quarta-feira, 5 de julho de 2017

Livros para conhecer a História do Amazonas e de Manaus

A quantidade de livros sobre a História do Estado do Amazonas e de sua capital, Manaus, é vasta. Desde pelo menos 1884, com a publicação do Almanach administrativo, histórico, estatístico e mercantil da Província do Amazonas, escritores apresentam obras de síntese, ensaios e pesquisas acadêmicas sobre a História da região. Nesse texto, listei 21 livros (que fazem partes de minhas leituras) que considero essenciais para conhecer a História do Amazonas e a História de Manaus. Alguns ainda estão disponíveis em livrarias. Outros, no entanto, dada a antiguidade e raridade, podem ser encontrados em sebos ou já se encontram esgotados.


HISTÓRIA DO AMAZONAS:


À margem da História (1909) - Euclides da Cunha foi um dos primeiros intelectuais que buscaram interpretar a Amazônia histórica e socialmente. À margem da História é o resultado de inúmeros ensaios produzidos por Euclides durante sua participação na expedição de reconhecimento do Alto Purus. A grandiosidade da natureza impressionou o escritor fluminense, que passara a compreender aquele mundo natural como estando em processo de "gestação", o qual tinha por habitante o "intruso", o homem amazônico. O escritor mostrou-se ser um pesquisador arrojado, utilizando para a produção de seus ensaios os relatos de viajantes, estudos geográficos, etnográficos e sociológicos. A tese de Euclides combinava a Amazônia e o intruso, a natureza e o homem. Em outras palavras, era de determinismo geográfico. Para o autor, a natureza "infernal" amansava, isolava e dominava a vida do amazônida, processo de controle acrescido do sistema de trabalho semi-escravo da extração do látex. É a primeira vez que a Amazônia e seus habitantes foram pensados, não de forma poética ou saudosista, mas sob o prisma de uma crítica a sua realidade.

História do Amazonas (1931) - Arthur Cezar Ferreira Reis (1906-1994) pode ser considerado o maior historiador que o Amazonas já teve. Foram mais de quatro décadas dedicadas à pesquisa e à escrita, que resultaram em nada mais nada menos que 38 obras publicadas tanto no Amazonas quanto em outros países. Homem de estado, governador durante o Regime Militar, suas obras são caracterizadas pela presença da perspectiva política nos desdobramentos da evolução histórica do Amazonas. Em 1931, com 25 anos de idade, Arthur Cezar publica História do Amazonas, trabalho de grandes proporções e assentado em farta documentação. Arthur Reis aplica, nessa obra, o rigor histórico da pesquisa documental, construindo uma narrativa fluida, rica e viva, bem ordenada, tecendo uma interpretação político social do Amazonas, fruto das ações do Estado português e depois do Estado Republicano.

Topônimos amazonenses: Nomes das cidades amazonenses, sua origem e significação (1967) - Muitos de nós já se perguntaram quais as origens dos nomes dos municípios que formam nosso Estado, nomes curiosos como Barreirinha, Urucurituba e Carauari. O juiz Municipal e de Direito Octaviano Mello produziu, em 1940, um trabalho sobre a Geografia, a História e a Etimologia de cidades como as anteriormente citadas. Apenas em 1967, de forma póstuma, o Governo do Estado do Amazonas publicou essa obra, intitulada Topônimos amazonenses: Nomes das cidades amazonenses, sua origem e significação. Por mais que atuasse na área do Direito, em outros trabalhos Octaviano mostrou-se grande especialista e erudito em Geografia, História, Etnografia e linguística. Nesse livro o autor não se prende apenas à descrição dos elementos naturais, dedicando boa parte de suas análises aos elementos humanos e etimológicos da região.

Dicionário amazonense de biografias (1969) - A biografia é um campo com muitas possibilidades em nosso Estado, pois ainda se desconhecem as trajetórias de muitas de nossas personalidades. Inúmeros estabelecimentos escolares, logradouros e ruas possuem nomes em sua maioria desconhecidos pela população. Partindo dessas ideias, Agnello Bittencourt, o lendário professor do Colégio Dom Pedro II (digo isso sem exageros, pois foram 52 anos dedicados ao ensino), publicou em 1969, após anos de pesquisa, o Dicionário amazonense de biografias - vultos do passado. Nesse dicionário são encontradas as biografias de figuras como Lobo D' Almada, Leonardo Malcher e Luiz Antony.

A expressão Amazonense (1978) O sociólogo Márcio Souza encerra uma linha de elogios e exaltação da cultura burguesa da economia gomífera em 1978, com a publicação de A Expressão Amazonense: do colonialismo ao neocolonialismo. Para o autor, durante o apogeu da borracha, o Amazonas esteve bastante alienado, com sua capital sendo “a única cidade brasileira a mergulhar de corpo e alma na franca camaradagem dispendiosa da belle époque”. Acrescenta ainda que ela não era “verdadeiramente uma cidade, mas decoração do sonho e do delírio, microcosmo das doenças do espírito burguês com toques de selvageria e grossura”, cujo novo estilo de vida contrastava com sua linhagem portuguesa, a tornando um verdadeiro cenário para o colonialismo.

O Amazonas na época imperial (1989-90) - Livro denso de mais de 300 páginas, O Amazonas na época imperial, do escritor Antônio Loureiro, membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, cobre o período que vai de 1852 até o advento da República. Como fontes, Loureiro utilizou relatórios, falas e exposições dos presidentes e vice-presidentes desse período, de forma que a narrativa é constituída da visão desses homens que serviram ao Império no Amazonas. O conteúdo é rico em dados estatísticos das atividades comerciais e administrativas do Amazonas nessa época, sendo a obra de fundamental importância para os estudos que lhe sucederam.

Breve História da Amazônia (1994) - O livro Breve História da Amazônia, do sociólogo Márcio Souza, surgiu da necessidade que este encontrou na Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos, em encontrar livros síntese sobre a região para seus alunos do curso de Imagens da Amazônia, do Departamento de Espanhol e Português. Márcio Souza idealizou um livro para aqueles que necessitavam de uma introdução geral sobre a região. O grande pioneirismo e diferencial dessa obra é que o autor abarcou, sem a pretensão de preencher a lacuna existe, a Amazônia de uma forma geral, tanto a brasileira quanto aquela formada por outros países da América do Sul, a Amazônia plural onde são falados, além do português, o espanhol, o inglês, o holandês e línguas nativas. É uma ótima leitura para aqueles que pretendem se familiarizar com a História da região antes de se aprofundarem em obras mais densas.

