segunda-feira, 4 de abril de 2016

Os 110 anos das Artes Marciais Japonesas no Amazonas

Por Aguinaldo Nascimento Figueiredo

O Conde Koma em uma demonstração de Jiu-Jitsu.

O Amazonas vem despontando nos últimos tempos como um grande centro de campeões de artes marciais, com destaque para o Jiu-Jitsu e o Judô. O talento de nossos jovens atletas surpreendem especialistas internacionais, em razão das premiações que alcançam, nas mais importantes modalidades, dessas competições. Mas esse cabedal de competência não é de agora não, ele vem sendo construído ao longo de uma história que poucos conhecem. Isso mesmo, para quem não sabe, o jiu-jitsu e o judô foram introduzidos, no Amazonas, pelos japoneses, no início do século 20, quando faziam turnês pelo mundo, para divulgar seus estilos na "arte suave" (significado da palavra jiu-jitsu em japonês). Por isso ela é uma história emocionante, marcada de conquistas e muito sacrifício que merece o reconhecimento de toda a sociedade amazonense.

De acordo com o professor Rildo Heros, pesquisador do assunto, os primeiros ases do jiu-jitsu a estarem, em Manaus, foram os mestres Sakamoto, Ynasake e Shimokawa, em 1906, quando apenas fizeram apresentações das técnicas dos seus estilos. Ainda, em 1906, aqui esteve o mestre Akishima Sadachi e o seu assistente Suiostos Ki, realizando em 18 de dezembro de 1906, no circo "Coliseu Metálico Brasileiro", armado na Praça da Saudade, a primeira luta de Jiu-Jitsu que se tem notícia no Brasil. Sadachi venceu todos os lutadores desafiantes. 

Em 18 de dezembro de 1915, um grupo de graduados do jiu-jitsu comandados por Mitsuo Mayeda, o conde Koma, chegou a Manaus, para fazer lutas marciais.

Mayeda era mestre da Kodocan, do mestre Jigoro Kano, o criador do judô. Além de Koma, vieram os mestres Shimizu Takaji, Noboshiru Satake, Okura e Sadakazu Uyenishi (Raku). Eles realizaram duas lutas na cidade.

A primeira, no dia 23 de dezembro de 1915, com o conde Koma enfrentando o boxer barbadiano Adolfo Corbiniano, em combate livre. O conde sagrou-se vencedor. A segunda deu-se, a 28 de dezembro, contra o campeão de luta romana Nagib Assef, em que o conde Koma derrotou o gigante turco, numa luta espetacular.

Depois, os japoneses deste grupo passaram a proferir palestras sobre artes marciais e a cultura física japonesa, na sede do Manáos Sporting Club, ganhando a simpatia popular.

Com o sucesso das lutas eles mobilizaram os setores esportivos da cidade, organizando o primeiro campeonato amazonense de Jiu-Jitsu, coordenado pela Liga Amazonense de Esportes Atléticos. O evento aconteceu em 30 de dezembro de 1915, no cineteatro Polyteama, com o lutador Nobushiro Satake vencendo todas as lutas. Minguados os eventos, os japoneses deixaram a cidade, com Okura e Shimizu retornando ao Japão e o conde Koma fixando sua residência, em Belém, com o nome de Otávio Maeda, construindo, a partir de então, outra página na história do jiu-jitsu e dos japoneses no Brasil. Maeda faleceu em Belém, em 1941.

Nobushiro Satake.

Nobushiro Satake fixou residência, em Manaus, e passou a ensinar Jiu-jitsu, no Instituto Universitário Amazonense, por que esse esporte fazia parte do currículo dessa instituição, que foi a primeira, no Brasil, a adotar esse gênero de esporte como disciplina curricular formal. Satake fundou também uma academia de Jiu-jitsu, no Atlético Rio Negro Clube, e foi responsável pela introdução do Basebol e do ensino de Técnicas de Massagem e Medicinal Oriental, no Amazonas. Em 1932, Sanshiro "Barriga Preta" Satake, apelido adquirido em razão da sua ligação com o clube rionegrino, partiu do Amazonas, deixando uma grande obra e uma legião de campeões, retornando ao Japão, não se sabendo qual foi o desfecho de sua vida, após essa data. Sabe-se que ele morreu em sua terra natal.

Sadakazu Oyenishi (Raku) instalou sua academia no prédio do Banco do Brasil, localizado na Praça XV de Novembro, que funcionou até 1920. Nesse mesmo ano ele deixou Manaus, realizando um périplo por várias cidades da Europa, retornando ao Japão em 1939. Morreu em Tóquio em 1956.

Em junho de 1932, chegou a Manaus, vindo de Parintins, Takeo Yano, faixa preta de jiu-jitsu. Era kotakussei e foi convidado para ensinar defesa pessoal à Polícia Militar e ao Exército Brasileiro, na capital amazonense. Nesse mesmo ano ele instalou um tatami, na sede do Nacional Futebol Clube, à rua Saldanha Marinho, ensinando aos jovens amazonenses os esportes marciais e promovendo duelos entre desafiantes. Dentre os seus alunos estava Guilherme Pinto Nery, que havia sido aluno do mestre Satake. Depois de preparado pelo mestre Yano, Guilherme Nery fez a sua primeira luta, a 7 de junho de 1933, contra o campeão peruano Jorge Ribas, no cineteatro Alcazar, depois cinema Guarany, sendo o vencedor.

Essa é considerada a primeira luta de jiu-jitsu onde houve um participante amazonense. Guilherme Nery, que fundou, em 1937, a sua academia de jiu-jitsu, em um prédio da Rua Luiz Antony, ensinando ao longo de sua existência o nobre esporte japonês, tendo como alunos personalidades da elite amazonense como Antônio Leão, Mário Verçosa, os irmãos Jorge e Jaime Tribuzzi, Osvaldo Mendes, Sílvio Tapajós, Ary Navarro, Jary Botelho, Oton Mendes, Osvaldo Zagury e Arthur Virgílio Neto.

O karatê foi introduzido, em Vila Amazônia (Parintins), em 1933, por mestre Saburo Ono, que era kotakussei. Ono veio para Manaus, em 1946, passando a ensinar karatê, no Olímpico Clube, até o fim do ano de 1946.

A primeira mulher de origem japonesa a praticar judô, no Amazonas, foi Edite Shirano, falecida em 2006. Edite era filha do professor Jiroso Shirano, kotakussei, que fundou a Academia Shirano, no bairro da Cachoeirinha, na antiga residência do professor Satake.

Em 1958, vieram apara o Amazonas os mestres Shoiti Sato e Toshio Yamagushi. Mestre Sato, que era faixa vermelha, com grau de sexto Dan em judô, era conhecido como Kimura ou "Mão de Banana", foi o instrutor da guarda pessoal do governador Plínio Coelho. Depois do golpe militar Sato se tornou taxista, em Manaus. Mestre Toshio Yamagushi, quarto Dan de judô, fundou, em 1960, uma academia, nas dependências da Associação dos Sargentos do Amazonas, e teve como discípulos Murilo Rayol, José Mário Frota, Ivan Tribuzzi, Tales e Taner Freire de Verçosa e Roberto Caminha. Infelizmente, o mestre Yamagushi teve morte trágica ao ser assassinado violentamente no bairro de São Raimundo, em meados dos anos 70, ao reagir a um assalto.

No ano de 1967, os estudantes universitários Gilberto Marques Meneses, Paulo Bernardes e Nilson Pascoal da Silva, fundaram, na "Casa do Estudante", à rua Barroso, a Academia Samurai. No ano de 1969, o advogado, jornalista e "faixa preta" de jiu-jitsu, Armando Jimenez, fundou, à rua Belém, a Academia Jimenez, congregando profissionais liberais, políticos de renome, intelectuais e jovens estudantes de famílias abastadas da cidade como os Valois, os Benchimol, os Lucena, os Areosa, os Xavier de Albuquerque e os Takeda, entre tantos.

