendo acusado de ter sido financiado pelo Banco Alemão para ignorar, no início, essa documentação. Em 1997, o judeu norte-americano Feldman, patrocinado pelo banco, deu uma entrevista em Frankfurt, na qual reclamou da demanda “de velhos trabalhadores-escravos, nem todos judeus, apresentadas nos Estados Unidos, o que podiam gerar ressentimentos e aumentar o anti-semitismo”. As denúncias acabaram da melhor forma para empresas, que indenizaram os poucos sobreviventes que existiam na época. Essa conclusão, característica das classes dominantes,mostra, por um lado, a extraordinária eficácia com que os controladores da história conseguiram manter um silêncio tão duradouro sobre estas questões incômodas. Mas mostra também seu fracasso a longo prazo, quando as vozes críticas, que não foi possível silenciar de todo, reavivaram a consciência coletiva10.

Assinada a rendição do Japão, o general MacArthur, através das reformas impostas aos derrotados, elimina o ensino tradicional, ultranacionalista e que cultuava o imperador. Pretendia-se criar um currículo baseado em valores de paz e democracia. De início, não existiam livros que se adequassem ao desejo governamental, o que fez com que os antigos fossem utilizados, censurando-se as partes inadequadas. As escolas tinham a autonomia de escolher os livros que lhes interessavam, com um limite, em 1955, de 173 exemplares. Os professores mostraram-se simpatizantes da esquerda, fazendo com que o controle estatal e a censura a textos aumentasse nas instituições. No ano seguinte, meio milhão de professores foram às ruas do Japão protestar contra a medida. Ainda assim, textos que mostravam o “lado ruim” do Japão durante a Guerra, foram censurados.

O tradicionalismo nipônico volta nos anos 1980, durante o governo Nakasone, quando se afirmava que os japoneses eram mais inteligentes que os norte-americanos, “porque o Japão era mais homogêneo do ponto de vista racial e tinha menos imigrantes (esqueceu de dizer que os imigrantes que viviam no Japão eram também mais discriminados, como o eram os dois ou três milhões de hurakumin, ou japoneses descendentes de velhos ofícios infamantes”11. Os livros produzidos a partir dessa década defendiam as ações do Japão durante a guerra, a invasão à China e a invasão da Ásia. Em 1998, a “Sociedade para fazer novos livros de texto de História”, comandada pelo professor Fujioka, da Universidade de Tóquio, apresentava a introdução de um sentido de orgulho na história nacional; a oposição à culpa dos japonenses pelos crimes cometidos durante a Segunda Guerra; e a eliminação partes de livros que fizessem referência a temas como o das mulheres coreanas forçadas a servir como prostitutas aos soldados, que para os revisores nada mais eram que mulheres bem remuneradas que se voluntariavam a esse trabalho.

Esses exemplos de Guerras da História, escolhidos entre tantos outros com a mesma ferocidade ideológica, segundo Fontana, revelam “que os debates a que se referem têm pouco a ver com a ciência e muito com o contexto político e social em que se movem os historiadores12. Os historiadores que se dedicaram, aliados ao Estado ou a instituições privadas, a manipular a História, foram verdadeiros serviçais do poder.






1FONTANA, Josep. “As Guerras da História”. In: A História dos Homens. Bauru, (SP).
2Ibidem, p. 345.
3Ibidem, p. 347.
4Ibidem, p. 353.
5Ibidem, p. 355-56.
6Ibidem, p. 361.
7Ibidem, p. 364.
8Ibidem, p. 370.
9Ibidem, p. 371-72.
10Ibidem, p. 377.
11Ibidem, p. 378.

12Ibidem, p. 379.

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