Ribeiro Junior - Redentor do Amazonas (Memórias) (1997) - O período Tenentista no Amazonas ainda é pouco estudado. Eneida Ramos Ribeiro, filha de Ribeiro Júnior, líder do movimento que instalou o governo tenentista no Amazonas em 1924, é a autora desse livro de memórias. Além de suas memórias familiares e das memórias de amigos de seu pai, Eneida utilizou jornais, revistas e outros livros para compor seu trabalho. A obra tem uma das narrativas mais interessantes, com um ritmo mais acelerado, como se Eneida não tivesse vontade de parar de escrever. A partir de cada capítulo, que sempre parte dos depoimentos familiares para os mais gerais, temos as peças de um quebra cabeça que nos permite compreender as motivações daquela personagem que encabeçou um movimento tão importante mas ao mesmo tempo tão desconhecido em nosso Estado.

A Grande Crise (2008) - Antônio Loureiro, em A Grande Crise, com um grande arsenal de dados estatísticos e bibliográficos, analisa a derrocada da borracha em uma perspectiva nacional. O Brasil, para o autor, sentiu os efeitos da crise, pois dependia da Amazônia para a obtenção das libras esterlinas, necessárias para o pagamento da dívida externa, para equilibrar o preço do café e urbanizar a capital federal; mas continuava alheio à região. As críticas, em sua maioria, são feitas à omissão da União, que tardiamente tomou medidas que se mostraram ineficazes ao combate da crise; outras são feitas aos empresários e outros trabalhadores que enviavam altas somas de dinheiro para suas terras de origem, descapitalizando a região.

O fim do silêncio: presença negra na Amazônia (2011) - Patrícia Melo Sampaio, professora do Departamento de História da UFAM e reconhecida como uma das maiores historiadoras da região, põe fim a um grande silêncio presente em nossa historiografia clássica: a presença de negros na região amazônica. Por muito tempo, a presença dessas personagens foi abafada na historiografia clássica, que as tratava de forma estatística, afirmando uma presença ínfima, e sedimentando suas culturas. O trabalho, organizado por Patrícia Sampaio, conta com artigos de alunos pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia, nos quais são abordadas temáticas variadas, que vão desde cartas de alforria, fugas de escravos, festas religiosas a elementos contemporâneos como o hip-hop. A obra reflete a temática da presença negra em nossa região e dá visibilidade a personagens que fazem parte de nossa trajetória em sociedade.

Os samurais das selvas: A presença japonesa no Amazonas (2012) - Aguinaldo Nascimento Figueiredo, professor da rede pública e membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, escreveu Os samurais das selvas: A presença japonesa no Amazonas, para que ficasse registrada a trajetória dos imigrantes nipônicos que para cá vieram em diferentes momentos. A imigração de japoneses para Amazonas teve grande influência em Maués, Parintins, Manacupuru e Manaus. A vinda dessas pessoas é contextualizada aos momentos mais sensíveis de nossa Estado, quando este ainda sofria os efeitos da crise, e políticas econômicas como a do cultivo da juta e do guaraná, e de colonização, eram implantadas para tentar reverter esse quadro de estagnação. Esse é mais um dos trabalhos de Aguinaldo Figueiredo marcado pela escrita simples, acessível a todos os públicos, e pelo cuidado no trato das fontes.


HISTÓRIA DE MANAUS:

Um olhar pelo passado (1897) - Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha, jornalista filho de João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha, o primeiro presidente da Província do Amazonas, produziu esse livro em homenagem ao governador Fileto Pires Ferreira. Nessa obra, Bento de Figueiredo mescla tanto a pesquisa em arquivos públicos da capital, de Barcelos, de Itacoatiara e de Tefé, quanto sua própria vivência, seus testemunhos oculares da cidade que viu durante o período provincial. Boa parte do livro é constituída de informações da Geografia antiga da capital, da evolução das vias públicas e de suas nomenclaturas.

Fundação de Manaus (1948) - Mário Ypiranga Monteiro (1909-2004) foi sem dúvidas um dos maiores escritores de nossa cidade. Seus ensaios histórico-culturais são de uma qualidade ímpar, sendo reconhecidos nacional e internacionalmente. Em Fundação de Manaus, Mário Ypiranga se propõe a produzir uma obra que, naquele período, suprisse a carência de informações históricas sobre a cidade. O livro parte da fundação da Fortaleza de São José da Barra e vai até a década de 50 do século XIX. Por ser um ensaio, o livro possui muitas ideias e reflexões sobre o que é a cidade, seus habitantes, sua cultura. Para Mário Ypiranga, Manaus é produto da falta de organização e planejamento de seus fundadores, o que não lhe possibilitou ter uma "adolescência", pois a urbe passa de um estado acanhado, encerrada por seus limites naturais, para uma evolução jamais vista a partir do final do século XIX.

Roteiro Histórico e Sentimental da Cidade do Rio Negro (1969) - Num primeiro momento, o livro de Luiz de Miranda Corrêa pode parecer um guia turístico. São abordados festivais folclóricos, lugares para fazer compras, hotéis etc. Mas, com uma leitura mais aprofundada, logo vemos que trata-se de um elogio saudosista ao período da borracha, à influência europeia e à ação das elites. Manaus se transformava, com obras monumentais e serviços públicos de qualidade. “Uma sociedade inteira passava de um estágio primitivo para os requintes da civilização europeia”. A descrição dos palacetes, bares, hotéis e bordéis são vívidas. As elites elogiadas são aquelas formadas com o nascimento da República, enquanto que “as famílias mais antigas do Amazonas, o pequeno número de privilegiados do Império, […] ou se adaptavam às novas condições de vida da região ou seriam, como vários o foram, tragados pelo redemoinho dos interesses da borracha”.

Roteiro Histórico de Manaus (1969) - Mais uma vez um livro de Mário Ypiranga Monteiro. Dessa vez, o autor escreveu um denso roteiro, dividido em dois livros, de logradouros, construções e ruas da cidade, abordando as origens de suas nomenclaturas. Não são privilegiados lugares apenas do Centro, como tradicionalmente ocorre, mas também logradouros de outros bairros. É um clássico para os que procuram conhecer as ruas de Manaus.