Os primeiros campeões de judô do Amazonas foram Nilson Paschoal da Silva, Ângelus Figueiras, Paulo Nasser, Remédio Leocádio e Raimundo Nonato Gouveia.

A Federação de Judô do Amazonas foi fundada em 12 de julho de 1973, tendo como membros fundadores o atleta Nilson Pascoal da Silva, os srs. Luís Carlos Mestrinho Melo, o "Tical", Almério Botelho Maia, Flávio Cordeiro Antony, Valter Caldas, Iran de Carvalho e o poeta Enson Farias.

O primeiro Campeonato Amazonense de Judô ocorreu em março de 1974, no Colégio Militar de Manaus.

A primeira academia a ser instalada oficialmente no Amazonas foi fundada por Nilson Pascoal da Silva, em outubro de 1974, com a denominação de Judô Clube Manauara. No mesmo ano de 1975, a direção da Academia Samurai passa para o comando de Dorgival Francisco das Chagas, que foi aluno de jiu-jitsu e judô do professor José Maria (ex-aluno de Takeo Yano). Com um trabalho brilhante em prol dos esportes marciais no Amazonas, esse profissional morreu em 1998, e como reconhecimento o ginásio do Colégio Dom Bosco leva seu nome.

De seus alunos, foi destaque a atleta Rosemarina da Silva, medalha de ouro no Campeonato Brasileiro Norte-Nordeste, em São Luís do Maranhão, em 1982, e Jovandeci de Souza, medalha de ouro nesse mesmo campeonato, sendo o primeiro amazonense a integrar uma seleção brasileira e único atleta do Norte a participar da Copa Jigoro Kano, realizada em comemoração ao centenário de criação do judô, em São Paulo, em 1982.

Em 1974, o campeão brasileiro de judô e peso médio Tetsuo Fujisaka, instalou sua academia no Boulevard Amazonas, onde instruiu milhares de jovens amazonenses, tendo como alunos homens ilustres como os irmãos Monteiro de Paula e Jéferson Praia. Outra academia que foi destaque no Amazonas, foi a Associação Bushidokan de Judô, fundada nos anos 80 e localizada à rua Itamaracá, pelo médico ortopedista Tikara Hajiwara, faixa preta, formado pelo mestre japonês Kokitani.

Nesse mesmo contexto do pioneirismo foi muito importante a atuação da Associação Shogun, fundada em 22 de setembro de 1986, pelos professores Aldemir Duarte e Edval Lago, que foram alunos do professor Dorgival Francisco das Chagas. Por ela passaram milhares de praticantes de judô, principalmente trabalhadores do Distrito Industrial e jovens carentes que não podiam, muitas das vezes, arcar com as despesas e com o rígido treinamento. Outros jovens abnegados deram continuidade ao trabalho desenvolvido pela Shogun, fundando suas respectivas academias, destacando-se entre eles o professor David Azevedo (Associação Glória), o professor Luciano Dias (Associação Kodokan), o professor Lúcio Gláucio Mendonça e o professor Rildo Heros. A célebre Academia Shogun teve também como professor o nissei João Eonezawa, faixa preta segundo Dan, aluno do grande mestre japonês Massao Shinohara, que muito colaborou para o desenvolvimento técnico dos alunos dessa academia.

Em relação ao karatê, outro grande desportista a se destacar nessa arte foi o mestre Kasuteru Noguchi, que chegou ao Amazonas, em 1969, fundando a Academia Oyama de Karatê e Luta de Contato Kyokushin, que funcionou na União Esportiva Portuguesa, à Avenida Joaquim Nabuco, que depois passou para a rua Tarumã. Noguchi é dos fundadores da Federação Amazonense de Karatê e treinou tropas do Exército, da Aeronáutica e da Polícia Militar do Amazonas, do mesmo modo, realizando várias competições na cidade para promover e valorizar esse esporte. Paralelamente a esses eventos, o professor Noguchi também lotava os ginásios esportivos do Olímpico, o Renné Monteiro e o da Escola Técnica, realizando campeonatos que garantiam grandes lutas entre os seus praticantes. Muitos atletas foram destaque nesse período de ouro do karatê, entre eles destacaram-se Takuya Kawada e Zander Sassaki.

Uma modalidade esportiva ligada às artes marciais nipônicas que teve passagem efêmera em Manaus, no início dos anos oitenta, foi o Aikidô, ensinado pelo mestre Fugi. As aulas desse esporte eram realizadas na academia da Portobrás, localizada no centro da cidade. Entretanto, talvez, em razão da sua inexpressiva divulgação, poucas pessoas tiveram acesso à sua prática ou mesmo tendo a oportunidade de conhecer mais profundamente seus enigmas. Dos seus raros alunos, restou apenas a figura solitária do terapeuta, massagista e bancário Alfredo Peroba Jatobá, que montou seu dojô à rua Ramos Ferreira, no centro de Manaus.

Sem dúvida esses abnegados cidadãos deixaram sua indelével contribuição em forma de conhecimentos, inovações e a consolidação da prática de esportes de alto impacto, dois deles, inclusive, são os mais praticados pela juventude amazonense, pois, de acordo com os números de suas respectivas federações, até o ano de 2014, sabia-se da existência de mais de 2.000 academias e de mais de 50.000 praticantes de jiu-jitsu e de judô, no Estado do Amazonas.

Desde 2015, quando a semente foi lançada, quando se está próximo a se comemorar o centenário da primeira luta de jiu-jitsu no Amazonas, os frutos não pararam de se reproduzir. Uma safra de campeões de alto nível nesses esportes surgiu e brilhou nos tatames do mundo todo, engrandecendo o Estado nesse segmento que se tornou uma vasta atividade econômica, movimentando cifras bilionárias pelo mundo todo que é o "bug" desportivo do momento. Personagens como Ajuricaba de Menezes, Osvaldo Alves, Xande Ribeiro, Omar Salum, Ronaldo Jacaré, Bibiano, Paulo Coelho, Fredson Paixão e José Aldo conquistaram o mundo e passaram a chamar a atenção para essa história até então incógnita. E, complementando, segundo palavras do professor Rildo Heros, pesquisador do tema - "Da história, ainda pouco conhecida de Satake e sua escolinha no Rio Negro, às conquistas de amazonenses nos octógonos, Manaus, graças aos viajantes da terra do sol nascente, hoje se confunde com o jiu-jitsu. E o jiu-jitsu com Manaus".


Aguinaldo Nascimento Figueiredo é professor, historiador, escritor e membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), autor dos livros História do Amazonas (2000); Santa Luzia: História e Memória do povo do Emboca (2008); e os Samurais das Selvas: A presença Japonesa no Amazonas (2012).









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sexta-feira, 1 de abril de 2016

Voltaire - Pensamento Histórico e Prática Historiográfica

François-Marie Arouet.

François-Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire (1694-1778), foi um dos mais importantes sábios de sua época, atuando nas áreas da Filosofia, epistolografia (escrita de cartas), dramaturgia, história e escrita de ensaios. O seu lado historiador é pouco conhecido por causa de uma cultura escolar que evidencia apenas o seu conhecimento filosófico, esquecendo como esse autor iluminista foi um dos historiadores mais talentosos do século XVIII.

O interessante em Voltaire é que este, diferente de seu contemporâneo Gibbon, teve uma produção histórica diversificada, indo desde o tema de grandes personagens (História de Carlos XII da Suécia, História de Pedro, o Grande da Rússia e O século de Luís XIV); passando pela escrita de cartas; e a construção de uma História Universal. Essa diversidade exige um exame delicado dessas obras, para que, através de uma síntese, seja feita a análise de seu pensamento historiográfico.