Manaus - História e Arquitetura (1852-1910) (1997) - Otoni Moreira Mesquita, professor aposentado da Universidade Federal do Amazonas, publicou, em 1997, em forma de livro, sua tese de mestrado, Manaus - História e Arquitetura (1852-1900). A história da cidade é vista a partir da arquitetura e do urbanismo. Com um recorte histórico que parte do período provincial até a década de 10 do século XX, Otoni Mesquita contextualiza as transformações urbanísticas pelas quais a capital foi passando, com seu apogeu de construções durante o "boom" da economia gomífera. Cada construção analisada é minuciosamente descrita em seus aspectos arquitetônicos. Na tese de Otoni, compreende-se que essas transformações fazem parte de um "rito de passagem", com a inserção da Amazônia ao mundo que se apresentava como moderno, obedecendo aos padrões vindos da Europa. Toda uma sociedade provinciana, cujo ritmo era ditado pela natureza e pelas limitações a ela impostas, sofre mudanças marcantes.

A ilusão do Fausto - Manaus 1890-1920 (1999) - O ensaio de Edinea Mascarenhas Dias, A Ilusão do Fausto – Manaus 1890-1920 (1999), é um estudo que, ao mesmo tempo em que é esmiuçado o processo de transformação e desenvolvimento da cidade e de suas políticas públicas, são apresentadas as contradições do espaço urbano pensado pelas elites e pelo poder público, que criou mecanismos que, ao mesmo tempo em que ordenavam a urbe, segregavam pobres, prostitutas, analfabetos e desocupados. Tem influências de Edward Thompson, com sua crítica ao marxismo estruturalista; e de Max Weber, com seu conceito de estratificação social. O livro é dividido em duas partes: A cidade do Fausto e A falácia do Fausto.

Manaus: Praça, café, colégio e cinema nos anos 50 e 60 (2002) - O livro de José Vicente de Souza Aguiar, professor da Universidade do Estado do Amazonas, é sobre a vida cultural da cidade entre as décadas de 1950 e 1960, tendo como centro irradiador a Praça da Polícia em conjunto com o Cine Guarany, o Café do Pina e o Colégio Dom Pedro II, espaços que marcaram várias gerações na capital. Reconhecendo as dificuldades em encontrar uma quantidade significativa de fontes escritas, José Vicente recorrer ao auxílio da memória, entrevistando pessoas que praticamente dedicaram metade de suas vidas a esses espaços públicos. Além da oralidade, foram utilizados periódicos (jornais e revistas) e documentos oficiais. O ponto de partida de sua pesquisa é a fundação do Clube da Madrugada, em 1954, movimento que marcou as artes e a literatura local; e vai até o final dos anos 1960, quando a instalação da Zona Franca instaurou uma nova dinâmica na vivência nesses espaços urbanos.

Evocação de Manaus: como eu a vi ou sonhei (2002) - Memórias, memórias de tempos mais amenos. Nesse livro, de caráter saudosista, publicado em 2002, o senador Jefferson Péres (1932-2008) nos transporta, através de uma narrativa vívida, para a Manaus dos anos 40 e 50. O autor faz descrições minuciosas da vida familiar, dos costumes, da vida material e dos acontecimentos políticos do período, como a presença e as atividades dos norte-americanos na cidade durante a Segunda Guerra. Jefferson Péres nos descreve uma cidade de pouco mais de 100 mil habitantes, anestesiada pelos efeitos da crise econômica, que começava a ditar sua vida em um ritmo mais lento, que conservava valores tradicionais e prezava pela ordem.

Manaus, entre o passado e o presente (2009) - O empresário Durango Duarte não é historiador, mas um grande entusiasta desse campo. Manaus, entre o passado e o presente, é organizado por Durango mas produzido por uma grande equipe de pesquisadores de centros culturais, institutos históricos e universidades, munida de farta documentação, o que torna o resultado final da obra de grande valor. A obra é bem estruturada e ilustrada, com capítulos para as praças, os portos, as igrejas, os cinemas, as bibliotecas etc, mostrando como esses lugares foram se transformando até o presente. Para aqueles que desejam uma leitura prática mas com qualidade, essa é uma boa escolha.

Monumentos públicos do Centro Histórico de Manaus (2012) - Maria Evany Nascimento, professora da Universidade do Estado do Amazonas, fez um levantamento dos monumentos erguidos na cidade entre 1882 e 1995. O objetivo maior era efetuar o mapeamento desse acervo de obras artísticas dos logradouros públicos do Centro Histórico de Manaus. Outro objetivo, mais ambicioso, era contribuir, de alguma forma, para a preservação desses marcos e obras artísticas, bem como a memória e a história de cada uma delas que fazem parte do patrimônio cultural da cidade, o que implica ainda no resguardo da cultura visual do Centro Histórico. Cada um dos monumentos levantados é analisado, chamando a atenção do leitor o cuidado que a autora teve com os mínimos detalhes, buscando esmiuçar toda a simbologia por trás dessas obras.


CRÉDITO DAS IMAGENS:

Estante Virtual
Skoob
Blog do Coronel Roberto
Livraria Cultura
Livraria Valer

Acervo pessoal

domingo, 25 de junho de 2017

Antigas famílias manauaras

Porto de Manaus, 1865. Aquarela de Jacques Burkhardt.

Família, o mais popular grupo humano, formado por membros que compartilham entre si relações ancestrais e afetivas, estruturada de diferentes formas, que vão desde a nuclear à monoparental. Nesse texto, um esboço desprendido de qualquer tentativa de delimitar o início e o fim de algo, busco, de forma simples, abordar as origens de algumas das famílias mais antigas de Manaus, famílias essas que, ao longo dos séculos, contribuíram de alguma forma para o desenvolvimento da cidade, estando presentes em diferentes períodos de sua evolução histórica e social.

Nos primeiros anos do que viria a ser Manaus, a Fortaleza de São José da Barra, núcleo que nada aparentava de urbano, é difícil de imaginar quais foram as primeiras famílias a se formar. Mas, levando em conta a inexistência de mulheres portuguesas nas primeiras expedições, supõe-se uniões entre soldados portugueses com filhas de chefes indígenas. Esse processo de formação de famílias mestiças se intensificaria em 1755, quando foi instituído o Alvará de 04 de abril, que autorizava o casamento entre brancos e indígenas, de forma a suprir a carência demográfica da Capitania de São José do Rio Negro. Essa política de união entre brancos e indígenas começou a surtir efeito cedo, como fica claro em uma carta de Mendonça Furtado para o rei, onde ele transmite que conseguiu que [...] “naquele pouco espaço se contrahissem não menos de 78 matrimonios no Ryo Negro” (MONTEIRO, 1995, p. 47).

Em fins do século XVIII, as famílias formadas por portugueses já eram uma realidade. Talvez já o fossem antes, mas temos um indício no diário de viagens de Alexandre Rodrigues Ferreira, no qual são citados os nomes de alguns moradores brancos, homens e mulheres: Manoel Tomé Gomes, Manoel Pinto Catalão, Inácia Lindoza e Madalena de Vasconcelos (FERREIRA, 2005, p. 355). Inácia Taveira de Meneses Lindoza era neta de Raimunda Taveira de Menezes Lindosa, essa, no romance O Espião do Rei (1950), do folclorista e historiador Mário Ypiranga Monteiro, esposa de “Ferrabaz” Lindosa, soldado português de antigas Tropas de Resgate, assassino de indígenas em inúmeras povoações do Amazonas.

Tem origem no século XVIII a família Tenreiro Aranha, oriunda de Portugal e com laços em Barcelos e Belém, esta última por um de seus membros ser descendente dos povoadores dessa cidade ainda no século XVII. Os membros mais conhecidos são Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha, poeta de Arcádia, seu filho João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha, primeiro presidente da Província do Amazonas, e o filho deste último, Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha, jornalista autor de Um olhar pelo passado (1897), falecido aos 79 anos em 1919. Penso que boa parte dessas famílias dos primeiros tempos, dos séculos XVII e XVIII, desapareceram ou foram absorvidas por grupos maiores, perdendo suas identidades, talvez por mudanças nos cenários político e econômico, pela não continuidade de seus descendentes ou pela arma mais eficaz para fazer algo desaparecer: o esquecimento.

Muitas das famílias que fizeram história em Manaus vieram de outros estados e até de outros países. No século XIX, transformações políticas como a vinda da Família Real, os Tratados de Amizade e Comércio, e depois a Independência do Brasil do Reino de Portugal, estimularam a vinda de estrangeiros para o país, muitos deles visando estabelecer-se no Amazonas. A família Antony é talvez um dos exemplos mais clássicos que podem ser destacados. Em Manaus, essa família tem origem no toscano Henrique Antony, que chegou no Lugar da Barra por volta de 1823, fugindo dos efeitos da dominação napoleônica na Europa. Em 1839 casou-se com Leocádia Maria Brandão, filha de Antônio José Brandão, fazendeiro português dono de engenho, estabelecido na região que hoje corresponde ao Manaquiri e de uma mestiça filha de um chefe manau. Da união entre Leocádia e Henrique nasceram João Carlos, Américo, Dinary, Guilherme, Luiz Carlos, Lina, Paulina, Maria e Luiz.

Em 1853, já como grande comerciante da Província do Amazonas, o Império lhe autorizou a concessão da carta de naturalização, sendo Antony o primeiro estrangeiro a naturalizar-se no Amazonas (COLLECÇÃO DAS LEIS E DECISÕES DO IMPÉRIO DO BRASIL, 1853, p. 5). A família, atualmente, encontra-se na sexta geração, com mais de 200 membros só em Manaus (FERREIRA, 2009). Outro italiano, mais antigo nessas terras, foi o corso Francisco Ricardo Zany, que aqui chegou entre 1817 e 1821.

Vindos de mais longe, da Grécia, os Tadros, cristãos de origem copta, se estabeleceram em Manaus por volta de 1870, consolidando-se como comerciantes. David Tadros, o pioneiro dessa família na região, fundou em 1874 a Tadros & Cia, casa de aviamento, de navegação, de importação e exportação, atualmente a mais antiga empresa em funcionamento no Amazonas (de ramos diversos, com foco em propriedades imobiliárias), com incríveis 143 anos. José Roberto Tadros, bisneto de David, comanda a empresa nos dias de hoje.

A família Moreira, de origem portuguesa e estabelecida na Bahia, também se fez presente em Manaus. Os membros mais notáveis foram três irmãos: Guilherme José Moreira, primeiro e único Barão do Juruá, comerciante e político; Antônio José Moreira, o Dr. Moreira, médico do Corpo de Saúde e Deputado pela Província; e Emílio José Moreira, Coronel, político e comerciante. Seus pais, Sebastião José Moreira e Maria José Moreira, permaneceram em Salvador.

Uma das famílias mais antigas de que se tem notícia, existente até os dias de hoje, é a Miranda Leão. A origem desta é interessante: Seu mais antigo membro conhecido, José Coelho de Miranda Leão, foi oficial de alta patente da esquadra portuguesa que fugira de Portugal durante a invasão de Napoleão Bonaparte, acompanhando Dom João VI ao Brasil, entre 1807-8. Seu nome era apenas José Coelho, sendo Miranda um acréscimo em homenagem à sua cidade natal, Miranda do Douro, no Distrito de Bragança. Já no Brasil, a serviço de Dom João, travou combate com um navio da esquadra francesa, derrotando-o com grande maestria. O monarca português lhe agraciou com o título de Leão do Mar, título esse acrescentado a seu nome, que passara a ser José Coelho de Miranda Leão. Em Mazargão, na Província do Pará, casou-se com a filha de um fidalgo português. Dessa união nasceu José Coelho de Miranda Leão, falecido em 1894. Este casou-se com Martiniana Ferreira dos Anjos, descendente, em linha direta, da tribo dos manaus (BITTENCOURT, 1969, p. 109). Dessa união nasceu Manoel de Miranda Leão, professor, jornalista e político (1851-1927). O descendente mais conhecido atualmente é Homero de Miranda Leão Neto.

A família Malcher, poderoso clã político e militar em Belém do Pará e arredores, tem suas origens que remontam ao século XVIII, de grandes proprietários de terra portugueses, fazendo união com a influente família Gama Lobo, originada de colônias na África e na América, cujo membro mais famoso é Manuel da Gama Lobo D’ Almada, Brigadeiro e engenheiro militar português que administrou a Capitania de São José do Rio Negro entre 1788 e 1799. Em Manaus, o membro mais importante dessa família foi Leonardo Antônio Malcher (1829-1913), Major da Guarda Nacional, abolicionista e pioneiro na divulgação da doutrina espírita no Amazonas. Casou-se com Maria Raymundo Nonato, tendo dois filhos, Escolástico Clemente Malcher e Leonarda Antônio Malcher, que casou com José Cardoso Ramalho Júnior, governador do Estado do Amazonas entre 1898 e 1900.