Tema de grandes personagens: Escrever sobre monarcas é um dos gêneros mais antigos entre os historiadores. Cortesãos criavam uma aura quase mística sobre essas personagens, pendendo mais para o lado fabuloso e bajulatório, registrando fatos da vida particular (na maioria das vezes, sem utilidade alguma). Voltaire inova esse gênero ao registrar fatos grandiosos, que trouxeram efeitos para seus respectivos reinos, e exemplos para se seguir ou não. Carlos XII, que, depois de uma insaciável sede de conquista foi derrotado, serve de exemplo para a “cura” da ambição. Pedro, o Grande da Rússia, é o civilizador de seu reino, introdutor das artes, das ciências, das leis e bons costumes no seu país que ainda tinha características bárbaras. Em O Grande Século de Luís XIV Voltaire apresenta o reinado desse monarca francês como um dos quatro grandes séculos da humanidade (Felipe e Alexandre, na Grécia; Augusto, em Roma; o Renascimento, na Itália; e, por último, a França de Luís XIV). O patrocínio das artes, a construção de academias, instituições científicas, manufaturas e outras tecnologias, são marcas civilizatórias. É no grande século que temos a concepção de filosofia da História e tempo de Voltaire: Particular e original, o autor acredita que a humanidade tende a avançar e se aperfeiçoar culturalmente, mas também afirma que recaídas na barbárie podem ocorrer.

A História, para nosso autor, é um conjunto dos desenvolvimentos produzidos pelo homem nas artes, ciências e técnicas; de transformações espirituais e morais. É uma concepção cultural da história humana. Diferente da ideia de Gibbon, que afirmava que a natureza humana era imutável, Voltaire acreditava que esta poderia mudar através de uma série de fatores (costumes, leis, religião etc). Assim como a época de Luís XIV teve seu apogeu, ela termina em declínio, com a perseguição aos protestantes e a repressão aos jansenistas.

As Cartas Filosóficas: As Cartas Filosóficas ou Cartas sobre os Ingleses, produzidas quando o autor estava exilado na Inglaterra, trazem três elementos fundamentais na vida e na abordagem histórica de Voltaire: tolerância, liberdade e diversidade. Na Inglaterra conviviam em paz diferentes religiões, diferente da França, onde reinavam as perseguições religiosas. A tolerância abria espaço para a superioridade da cultura inglesa em relação à francesa. A maior parte das cartas é dedicada às religiões dos ingleses, e as outras abordam o comércio, as artes, o governo, a ciência e a Filosofia. A liberdade que os ingleses têm aos escolher sua crença, a monarquia constitucional, que limita os poderes do monarca e a ilustração desse dirigente garantem a superioridade desse país.

As comparações entre as instituições romanas e inglesas fazem Voltaire afirmar que a tendência da humanidade é o progresso, e que esta não deve tomar a Antiguidade como referencial.

O Ensaio sobre os Costumes: É nessa obra, produzida em um trabalho de mais de 30 anos, que Voltaire apresenta uma história genuinamente universal. Sua História começa pela China, passa pelo Extremo Oriente, Ásia, África e a América. Ele começa pelas civilizações orientais afirmando que os historiadores cristãos ou não conseguiam dar conta delas ou, quando o faziam, cometiam erros grosseiros. Na abordagem das nações, Voltaire, por meio da reflexão filosófica, distingue o que é verossímil do que é lenda ou fábula. As fontes materiais devem ser analisadas sob a filosofia. Os relatos de viagem que chegavam do novo mundo eram um prato cheio para os intelectuais, que logo tratavam de comparar sua sociedade com essas que eram descobertas. O Ensaio também a marcado pelas comparações, críticas e diferenças entre culturas, mas sempre lembrando que Voltaire não era um relativista cultural.

Por exemplo, ao elogiar a evolução dos chineses na Antiguidade, o desenvolvimento de suas artes e tecnologias, Voltaire logo se lembra que, por mais que tenha sido grandiosos no passado, esse povo se encontrava, agora, parado no tempo. Por mais que se elogiassem outras sociedades, as grandes eras de Voltaire eram todas europeias (Grega, Romana, Italiana e Francesa). As críticas se dirigiam em peso às superstições, fé cega e religiões dominantes (tanto do lado europeu quanto do asiático), que, assim como eram para Gibbon, em Voltaire são exemplos da barbárie.

Filosofia da História: A Filosofia da História, em Voltaire, tem dois sentidos: o primeiro, é uma forma de conceber o processo histórico; o outro, um modo de reconstituir esse processo para os leitores do presente. A Filosofia age como instrumento de reflexão sobre a História e também como um conjunto de normas para a reconstituição do material historiográfico. A Filosofia da História é um ensaio sobre o mundo Antigo e sobre o que se produziu sobre ele. Voltaire ataca as concepções religiosas que fizeram da história das nações (muitas obras analisavam, dentro da matriz cristã, o povo hebreu e seu Deus como o centro dos acontecimentos), e também os mitos, lendas e fábulas dos outros povos, geralmente tomados como reais.

Feito este breve panorama sobre sua produção historiográfica, pode-se agora elencar seus principais elementos:

Voltaire, escritor do século XVIII, é um defensor do direito, da liberdade de pensamento, da pluralidade e da tolerância; crítico ferrenho do fanatismo e superstição, presentes por ele nos dogmatismos de uma autoridade maior (Igreja Católica) e em crenças sem fundamento. Somente a reflexão filosófica pode superar as superstições e dogmatismos. Voltaire era deísta, acreditava na existência de um Deus, pois este daria um sentido a realidade. O que esse autor quer, como ele mesmo afirma, é uma religião simples e uma fé racional. Era um crítico do otimismo, de que o homem sempre caminha em direção ao melhor, e acreditava que períodos de barbárie poderiam voltar. Tomar a Antiguidade como exemplo não é aceitável, pois está impregnado de mitos, lendas e histórias fabulosas que atrapalham o processo histórico. O poder político não é algo ruim, desde que esse se oriente pela razão, evitando dogmatismos. A Historiografia de Voltaire é crítica, secularizada, cultural e filosófica.


FONTES:

SOUZA, Maria das Graças de. Ilustração e história: o pensamento sobre a história no Iluminismo francês. São Paulo, Discurso Editorial, 2001.

LOPES, Marcos Antônio. Ideias de História: tradição e inovação de Maquiavel a Herder. Londrina, EDUEL, 2007.



Este texto contou com a contribuição do acadêmico do curso de História na UFAM Wilton Abrahim Gomes Garcez.


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quarta-feira, 30 de março de 2016

Giambattista Vico - Pensamento Histórico e Prática Historiográfica

Giambattista Vico. Quadro de Francesco Solimena.

Giambattista Vico (1668-1744) foi um filósofo, jurista, político, retórico e historiador italiano, considerado um dos principais nomes do Iluminismo, vindo, no entanto, a ser reconhecido como tal apenas no século XIX, quando suas ideias e obras passaram a influenciar pensadores como Hegel e Marx.

Vico nasceu no século XVII, período em que as ciências matemáticas estavam em alta e dominavam o pensamento de intelectuais das Ciências Naturais. Desde a segunda metade do século XVII, a Filosofia criada por René Descartes foi o principal referencial no estudo dessas ciências. Mas no que consistia o pensamento de Descartes? Para René Descartes a única verdade firme, certa e segura era que seus pensamentos existiam (penso, logo existo) e esta verdade deveria ser aplicada como princípio básico de toda a sua filosofia. Este penso abrange tudo o que afirmamos, negamos, sentimos, imaginamos, cremos e sonhamos. Eram ignoradas as percepções sensoriais, que poderiam nos levar ao erro. O conhecimento verdadeiro só poderia ser alcançado através do trabalho lógico da mente, trabalho esse que para Descartes teria sido alcançado pelos matemáticos.