Dada nossa posição geográfica e laços culturais, já é perceptível que boa parte das antigas famílias amazonenses têm alguma ligação ou origem em Belém, no Pará, e outras cidades desse estado. A família Miranda Corrêa é originária da região do Lago Grande, nos arredores de Santarém, descendente de um ramo português miscigenado com índios da região. Jucundina de Miranda Corrêa, originária do Baixo Amazonas, e Inocêncio de Miranda Corrêa, Juiz, são o casal de que se tem notícia, e aquele que deu origem à maioria dos membros dessa família. Dessa união nasceram: Luiz Maximino e Antonino Carlos, o médico Deoclécio, os bacharéis Carolino e Adelino, o almirante Altino, o comandante Acrisio Fulvio e duas irmãs: Joana e Sinhá Sussuarana (JORNAL A NOTÍCIA, 1970). Luiz Maximino e Antonino se tornaram famosos pela construção da ''Fábrica de Gelo Cristal'' e a "Casa de Chopps'', em 1903; da ''Cervejaria Amazonense'' em 1905; e do moderníssimo Castelo da Cervejaria Miranda Corrêa, entre 1910 e 1912, onde foi instalado o primeiro elevador da cidade, existente até os dias de hoje no bairro da Aparecida; os Miranda Corrêa adquiriram de um rico comerciante português o prédio que mais tarde ficaria conhecido como Palacete Miranda Corrêa. Atualmente, existem descendentes dos Miranda Corrêa no Pará, no Amazonas, no Maranhão e no Rio de Janeiro.

Existem, é claro, mais famílias cujas origens estão localizadas em longínquos 100, 150, 200 anos. Buscou-se, aqui, apresentar um panorama das origens de algumas das principais famílias de Manaus, assim entendidas por suas influências no cenário político e econômico. Dar conta de abordar todas em um texto seria uma tarefa laboriosa, dada a complexidade dos estudos na área de genealogia e a quantidade de informações. As fontes aqui utilizadas nos dão apenas algumas ideias, devendo ser descobertas novas, trabalhadas as antigas, aplicadas em estudos de trajetórias, de biografias e de redes de poder.


BIBLIOGRAFIA:

MONTEIRO, Mário Ypiranga. Fundação de Manaus. 4° ed, São Paulo, Metro Cúbico, 1995.

MONTEIRO, Mário Ypiranga. O Espião do Rei. 2° ed, Manaus, Editora Valer, 2002.

FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem filosófica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá (1783-1793). Disponível em CiFEFil, Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos.

BITTENCOURT, Agnello. Dicionário amazonense de biografias. Manaus, Editora Artenova, 1969.

FERREIRA, Evaldo. Rua Henrique Antony. Jornal Em Tempo, 2009.

Collecção das Leis e Decisões do Império do Brasil. Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1853.

Jornal A Notícia, 17/09/1970.


CRÉDITO DA IMAGEM:

Manaus Sorriso

quarta-feira, 7 de junho de 2017

Os Santos Populares do Cemitério São João Batista (Manaus/AM)

Os santos populares do Cemitério de São João Batista: Teresa Cristina, Etelvina D' Alencar, Shalon Emanuel Muyal e Delmo Campelo Pereira.

Uma das características mais fortes da religiosidade brasileira é o seu caráter popular, que se desenvolve à margem de um poder oficial. Os santos populares talvez sejam o melhor exemplo dessa "crença não oficializada". É histórica a relação que os vivos criam com os mortos, acreditando que estes, já em outro plano, podem interceder no mundo terreno em benefício e, em alguns casos, assombrar seus algozes. No Cemitério São João Batista temos quatro sepultados considerados santos por um número considerável de seguidores: Etelvina de Alencar, Teresa Cristina, Shalon Emanuel Muyal e Delmo Pereira.

Etelvina Alencar (1884-1901) - Etelvina D' Alencar, natural de Boa Vista do Icó (CE), era filha de Cosmo José D' Alencar e Rosalinda D' Alencar. Essa família de cearenses se estabeleceu na Colônia Campos Salles para trabalhar na área agrícola. No local, Etelvina conheceu um jovem de nome José, tornando-se noiva deste. No entanto, Etelvina desistiu do casamento. José ouviu boatos de que Etelvina possuía três namorados na Colônia: Antônio, Estevam e Henrique. José adquiriu um rifle, matando os três e o administrador da colônia, que tentou impedi-lo de cometer os crimes. Por último, invadiu a casa de Etelvina, levando-a para a mata. Na cena do crime, vários dias após o ocorrido, como escreveu Júlio Uchôa no Jornal do Comércio de 15/01/1956, estavam "dois esqueletos, com o rifle no meio". José assassinou Etelvina Alencar e logo depois se suicidou. O crime gerou grande comoção dentro e fora da cidade, sendo noticiado em jornais de outros estados. A Prefeitura de Manaus, em 30/08/1901, lhe dedicou uma sepultura perpétua, com um jazigo construído pela população. O mausoléu atual foi construído em 1964 também pela Prefeitura de Manaus. Com o passar dos anos, várias pessoas passaram a ver e atribuir milagres a jovem Etelvina D' Alencar, Santa Etelvina, Santa dos Estudantes. Objetos, flores, imagens do Sagrado Coração de Jesus e do Sagrado Coração de Maria são postos em seu mausoléu como homenagem, um dos mais visitados durante a celebração do Dia dos Finados e também em dias comuns.

Teresa Cristina (1964-1971) - Teresa Cristina é a pessoa mais nova dentre os outros santos populares. A criança, filha de mãe católica e pai muçulmano, desde cedo mostrava interesse por questões voltadas para o sagrado. No ano de 1971, faleceu em um acidente aéreo nas proximidades de Manaus, para onde voltava com sua mãe. A mãe de Teresa, sobrevivente, tentou ajudá-la, mas esta morreu carbonizada entre os destroços da aeronave. Passados seis meses após o acidente, a mãe da criança, dona de uma pensão no Centro, recebeu visita de um migrante, sem dinheiro, que pediu para ali ficar hospedado. A senhora lhe acolheu. No outro dia, esse hóspede foi até a casa da família de Cristina, para acertar os detalhes da hospedagem. Chegando no local, viu um quadro da criança e perguntou quem ela era. A senhora disse que era sua filha. O migrante disse que foi aquela criança que o guiou até a pensão. A mãe de Teresa disse que isso era impossível, pois seis meses a criança morrera em uma acidente aéreo. Curiosa, ela perguntou onde encontrou a criança. Este disse que encontrou a criança brincando na rua, perto de uma casa antiga. O local descrito era a antiga residência da família, abandonada após o acidente. O boato da aparição da criança se espalho rapidamente pela cidade. Um outro hóspede, com uma doença degenerativa que estava lhe tirando a visão, fez orações a Teresa Cristina, sendo curado. Nos dias de hoje, o túmulo da criança e bastante visitado por pais acompanhados de seus filhos e por descendentes de sua família.