Indo na contramão do domínio matemático, Vico se debruçou no estudo de Direito Romano, Filologia e História, conhecimentos sempre postos à dúvida pelos métodos matemáticos, que os colocava em segundo plano. Sua maior obra, a Ciência Nova, não fez muito sucesso em sua época, sendo preciso mais 100 anos para que isso ocorresse. Dela, tiramos as principais concepções de Vico sobre a História:

Ao escrever Ciência Nova, Vico pretendia criar uma forma de estudar as Ciências Humanas, principalmente a História, forma essa diferente da aplicada às Ciências Naturais. A História, para Vico, era um conjunto de fatos que segue determinadas leis e se desenvolve segundo alguns princípios.

Vico põe Filosofia e Filologia como duas disciplinas da História. Da primeira, aproveita-se a reflexão, as ideias e a sabedoria humana. Da segunda, tiramos o conhecimento da língua e das tradições dos povos. A união entre essas duas disciplinas (uma reflexiva e outra empírica) é um dos pontos-chave de sua obra. Em síntese, a Filosofia oferece o arcabouço teórico, e a Filologia o concreto, tangível, fragmentos das produções humanas. Vico, em oposição a Descartes, afirma que para verdadeiramente se conhecer algo é necessário que seu conhecedor a tenha criado. As instituições, construções, leis e demais técnicas foram criadas pelo homem, e logo a História é objeto do conhecimento humano.

Os períodos históricos ou eras são outro ponto do pensamento de Vico. Existem três eras históricas: a Era dos Deuses; a Era dos Heróis; e a Era dos Homens. A Era dos Deuses corresponde ao tempo imemorável, quando os homens, diante da grandeza da natureza, a endeusavam. A segunda era, a dos Heróis, ainda mantém os traços de aspectos sobrenaturais, mas já abre espaço para o surgimento de instituições políticas e a formação de classes sociais. A terceira e última, a dos Homens, levou bastante tempo para se firmar, e se caracteriza por lutas internas, pela construção de Impérios grandiosos como o romano e do surgimento da Filosofia.

Vico afirma que o homem não caminha necessariamente para o progresso do pensamento racional, e que o retorno ao pensamento da era dos deuses é uma possibilidade. Um exemplo que ele nos dá é a decadência cultural durante a Idade Média. Essa é a teoria dos avanços e dos retornos, também presente em Voltaire. O movimento cíclico não é circular e de fases fixas, é, na verdade, espiral, pois as fases históricas nunca se repetem como foram no passado. Ele afirma que as barbáries da Idade Média foram diferentes das barbáries dos tempos homéricos.

A providência existe em Vico, e este afirma que a História tem uma parte construída pelo homem, e outra por Deus. Deus seria o arquiteto da História, enquanto o homem seria o construtor dessa obra (um projeta, o outro constrói). Essa providência é mais racional que as elaboradas em séculos anteriores, pois as religiões, leis, instituições, construções etc, são criações essencialmente humanas, podendo ser explicadas de forma natural. A Providência surge apenas para dar um sentido à caminhada do homem em sua história.

A produção histórica de Vico se destaca pelos seguintes pontos: Foi o primeiro historiador da Idade Moderna a tentar garantir a cientificidade da História e de outras disciplinas humanas; não se submete aos métodos matemáticos e cartesianos; une a reflexão filosófica, oferecendo um arcabouço teórico, com o empirismo característico da Filologia, que estuda os fragmentos e linguagens deixados pelo homem; e leva em conta, de forma universal, o fato de que o homem, de acordo com o seu grau de desenvolvimento histórico, tem sua forma de ser, pensar e agir.


FONTES:

HADDOCK. B. A. Uma introdução ao pensamento Histórico. Tradução de Maria Branco. Lisboa, Gradiva, 1989.

MARANGON, Rosa Maria. A evolução da História do Homem segundo Giambattista Vico. Juiz de Fora, UFJF, 2007.



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Edward Gibbon - Pensamento Histórico e Prática Historiográfica

Edward Gibbon (1737-1794).

Edward Gibbon (1737-1794), historiador inglês autor de História do Declínio e Queda do Império Romano, foi um dos maiores representantes do período das “luzes” inglesas. No que foi abordado sobre sua obra, referente ao papel do Cristianismo no processo de declínio e queda do Império Romano, pode-se fazer a seguinte análise sobre seu pensamento e produção historiográfica:

Mais do que se debruçar sobre o Império Romano e sua queda, e o papel do Cristianismo nesse processo, Gibbon, dentro do espírito filosófico característico das letras no século XVIII, traz em sua obra a reflexão sobre a religião na época dos romanos e como esta se encontrava no tempo em que vivia, fazendo uma ponte entre o mundo antigo e o moderno.

Superstições, milagres e outros eventos explicados de forma sobrenatural, são por ele motivos de crítica. Não só a superstição cristã, mas o paganismo também é visto por Gibbon com maus olhos, por suas práticas como adivinhações, sacrifícios e prostituição. Fé cega, espírito crítico, natureza humana e religião são conceitos para ele opostos. Contra o “mundo” sobrenatural o autor busca explicações naturais, físicas e racionais.

Constantino, uma das principais personagens para a Igreja, é analisado por Gibbon, assim como a Apostasia de Juliano e o culto dos santos, das relíquias e o movimento monástico. No que se refere a Constantino, Gibbon inicia sua análise desmistificando as visões divinas sobre sua conversão; mostra as contradições entre as fontes dos primeiros séculos da Igreja (A História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia); elucida a influência dos contextos políticos, e não religiosos, nesse fato; e conclui explicando o porque da sobrevida do paganismo logo após o triunfo do Cristianismo (o autor afirma, primeiramente, que a hipocrisia, pelo fato dos cristãos passarem a perseguir seus antigos perseguidores; e logo depois, as disputas entre cristãos partidários, são as principais causas).

Ao abordar Juliano, o Apóstata, único imperador romano que abandonou o Cristianismo e voltou ao Paganismo, e apresentar as causas para essa reconversão, Gibbon parece exprimir na figura desse imperador suas próprias experiências pessoais: insubmissão, gosto pela liberdade, denuncia da hipocrisia religiosa, interesse por disputas religiosas e uma má administração da autoridade religiosa. Gibbon deixa evidente seu gosto pela Mitologia Grega, afirmando que a religião dos antigos permitia que seus seguidores “dosassem” sua fé. A tolerância de Juliano e sua aversão à violência são elogiados, enquanto o excesso dos cultos pagãos, com seus sacrifícios e adivinhações, são criticados. A superstição, cristã ou pagã, é uma ameaça ao pensamento crítico do Iluminismo.

Depois da Apostasia de Juliano o autor aborda o culto dos santos e das relíquias, que, para ele, do reino de Constantino à Reforma de Lutero (século 4 d.C. ao século 16 d.C.), vem sendo um problema, pois a Igreja, vendo a possibilidade de lucrar, começa a produzir relíquias em grande quantidade e, na maioria das vezes, falsas. A destruição de antigos templos pagãos, a conversão forçada de judeus e os milagres são motivos de lamentação e crítica.

Por último, a barbárie representada pela religião cristã mostra sua pior forma, para Gibbon, no movimento monástico. Os monges, em nome de uma religião, se privam de liberdade, de modos e de qualquer sinal de pensamento racional e reflexivo. Gibbon nutre grande aversão por essas personagens, que considera escravas de regras inflexíveis. O elogio aos mosteiros surge quando ele relata que estes locais, ao recuperar e copiar obras antigas como as de Cícero e Tito Lívio, nas línguas grega e latina, contribuíram para o letramento dos povos bárbaros.