Rabino Shalon Emanuel Muyal (+1910) - O Rabino Shalon Emanuel Muyal veio de Salé, no Marrocos, para Manaus, em 1908, a fim de ajudar no desenvolvimento da comunidade da capital. Sua experiência na cidade foi breve, pois fora acometido por uma doença tropical, vindo a falecer em 1910. A primeira pessoa auxiliada por um milagre atribuído ao rabino foi uma senhora da comunidade judaica que o auxiliou em seus últimos dias de vida. A senhora afirmava ter conseguido curar outra pessoa graças ao contato que manteve com o Rabino Shalon. A notícia correu pela comunidade judaica. A mãe de um jovem que possuía um problema no pescoço que o fazia andar com a cabeça inclinada, desacreditada pelos médicos da capital, foi até o cemitério fazer pedidos no túmulo do Rabino para o restabelecimento da saúde do filho. Inúmeras placas de graças alcançadas estão fixadas no local, junto de flores e velas, símbolos cristãos, e pedras, jogadas aos mortos na tradição judaica. Em 1980, o sobrinho de Emanuel Muyal, Eliahu Muyal, membro do parlamento de Israel e Ministro dos Transportes, visitou Manaus e pediu a comunidade judaica para levar os restos mortais de seu tio para Israel. O pedido foi negado sob a justificativa de que tal ato revoltaria a população católica que reverenciava o Santo Judaico.

Delmo Campelo Pereira (1933-1952) - O assassinato de Delmo Campelo Pereira talvez seja um dos mais controversos da história de Manaus. O crime, que envolveu nada mais nada menos que 27 pessoas, ocorreu na Colônia Campos Salles em 1952. Ele foi consequência de uma série de ações criminosas cometidas por Delmo. O jovem, rebelde e amante da vida desregrada, tentou assaltar a empresa de seu pai, atacando um vigia do local a golpes de chave de fenda. Um taxista que levara Delmo até a empresa, a única testemunha, foi assassinado a tiros pelo jovem. A categoria de motoristas de Manaus, enfurecida, empreendeu uma verdadeira caçada atrás do assassino do colega de profissão. Para a surpresa de Delmo, o vigia sobreviveu ao seu ataque. Temendo o pior, o assassino do taxista confessou seus crimes para a polícia. Suas versões eram contraditórias, ora admitia ter feito tudo sozinho, ora adicionava cúmplices. Como alternativa, este foi posto em uma ambulância para receber uma aplicação do Soro da Verdade. Em parte do trajeto, a ambulância foi atacada por um grupo de taxistas, que raptou Delmo. O jovem foi levado pelos taxistas para o Baixio dos Franceses, à margem da Estrada de São Raimundo. Ali encontraria seu fim: Foi torturado pelos taxistas enfurecidos, chicoteado com fios elétricos, tendo seu ventre aberto do umbigo ao pescoço no processo. Sua morte gerou a revolta da população, principalmente dos estudantes. Em seu túmulo encontram-se as inscrições "Estudante Mártir". Pedidos para sucesso na vida acadêmica e cadernos são deixados em sua homenagem.

FONTES:

SANTOS, Fabiane Vinente dos; MAIA, Jean Ricardo Ramos. Hagiografia de cemitério: História Social e Imaginário religioso nas canonizações populares em Manaus. Revista Eletrônica os Urbanitas, São Paulo, v. 5, 2008.

CUPPER, Maria Terezinha da Rosa. Educação e Cultura: Leitura do Cemitério de São João Batista - Manaus/AM. Manaus, Universidade Federal do Amazonas, 2009. (Dissertação de Mestrado em Educação).

Catador de Papéis (www.catadordepapeis.blogspot.com). Blog do Coronel Roberto Mendonça

CRÉDITO DAS IMAGENS:

Maria Terezinha da Rosa Cupper
G1 Amazonas
Manaus de Antigamente





segunda-feira, 5 de junho de 2017

Entre a riqueza e a pobreza na Idade Média: As análises de Jacques Le Goff, Fernand Braudel e Maurice Dobb sobre as desigualdades no mundo medieval

Paisagem medieval. Pintura dos irmãos Limbourg (século XV).

Na medida em que a sociedade muda seu trabalho, ou seja, o modo de produção, desde a queda do Império Romano do Ocidente no século V, temos a migração das populações das cidades para o campo. O mundo antigo está em declínio, politicamente descentralizado e com uma rede urbana decadente. As massas trabalhadoras e as elites urbanas se transferem para as suas pequenas e médias propriedades campestres. A partir do século XIII, ocorre o inverso. A Europa medieval está em pleno desenvolvimento, seja na política ou na economia. Surgem novas técnicas e instrumentos agrícolas, os índices demográficos aumentam e os transportes se desenvolvem, apenas para ficarmos em alguns exemplos. Ao mesmo tempo em que o Velho Continente caminhava rumo a novos tempos, acentuavam-se problemas sociais. Três autores analisam essa contradição de riqueza e pobreza: Jacques Le Goff (2007), Fernand Braudel (1996) e Maurice Dobb (1977).

Os livros utilizados foram As raízes medievais da Europa; Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII: O jogo das trocas; e A transição do feudalismo para capitalismo.

Para Jacques Le Goff, o enriquecimento, ao mesmo tempo em que beneficia as cidades, regiões e determinados grupos sociais, “empobrecia as vítimas das trocas” (p. 254). Dentro de uma perspectiva não só econômica, mas política e cultural, compartilhada de Braudel, o enriquecimento, alicerçado na economia-mundo, espaço de trocas econômicas onde várias regiões se comunicam, agrava as desigualdades sociais e políticas. Cresce, nas sociedades, o desejo pela diferenciação social, dividindo grupos por classes. As grandes cidades comerciais como Flandres e Gênova, centros de racionalização da produção e da divisão do trabalho, sedimentam o antigo modo de produção. Somam-se a esses problemas as mudanças climáticas, que levaram ao resfriamento e com isso o prejuízo na agricultura; As guerras perpetradas pelos Estados Nacionais, que agora formavam exércitos permanentes; As grandes epidemias como a Peste Negra; E as perseguições às minorias de judeus e muçulmanos, resultados da limpieza del sangre (limpeza de sangue), cujo resultado mais conhecido é a expulsão dos judeus da Península Ibérica em 1492. A Europa é um lugar rico e violento entre os séculos XIV e XV.