Depois dessa breve elucidação sobre parte da obra História do Declínio e Queda do Império Romano, é preciso levar em conta, para compreender o pensamento histórico e produção historiográfica de Gibbon, sua posição social e o contexto no qual viveu:

Edward Gibbon, burguês liberal da Inglaterra setecentista, preza a liberdade de pensamento, a tolerância, o espírito crítico e o convívio social. A análise histórica e humana da religião é uma continuidade da história natural da religião, inaugurada pelo filósofo e historiador britânico David Hume. O espírito filosófico de Gibbon é evidente quando este, ao abordar as querelas religiosas dos antigos, faz a reflexão para sua época e experiência pessoal (controvérsias de Oxford). Gibbon é um polemista, e suas críticas são dirigidas ao extremismo, fé cega, hipocrisia (os cristãos que antes eram perseguidos se tornaram os novos perseguidores) e à autoridade religiosa (Igreja Católica) que minava os direitos civis. Ele era um cético, e aproveitava as oportunidades de tecer críticas ao Cristianismo e, em certa medida, ao paganismo. A verdade, para esse autor, é relativa, e a natureza humana é fixa e imutável. A novidade na produção historiográfica de Gibbon fica no seu exame crítico das fontes primárias, na leitura do Cristianismo como fator influenciador para a queda do Império, na contextualização e visão abrangente dos eventos e sua importância para a história.


''A História, esse quadro terrível dos crimes, das perversidades e das desgraças do gênero humano''  - Edward Gibbon.



FONTES:

LOPES, Marcos Antônio. Ideias de História: tradição e inovação de Maquiavel a Herder. Londrina, EDUEL, 2007.


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nndb.com



quarta-feira, 23 de março de 2016

A Fundação de Roma segundo Tito Lívio e Eutrópio

Rômulo e Remo. Pintura de Peter Paul Rubens, 1614-1616.

As cidades mais antigas do mundo, fundadas por civilizações que se mostraram grandiosas em seus feitos, tem suas origens incertas e envoltas em um mar de mitos e lendas. As incertezas, somadas ao fantástico, instigam pesquisadores como arqueólogos, antropólogos, historiadores e outros profissionais das áreas Humanas. Quem foram Rômulo e Remo, personagens amamentadas por uma loba? Seriam apenas figuras mitológicas ou de fato existiram? Autores antigos já debruçavam sobre essas questões. Para esse texto escolhi as versões de dois historiadores clássicos: Os romanos Flavius Eutrópio (século IV d.C.) e Tito Lívio (59 a.C. - 17 d.C.).

Em Desde a Fundação da cidade, obra densa que originalmente possuía 142 livros, dos quais restaram apenas 35, Tito Lívio, como diz o título do livro, registra a história de Roma desde sua fundação, em algum momento de 753 a.C. até o século I d.C. Tito Lívio exalta os valores do passado romano, decadentes depois de um longo período de guerras civis, e dá grande atenção aos mitos e lendas do Império, considerados por ele dignos de serem preservados.

''Conta-se que o primeiro agouro apareceu a Remo: eram seis abutres. Acabava de ser anunciado, quando Rômulo viu doze deles, e ambos foram proclamados reis por seus partidários. Um baseava suas pretensões na primogenitura, o outro no número das aves. Durante o debate que seguiu, sua cólera, aumentada pela resistência, ensanguentou a disputa. Em meio à desordem, Remo, ferido, cai morto. Uma tradição mais corrente relata que Remo, para insultar seu irmão, saltara as novas muralhas e que Rômulo, no arrebatamento da fúria, matou-o, dizendo: “Assim há de morrer aquele que transpor minhas muralhas”. Rômulho ficou sendo, pois, o único chefe, e a nova cidade tomou o nome de seu fundador. Primeiro, ocupou-se de fortificar o monte Palatino onde fora criado; ofereceu sacrifícios aos deuses segundo o rito de Alba; apenas para Hércules, seguiu o rito grego, estabelecido por Evandro.

Conta-se que Hércules, vencedor de Gerião, conduziu para lá bois de rara beleza e que, depois de atravessar o Tibre a nado, tendo-os à frente, descansou às margens do rio para que o rebanho se refizesse nos pastos abundantes. Exausto, farto de carne e vinho, estendeu-se na relva e adormeceu. Um pastor da província, chamado Caco, temido por sua força extraordinária, foi seduzido pela beleza dos bois e decidiu tomar para si tão rica presa. Mas, trazê-los à sua caverna seria guiar para lá o dono, quando este seguisse o rasto. Ele então escolheu os mais belos e arrastou-os pelo rabo até sua habitação. Ao raiar do sol, Hércules desperta, olha seu rebanho, percebe que faltam alguns, e corre em direção à caverna vizinha para verificar se as pegadas iam para lá. Todas se afastavam dela. Não sabendo o que resolver diante desta incerteza, retirou seu rebanho desses pastos perigosos. Na hora de partir, alguns bezerros, sentindo falta das companheiras que tinha perdido, deram mugidos. Os que se encontravam no antro responderam e sua voz chamou a atenção de Hércules. Ele se precipitou em direção à caverna. Caco quis fechar o caminho, pediu em vão a ajuda dos pastores e caiu vítima da terrível clava.

Evandro, vindo do Peloponeso refugiar-se nestes lugares, tinha, sem autoridade real, grande influência; ele a devia ao conhecimento da escrita, cuja maravilha era nova para estas nações incultas e, mais ainda, à fé na divindade de sua mão Carmenta, cujas predições tinham enchido de admiração esses povos, antes da chegada da Sibila à Itália. O ajuntamento dos pastores curiosos, em torno do estrangeiro culpado de um assassínio manifesto, chamou a atenção de Evandro, o qual se informa do fato e das causas que o trouxeram até aí; depois, considerando a estatura acima do normal, os traços nobres, ele pergunta ao herói quem é. Quando soube seu nome, o de seu pai e de sua pátria, disse: “Filho de Júpiter, Hércules, te saúdo. Minha mãe, infalível intérprete dos deuses, me predisse que tu devias assentar-se entre os habitantes do céu. A ti, a mais poderosa nação do mundo deve consagrar, neste mesmo lugar, um altar, que se chamará de maior, do qual fixarás o culto”. Hércules estendeu-lhe a mão, dizendo que aceitava o agouro e que, para seguir o decreto do destino, ia erguer e consagrar o altar. Escolhe o bezerro mais belo do rebanho e o primeiro sacrifício é oferecido à Hércules.

Os Potícios e os Pinários, as duas famílias mais ilustres da província, assistiram à cerimônia e ao festim. Aconteceu que os Potícios chegaram a tempo, e a carne da vítima lhes foi servida. Os Pinários só chegaram quando esta foi consumida e tomaram parte no final do festim. Vem daí o costume, conservado até a extinção da família Pinário, que lhe proibia a carne das vítimas imoladas. Os Potícios, instruídos por Hércules, foram durante vários séculos os ministros desse culto; mas, quando encarregaram os escravos públicos destas funções confiadas exclusivamente à sua família, todos pereceram. Tal culto foi o único que Rômulo imitou dos estrangeiros: já naquele tempo, ele aplaudia a virtude da imortalidade, para a qual seu destino conduzia.

Terminadas as cerimônias religiosas, ele reuniu numa assembleia geral a multidão que só os liames das leis podiam unir e ditou-lhe as suas; mas, persuadido de que convinha, para merecer o respeito desses homens grosseiros, engrandecer-se a si mesmo com as insígnias do poder, entre outras marcas exteriores de sua potência, elegeu doze litores. Acredita-se que ele escolheu este número por causa das aves que lhe tinham anunciado o império; mas sou da opinião dos que pensam que imitou os etruscos, seus vizinhos, a quem devemos as ordenanças e os outros oficiais, as cadeiras curules e a toga pretexta: nos etruscos, o número era de doze, porque doze povos elegiam em comum um rei, ao qual cada um dava um litor.

No entanto, a cidade crescia: estendia-se cada dia, devido mas às esperanças do fundador do que à população atual. Mas, para concretizar essa grandeza, para atrair as multidões, fiel à política dos fundadores de cidade que, aliciando homens ignorantes e desconhecidos, pretendem que a terra conceba cidadãos, Rômulo abriu um asilo no lugar hoje cercado, que se encontra na descida do Capitólio, nos bosques sagrados. A novidade logo atraiu uma multidão de homens livres e de escravos. Assim se deu o primeiro passo para a potência da qual se lançavam os alicerces. Satisfeito com suas forças, Rômulo escolheu os meios para usá-las. Elege cem senadores; este número pareceu-lhe suficiente, ou talvez encontrasse apenas cem personagens dignos desse título. Receberam o nome honorífico de pais e seus descendentes o de patrícios''.

TITO LÍVIO, I, VII-VIII.

Na versão de Tito Lívio, devemos perceber o seguinte: Os agouros, bons ou maus, previsões e superstições são uma das principais marcas da escrita de Lívio. Ele exalta a figura de Rômulo e a predestinação da cidade, que nasceu para se tornar grande e poderosa. Os mitos, importantes para ele, são usados de forma mais densa que em Eutrópio. A menção aos etruscos é um dos aspectos históricos mais importantes, pois se sabe, através de pesquisas arqueológicas e históricas, que estes tinham 12 cidades, que se uniam em uma confederação; e que alguns dos primeiros reis romanos eram de origem etrusca. Os patrícios constituíam a aristocracia romana, e os litores eram funcionários públicos que escoltavam os magistrados curules.

O segundo autor, Eutrópio, viveu na segunda metade do século IV de nossa era, e desempenhou o cargo de secretário em Constantinopla. Sua principal obra, Breviário de História Romana, dedicada ao imperador Flávio Júlio Valente (imperador de 364 d.C. a 378 d.C.) é um compêndio sobre a história da cidade desde sua fundação até o início da administração de Valente. Escrito de forma simples e concisa, sem espaço para técnicas de embelezamento estilístico, o Breviário é dividido em 10 livros, que informam os principais fatos da história romana e as campanhas militares no exterior.

"O Império Romano, de início talvez o mais fraco e que se tornou, por suas conquistas, o Estado mais poderoso que jamais existiu na face da terra, tem sua origem em Rômulo, filho de uma sacerdotisa de Vesta e, ao que se acredita, de Marte.

Rômulo nasceu com Remo, seu irmão gêmeo. Depois de viver entre os pastores, as armas sempre na mão, aos dezoito anos ele ergue uma pequena cidade no monte Palatino, no dia onze das calendas de maio, durante o terceiro ano da sexta olimpíada, cerca de trezentos e noventa e quatro anos após a ruína de Tróia, segundo as tradições mais ou menos exatas dos historiadores.

Após fundar a cidade, que chamou Roma, no que tirou do seu, faz o que se segue: recebeu, na nova cidade, todos seus vizinhos; escolheu cem dos mais velhos para que o aconselhassem em todas suas ações; deu-lhes o nome de senadores, por causa de sua idade avançada. Mas, como ele e seu povo não tinham mulheres, convidou para os jogos as nações vizinhas de Roma e mandou raptar as moças. Este ultraje logo provou guerras; os ceninenses, os antenates, os crustuminenses, os sabinos, os fidenates e os veientanos, cujas cidades estavam ao redor de Roma, foram vencidos. E, tendo Rômulo desaparecido durante uma súbita tempestade – após um reinado de trinta e seis anos - , acreditou-se que tinha sido recebido no céu: foram-lhe rendidas as honras da apoteose".

EUTRÓPIO, I, 1-2.

Da versão de Eutrópio retiramos os seguintes pontos: Primeiro, o autor cita os pais de Rômulo e Remo, Reia Silva, uma vestal, e Marte, Deus da Guerra; segundo, o monte Palatino, onde foi erguida, por Rômulo, uma pequena cidade. De fato, existem ruínas romanas nesse lugar, algumas datando dos séculos VI e IV a.C., o que atesta essa parte do relato. Terceiro, é citada uma instituição criada nos anos iniciais da expansão romana (o Senado); quarto, são mencionados os povos que viviam ao redor da cidade, povos esses mais tarde conquistados pelos romanos; e, por último, temos uma segunda versão do fim da vida de Rômulo: Após uma tempestade criada por seu pai, Marte, ele ascende aos céus na posição de divindade. Outra versão conta que este foi assassinado em uma conspiração do Senado. Diferente de Tito Lívio, que exalta a superioridade de Roma, Eutrópio mantém uma posição neutra em relação ao Império.

Depois dessa breve análise de duas versões (as duas com elementos míticos e também históricos) sobre a fundação da cidade de Roma, percebemos que as histórias antigas são uma importante fonte para a reconstrução do passado. Devemos, claro, entender a influência que o fantástico tinha na vida desses autores, como em Tito Lívio, que dele tirava exemplos morais. Com uma análise crítica, cuidadosa e com total expurgo de anacronismos, temos materiais que, auxiliados por outras fontes, constituem mais um passo ao preenchimento de lacunas tão antigas quanto essas civilizações.


FONTES:

Textos de Eutrópio e Tito Lívio: PINSKY, Jaime. 100 Textos e Documentos de História Antiga. 4° ed. São Paulo: Contexto, 1988.

EUTROPIO, AURELIO VÍCTOR. Breviario Libros Cesares. Madrid: Biblioteca Clásica Gredos, vol. 261, 1999.

SHOTWELL, James T. Historia de la Historia en el mundo antiguo. Ciudad de Mexico, Fondo de Cultura Económica, traducción de Ramón Iglesa, 1982.


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segunda-feira, 21 de março de 2016

Cornélio Tácito - Obras, metodologia e linguagem

Cornelius Tacitus. Ilustração retirada do livro The Book of History: A History of all nations from the earliest times to the present. Nova York, 1920.


O mundo romano deixou um importante legado cultural para a posteridade. Aliás, essas duas palavras, “legado” e “posteridade”, eram frequentemente utilizadas por intelectuais das mais diversas áreas do conhecimento na Antiguidade Clássica. Eles viam na política e na ação de grandes líderes exemplos morais e éticos que deveriam ser registrados e transmitidos para os mais jovens. Figuras excêntricas e corruptas também serviam de exemplo para o que não deveria ser imitado. É a partir da Roma dos imperadores que Cornélio Tácito (55 d.C. - 120 d.C.), orador e politico, irá se mostrar um dos historiadores mais talentosos de sua época.

Das obras de Tácito que chegaram aos nossos dias fragmentadas e com lacunas quase impreenchíveis, temos como mais conhecidas os Anais, a Germânia, Histórias e Diálogos dos Oradores. Sem o trabalho dos monges copitas da Idade Média e dos sábios da Renascença, o conhecimento parcial dessas obras teria sido impossível. Tácito tem uma percepção crítica das transformações do mundo a sua volta, expressando essas observações na obra Diálogos dos Oradores, onde registra como a prática da oratória estava em declínio e a defende como elemento essencial na formação pedagógica, filosófica e política.