Sobre o dinheiro, essa unidade utilizada nas trocas, Fernand Braudel afirma que, no campo, este é utilizado na compra de terras e, “através dessas comprar visa à promoção social” (p. 43). No entanto, a introdução de valores monetários no campo destruiu valores sociais e equilíbrios antigos. O camponês assalariado, antes da introdução do dinheiro, recebia seus pagamentos in natura, em bens materiais como a terra. Com a monetarização do campo, este passou a contar seus pagamentos em valores monetários, valores esses nem sempre favoráveis. Essa é, segundo Braudel, uma mudança da mentalidade, “que ajuda nas adaptações da sociedade Moderna mas que não se reverte em favor dos mais pobres” (p. 43). A economia, nesse caso, influencia na mentalidade e nas relações de trabalho. Braudel cita como exemplo a comercialização de terras, no século XVIII, no país Basco. Essas propriedades se concentraram nas mãos de poucas pessoas, corroborando para a péssima situação dos camponeses, obrigados agora a procurar oportunidades de trabalho no campo, com dificuldade, ou na cidade, que nem sempre absorvia toda a mão de obra.

Por último, Maurice Dobb afirma que o crescimento das cidades mercantis e do comércio refletiu no aumento de conflitos internos. O valor de troca “como um fato econômico de vulto tende a transformar a atitude dos produtores” (p. 42). Essa é “uma transformação psicológica que afeta os envolvidos e os que entravam em contato com a economia de troca” (p. 42). As cidades mercantis, na medida em eram polos de atividades comerciais variadas, também representavam para os camponeses novas oportunidades de vida e trabalho. Por exemplo, como cita Dobb, o crescimento do comércio "acelerou o processo de diferenciação social no pequeno modo de produção" (p. 60). Ao que tudo indica, a acumulação primitiva de capital permitia aos seus agentes possibilidades de ascenderem socialmente, se diferenciando do resto da população.

Em síntese, Le Goff evoca uma Europa política, mas globalizada em termos econômicos e culturais, em um processo que enriquece mas também marginaliza parte da população, agora estratificada socialmente. Fernand Braudel vê na introdução de um valor monetário a mudança nas mentalidades e nas relações de trabalho. Maurice Dobb vê o crescimento da economia de troca como potencializador das diferenciações sociais. Um elemento que parece unir as análises desses autores é a mentalidade, que sofre alterações de curto e longo prazo no decorrer das mudanças econômicas e sociais.


FONTES:

LE GOFF, Jacques. As raízes medievais da Europa. Tradução de Jaime A. Clasen. Petrópolis, RJ, Editora Vozes, 2007.

BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII: O jogo das trocas. Tradução de Telma Costa. 2° ed. São Paulo, Editora WMF Martins Fontes, 2009.

PAUL, Sweezy.  A transição do feudalismo para capitalismo. Tradução de Isabel Didonnet. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.


CRÉDITO DA IMAGEM:

http://www.historyandpedagogy.org

quinta-feira, 1 de junho de 2017

A transição do Feudalismo para o Capitalismo: O debate de Paul Sweezy e Maurice Dobb

Paul Sweezy (1910-2004) e Maurice Dobb (1900-1976).

Paul Sweezy (1910-2004) foi um economista marxista norte-americano, teórico do neomarxismo do imperialismo e da teoria da dependência. Maurice Dobb (1900-1976) foi um economista marxista britânico, crítico da economia planificada socialista.

Paul Sweezy e Maurice Dobb foram dois autores da corrente marxista que se notabilizaram por seus debates acadêmicos em torno da transição do Feudalismo para o Capitalismo, envolvendo questões como a conceituação desse período; a relação da servidão com o Feudalismo e o impacto do comércio no modo de produção feudal. O debate, conhecido como Debate de Transição, pode ser lido em maior profundidade no livro A transição do feudalismo ao capitalismo (1977, Rio de Janeiro, Paz e Terra), organizado por Sweezy com a participação dos autores Rodney Hilton, Maurice Dobb, Kohachiro Takahashi, Georges Lefebvre, Christopher Hill, Giuliano Procacci, Eric Hobsbawm e John Merrington.

De acordo com Paul Sweezy, Dobb define o Feudalismo como "uma servidão na qual o produtor é obrigado mediante o uso da força, independente de suas vontades, de forma a cumprir as exigências econômicas do senhor, exigências que poderiam ser a prestação de serviços ou tributos a serem pagos em dinheiro ou espécie" (SWEEZY, 1977, p. 33). Ao não identificar um "sistema de produção", essa ideia é considerada falha por Sweezy. Esse autor afirma que a servidão não é restrita ao sistema feudal, e que esta pode ser verificada "em diferentes formas de organização econômica em diferentes épocas e em diferentes regiões" (SWEEZY, 1977, p. 33). 

Sweezy afirma que Dobb não define um sistema social, mas uma família dele com foco na servidão. Sweezy sugere que Dobb identifique qual membro dessa família está sendo estudado. Escolher um "membro" parece ser uma forma de evitar generalizações.

Em sua réplica, Maurice Dobb aponta suas discordâncias com Sweezy. Dobb rejeita as primeiras críticas de Sweezy, afirmando que a servidão não está ligada apenas à prestação de serviços compulsórios, "mas à exploração do produtor mediante coação direta político-legal" (SWEEZY, 1977, p. 57). Afirma ainda que, quando Sweezy diz que não houve a identificação de um sistema de produção, este pretende analisar a relação entre produtor e mercado. 

Enquanto Sweezy busca um sistema de produção, Dobb identifica pequenos modos de produção, "no qual o produtor possui os meios de produção, na qualidade de unidade produtora individual" (SWEEZY, 1977, p. 58).

Sobre o impacto do comércio como elemento desestabilizador do "modo de produção feudal", Sweezy defende a tese de que forças externas, o mercado e o comércio, desintegraram o feudalismo, na medida em que centros de comércio passaram a se racionalizar e dividir o trabalho, se opondo "à ineficiência da organização senhorial da produção" (SWEEZY, 1977, p. 42).