No campo etnográfico Tácito produziu Sobre a vida e o caráter de Agrícola ou Agrícola; e Germânia. A primeira, escrita no final do século I, é um elogio biográfico a seu sogro, Cneo Júlio Agrícola, militar e governador da Britânia entre 77 d.C. e 84 d.C. Em Agrícola o autor faz observações sobre os hábitos e costumes dos povos da Britânia e descreve o local. Germânia é mais densa, trazendo em seu interior a descrição dos diversos povos bárbaros que habitavam essa região e informações sobre relevo, hidrografia, clima etc. Curioso é o fato de que Tácito jamais pôs os pés na Germânia, nos levando a acreditar que possivelmente utilizou para a produção desse livro informações de autores como Plínio, o Velho; Estrabão; Diodoro Sículo; Posidonio; e também os relatos de comerciantes e militares que estiveram no local.

A partir de agora, com a análise das obras Anais e Histórias, compreenderemos a metodologia empregada por Tácito, sua linguagem e as principais características de sua produção historiográfica.

Os Anais, escritos entre os principados de Trajano e Tibério, compreendem um período de 54 anos, de 14-68 d.C. e chegaram até os dias de hoje representados pelos livros I a IV; parte do V ao VI; metade do XI, do XII até metade do livro XVI (1). Foram perdidos os livros sobre o reinado de Calígula e parte dos reinados de Cláudio e Nero.

Parte do que restou dos Anais, quando não aborda as campanhas romanas na Pártia, Macedônia, Armênia, Britânia e Germânia, se concentra na relação entre os imperadores e o Senado; e, com um tom moralizante, próprio de Tácito, registra as virtudes e os vícios dessas figuras. Como fontes para seu trabalho Tácito utilizou o depoimento de testemunhas oculares, as memórias deixadas pelos imperadores Cláudio e Tibério e, na posição de senador, as atas publicadas no Senado. Nessa obra a Germânia figura como principal ameaça para as fronteiras do Império.

Quanto ao estilo e linguagem dessa obra, o idioma utilizado é o latim, e Tácito utiliza normas gramaticais que lembram o estilo literário de Cícero. São frequentes elipses, persuasão oratória, ironias, circunlóquios e dicções léxicas. Até o livro 13, a prosa de Tácito é concisa; tornando-se, a partir desse livro, mais rica e trabalhada. A descrição poética da expedição de Germânico na Alemanha nos remete ao estilo do poeta Virgílio. O tratamento dado às personagens desse trabalho sempre vem acompanhado de metáforas e ambiguidades (virtudes e vícios). Tácito cita discursos curtos e indiretos.

Historias, escrito no início do século II, começa após a morte de Nero, em 68 d.C. e cobre o conturbado período de 69-70 d.C. Originalmente, a abordagem englobaria todo o século I, mas o restante se perdeu com o tempo. O ano 69 foi marcado por guerras civis travadas entre quatro imperadores: Oto, Galba, Vitélio e Vespasiano, que lutavam pelo trono romano. Nesta obra, percebemos como Tácito é adepto do regime republicano, lamentando como a cultura política decaiu com a ascensão do poder imperial, com valores morais em decadência, luxúria, corrupção e indisciplina em excesso.

Por ser uma história contemporânea, da qual Tácito presenciou durante a adolescência e a vida adulta parte dos fatos, a prosa é rápida e não possui espaço para uma escrita mais refinada. Na descrição das personagens, o autor revela a influência de Salústio, utilizando incongruências, sequências de frases justapostas e estilo livre. Ainda temos aspectos das relações dos romanos com os bárbaros, mas o que realmente domina a narrativa são as ações políticas do Império.

O autor tem respeito pelas fontes (relatos de testemunhas), não fazendo sobre elas juízos de valor, deixando claro que “Ao narrar estes fatos, nada invento ou encareço, exponho apenas o que li e o que ouvi dos mais velhos” (XI. 27).

O Senado, local onde trabalhou, é descrito através de sátiras que revelam como aquele poder estava impregnado de uma aura de calunia, corrupção, parasitismo e mentiras. Em um período marcado por assassinatos e outras formas de ataques, Tácito temia a tirania imperial, sempre vigilante e violenta contra críticos e opositores.

Roma, a cidade eterna, sofre com a imoralidade de seu povo. A ideia de declínio moral em Tácito, apesar de bastante presente em suas obras, não é tão grave como em autores anteriores; e este acredita que os hábitos podem mudar naturalmente através de ciclos. Em aspectos religiosos, o autor afirma que os deuses eram indiferentes com a tranquilidade, mas estavam sempre preparados para punir os homens (2). Era hostil em relação à história e religião judaicas, e considerava o Cristianismo uma perigosa superstição.

Cornélio Tácito foi apreciado durante o humanismo renascentista como um exemplo de historiador político, pois assim como no Império do ano 69, a Europa passava por momentos conturbados. A tirania do Estado, representado pela figura do imperador; a corrupção instalada no Senado; e os vícios que tomaram conta de Roma, são denunciados pelo autor, que mesmo mostrando uma certa tristeza pela decadência iniciada com o fim da república, sabe reconhecer os bons exemplos e exceções da época em que estava vivendo. A História, para Tácito, era um instrumento que preservava os bons exemplos e denunciava o que deveria ser evitado.



NOTAS:

(1) MARQUES, Juliana Bastos. Estruturas narrativas nos Anais de Tácito. Revista História da Historiografia, RJ/MG, UNIRIO e UFOP . p.45.

(2) BURROW, John. Uma História das Histórias. De Heródoto e Tucídides ao Século XX. Rio de Janeiro/São Paulo, Record, tradução de Nona Vaz de Castro, 2013. p. 174.

FONTES:


SHOTWELL, James T. Historia de la Historia em el mundo antiguo. Ciudad de Mexico, Fondo de Cultura Económica, traducción de Ramón Iglesa, 1982.


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quinta-feira, 17 de março de 2016

Breve História do bairro de Adrianópolis

Por Roberto Mendonça

Cartão postal  Bairro de Adrianópolis, da empresa A Favorita, dos anos 1950-60.

Na manhã do primeiro dia de 1912 ocorre a inauguração da Vila Municipal, cujo projeto urbanístico, ideado pelo prefeito Arthur César Moreira de Araújo, fora aprovado pela Lei (Municipal) n°. 218, de 30 de maio de 1901. Aprova o ato do superintendente no que diz respeito à Vila Municipal, bem como o projeto apresentado. Autoriza a aforar os terrenos municipais no bairro do Mocó. Estabelecer o foro e demais despesas a cobrar-se. No decurso da festividade, é celebrada uma missa comemorativa por monsenhor Fonseca Coutinho, vice-governador, na Praça Silvério Nery, hoje de Nossa Senhora de Nazaré. Bem que este bairro foi projetado para abrigar a elite citadina. Levou algum tempo, mas alcançou a aspiração de seu idealizador. Nas décadas 1970-80, o bairro já identificado por Adrianópolis, serviu de referência para as melhores residências.

Como assegura a norma legal, o projeto pertence ao prefeito Arthur Araújo, tenente engenheiro militar, que desembarcou na Metrópole da Borracha no final do século XIX, em 1896, posto à disposição do governador Fileto Pires (também tenente do Exército), para comandar o 2° Batalhão do Regimento Militar do Estado, a PMAM de nossos dias.

Por ocasião da Campanha de Canudos (1897), assistiu ao colega Cândido Mariano seguir no comando da tropa amazonense contra Antonio "Conselheiro", e, diante do impedimento do capitão Cordeiro Júnior, teve a oportunidade de comandar o Regimento. Arthur demitiu-se do Exército, para melhor exercer diversas funções públicas no Estado. Dessa maneira, esteve à frente da Municipalidade manauara entre 1898 e janeiro de 1902, sucedido pelo coronel Adolpho Lisboa, a quem a Vila Municipal deve em sua fase de implantação uma compreensível dedicação.

A Vila Municipal foi instalada em terras do patrimônio municipal situadas no denominado bairro do Mocó (em referência ao Reservatório) ou de São João (em homenagem ao orago do cemitério). O terreno de cerca de 431.148 m² havia sido adquirido pelo governo ao capitão-de-mar-e-guerra Nuno Alves Pereira de Mello Cardoso, e se destinava à construção de uma penitenciária, a mesma que resultou edificada na avenida Sete de Setembro. O terreno então foi cedido pelo governador Silvério Nery (mais um tenente que optou pela vida civil), autorizado pelo Decreto n°. 520, de 26 de setembro de 1901. A expansão da Vila Municipal ainda recebeu um acréscimo de terrenos, comprados a João Miguel Ribas (mais outro oficial, este se converteu em negociante).

O esforço urbanístico do governo em benefício da capital parecia ter se esgotado com Eduardo Ribeiro. Manaus limitava-se ao Norte pelo Boulevard Amazonas (agora de Álvaro Maia) e o Cemitério de São João Batista. A instalação da Vila Municipal visava expandir a cidade, convertendo aquele "espaço ermo e despovoado em um logradouro", aprazível, dotado de moradias de elevado conforto e de bela aparência, e mais, dotado de infra-estrutura básica adequada à Belle Époque manauara. Nesse sentido, a Lei n°. 239, de 30 de novembro de 1901, regula a construção das residências. O obstáculo crucial, porém, constituía-se em atrair para acolá residentes endinheirados, para superá-lo, primeiramente foram realizados o arruamento e o traçado das ruas pelo engenheiro Lo Gonçalves Bastos Neto, secundado pelo colega Antônio Paiva e Melo. Seguidamente, por deliberação da Lei n°. 243, de 12 de dezembro de 1901, foram nomeadas as ruas e avenidas, todas homenageando capitais nordestinas.

A Vila Municipal prossegue recebendo incentivo dos poderes constituídos. Na data de sua inauguração, o prefeito Artur Araújo dirige a solenidade "de colocação da primeira pedra da fundação da Escola Municipal, que se realizou no lote n.°28, reservado à Municipalidade". Como não prosperou a aludida construção, o lote de terras escolhido, com área de 1.563 m² e situado no Boulevard Amazonas, "foi aforado em 6 de março de 1907" a Antônio José da Silva Júnior. Somente na noite de 2 de julho de 1921, o prefeito Franco de Sá inaugura à rua Maceió, a Escola desse bairro estabelecida pela Lei n.° 1072, de 28 de março do mesmo ano.

A despeito de tantos estímulos governamentais, uma única residência no estilo foi construída, curiosamente a de Adolpho Lisboa. Em terreno de 5.000 m², à rua São Luís, quando este exercia seu terceiro mandato à frente da Prefeitura (1905-07). Ao contrário do que relata seu contemporâneo, o mestre Bittencourt (Dicionário, 1973), o chalet mandado edificar pelo coronel Lisboa não foi titulado de Zulmira, muito menos este fora o nome de sua esposa (Laura) ou concubina. O edifício (ou Castelinho), que ainda se conserva, teve a denominação de Vila Alcida em homenagem, sim, a filha do alcaide.

Estimo que este edifício foi construído em 1906. Diversas são as razões, mas duas se destacam. O interesse desse alcaide em "melhorar a rua São Luís com a construção de passeios laterais e preparo do leito para receber calçamento", consoante vulgariza a Comissão Organizadora do Tombo dos Próprios do Município (1922). O outro argumento fundamenta-se no número de edificações, em Manaus, utilizando ferro fundido como alicerces e ornamentos. Esta matéria-prima, com seus modelos espalhados pelo mundo, sinalizou "na Amazônia da goma elástica o modismo dominado pelos ingleses". Ainda com maior visibilidade, é desse período, o edifício da Biblioteca Pública; o gradil e as entradas do Cemitério de São João Batista, e o corpo principal do Mercado Público, cujos alicerces de ferro fundido foram fabricados pela empresa Walter MacFarlane, de Glasgow (Escócia).

Foi nesse período que Adolpho Lisboa se empenhou na implantação do bairro. Promove o aforamento da área, dando prioridade aos lotes da rua Belém e do Boulevard Amazonas. Consulta ao Livro n.° 2 de Aforamento (1906-1924) da Prefeitura Municipal de Manaus (PMM), permite viabilizar um panorama dos aforamentos. Alguns lotes concedidos a privilegiados denotam a influência das amizades, das camaradagens que perpassam esse tipo de empreendimento público. Em 1907, Adolpho Lisboa deixa a gestão da Municipalidade, da cidade de Manaus, mas deixa igualmente questões, pessoais em julgamento pelo Judiciário.

Mas a Vila Municipal não perdeu seu ímpeto. Nenhum prefeito pós-Lisboa deixou de conceder aforamento no bairro, ou impediu o avanço dos recursos da modernidade, como a instalação de água, de luz elétrica, da linha de bondes e do Prado Amazonense. Ao contrário, em 1909, a praça situada em frente ao Reservatório do Mocó recebe a denominação de Praça Chile, mediante a Lei n.° 547, de 22 de maio. Em 1920, o prefeito Basílio Torreão Franco de Sá faz colocar duas placas comemorativas na praça, com as armas e o nome daquela República, as quais sumiram com o desfiguramento desse logradouro.

Também se preocupou o prefeito Jorge de Moraes, médico conceituado. No final da tarde de 14 de outubro de 1911, presente o governador, coronel Antônio Bittencourt, de outras autoridades civis e militares "e de grande massa popular reunida na Praça Chile", o prefeito "declara inaugurada a iluminação elétrica da Vila Municipal". Outra providência marcante ocorreu em 22 de dezembro de 1911, às vésperas do Natal, quando a empresa The Manáos Tramways & Light Co Limited realiza a inauguração da linha de bondes - Villa Municipal. No ensejo, era governador, Pedro de Alcântara Bacellar (1917-21), e prefeito, Antônio Ayres de Almeida Freitas (1917-19).

Chegou o momento da Igreja ocupar-se do atendimento aos paroquianos. A primeira capela homenageava a São Saturnino (1942), sob a orientação dos frades capuchinhos. Alguns anos depois, os padres dos Pime edificaram a igreja de Nossa Senhora de Nazaré, benzida por dom João da Matta Amaral, bispo do Amazonas, em 11 de julho de 1948. Novos tempos desceram sobre Manaus, a Vila Municipal do alvorecer do século XX havia se expandido, como propugnaram seus idealizadores. Mas quando a edilidade renomeia o bairro para Adrianópolis, em homenagem a um ilustríssimo morador do bairro, o falecido médico Adriano Augusto de Araújo Jorge, certamente sinaliza para uma outra etapa dessa História.


FONTES:

BITTENCOURT, Agnello. Dicionário Amazonense de Biografias: Vultos do Passado. Rio de Janeiro: Conquista, 1973.

MONTEIRO, Mário Ypiranga. Roteiro Histórico de Manaus. Vol. 1 e 2. Manaus: Universidade do Amazonas, 1998.

SILVA, Geraldo Gomes da. Arquitetura do ferro no Brasil. 2°. ed. São Paulo: Nobel, 1988.

Digesto do Município de Manaus, Tomo II - Leis Orçamentárias (1853-1906). Paris: Livraria Aillaud, 1907.

Relatório da Comissão Organizadora do Tombo dos Próprios do Município, em 31 de julho de 1922.


Roberto Mendonça, 69, é graduado em Direito pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), sócio efetivo do IGHA (Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas) e coronel da reserva da PMAM (Polícia Militar do Amazonas). É autor dos livros Cândido Mariano e Canudos, Administração do Coronel Lisboa, L. Ruas: Itinerário de uma vocação, L. Ruas: Poesia Reunida e Bombeiros do Amazonas: retrospectiva 1876-1998.