Maurice Dobb, por outro lado, defende a tese de que houve uma interação entre duas forças, dando maior ênfase, no entanto, às forças internas. Dobb não nega que o crescimento das cidades mercantis e do comércio influenciaram na desintegração do modo de produção feudal, mas afirma que essa influência refletiu no aumento dos conflitos internos. Por exemplo, como cita Dobb, o crescimento do comércio "acelerou o processo de diferenciação social no pequeno modo de produção" (SWEEZY, 1977, p. 60).

Tese de Sweezy: O economista norte-americano defende que o fator central para a dissolução do Feudalismo e a ascensão do Capitalismo foi a expansão comercial ocorrida entre os séculos XI e XIV, um elemento externo a esse sistema. Essa expansão do comércio impulsionou a produção para a troca, em oposição a produção feudal voltada para o uso. O comércio estimulou o surgimento das cidades, que se tornaram pólos de produção racionalizada e de atração para os servos do campo.

Tese de Dobb: Para o economista inglês Dobb, o fator central da desintegração do Feudalismo foi interno, sendo a pressão dos senhores sobre os servos e os conflitos de classe entre dominadores e dominados suas principais causas.

CRÉDITO DAS IMAGENS:

Monthly Review
Spartacus Educational

terça-feira, 30 de maio de 2017

500 anos da Reforma Protestante: Discursos sobre o movimento

Estátua de Martinho Lutero, em Washington (EUA). Obra do escultor alemão Ernst Friedrich August Rietschel (1884).

O presente texto, simples e livre de qualquer formalidade, não se pretende ser mais uma explicação sobre os processos que culminaram na Reforma Protestante, mas sim uma discussão sobre os reflexos desse evento em discursos contemporâneos, estando inserido no campo das mentalidades formadas sobre a Reforma, que completa 500 anos em 2017.

Sábado, 20 horas. Mudando aleatoriamente de canais, paro em um programa de uma emissora Protestante. Na pauta, dirigida pelo apresentador na companhia de dois teólogos, os 500 anos de um dos eventos mais importantes da Era Moderna: A Reforma Protestante. São cinco séculos de um movimento que moldou de forma significativa o panorama político e religioso do Ocidente e, dadas as influências posteriores, o mundo de forma geral.

No horário, o programa já estava bastante adiantado, mas o que foi assistido serviu de fonte para a produção desse artigo. Os dois teólogos afirmavam, com alegria, que “Lutero libertou a Europa da tirania da Igreja Católica” e que o “movimento renovou o Cristianismo”. Afirmações essas feitas com uma vivacidade que poderia fazer pensar se esses convidados não estiveram em Wittenberg, na Alemanha, em 1517, ajudando o monge agostiniano na propagação de suas ideias.

Uma semana depois, na universidade, ouvi nos corredores uma conversa entre dois estudantes. Ao que tudo indica, católicos praticantes, tanto pelo tom da conversa quanto pelos adereços, bótons de santos e terços. Um dizia que Lutero era um “herege” que dividiu o Cristianismo. Outro, no mesmo tom, via naquele monge agostiniano a figura que contribuiu para a proliferação de inúmeras “seitas sem unidade” que se arrastam até os dias de hoje. Bem que esses dois poderiam estar, em 1517, do alto do Castelo de Wittenberg vendo, sob protestos, Lutero pregar as 95 teses na porta da Igreja.

São comentários interessantes, um mais caloroso que o outro, mostrando como um evento de 500 anos permanece “vivo” na mente e no discurso de seus favoráveis e opositores do século XXI. A História é o campo de combate da memória. Ganha, geralmente, aquele que está atrelado ao Estado e às mais altas posições. No entanto, não estamos falando de grupos pequenos que lutam por suas memórias, mas sim de duas grandes e poderosas ramificações do Cristianismo, com milhões de adeptos ao redor do mundo. É uma disputa que parte do alto, disputa essa com reações imediatas ao evento.

Em fevereiro de 1518, o Papa Leão X, a pedido da Ordem dos Agostinianos, pediu para que as ideias de Lutero parassem de ser difundidas. O teólogo italiano Silvestro Mazzolini da Priero redigiu Um Diálogo contra as Teses Presuntivas de Martinho Lutero sobre o Poder do Papa. João Maier, amigo de Lutero, escreveu teses contra suas ideias, o considerando um herege estúpido, o que terminou por iniciar uma disputa teológica, o famoso Debate de Leipzig, que terminou sem vencedores. Por último, Martinho Lutero foi excomungado da Igreja Católica em 1521, quando queimou a Bula que oferecia ou a retratação ou a excomunhão.

Vejamos o que diz o padre Paulo Ricardo, figura famosa no meio religioso católico, no texto Por que não sou Protestante? Sobre a Reforma Protestante e seus agentes: “Os reformadores protestantes, como Martinho Lutero, João Calvino e Ulrich Zwinglio, vendo a triste situação em que se encontravam os homens da Igreja, quiseram empreender uma mudança, mas, no fim, acabaram mutilando a Igreja”. Conclusões semelhantes às dos dois estudantes anteriormente citados.

Para o pastor Paulo Júnior, em O que foi a Reforma Protestante? Afirma que “em uma época que o povo comum era privado da leitura das Escrituras e o papa liderava a cristandade com mãos de ferro, Lutero foi uma voz levantada por Deus para dar início a uma completa revolução espiritual na Alemanha. Lutero combateu os vários desvios doutrinários de sua época praticados pela Igreja Católica Romana, condenou veementemente a venda de indulgências, traduziu a Bíblia para o alemão e a colocou nas mãos do povo comum. Enfim, inflamou o coração de seus irmãos a uma busca sincera por Deus e o Cristianismo autêntico”.

Diferentes discursos, alguns do século XVI, outros do século XXI. Mesmo com inúmeros séculos de diferença entre uns e outros, eles possuem o mesmo objetivo: defender determinada visão de mundo. Os teólogos não estavam ao lado de Lutero na hora de fixar as 95 teses na porta da Igreja, nem os estudantes estavam do alto do castelo protestando contra a ação desse monge. Essas pessoas apenas defendem aquilo que lhes foi transmitido de determinada forma, oral ou escrita, dentro de uma visão religiosa de mundo. O curioso é observar como 500 anos depois o evento permanece vivo por meio da mentalidade e dos discursos sobre ele formados e propagados. É como se a qualquer momento Lutero ou o Papa Leão X fossem ressurgir e fazer uma observação: “não foi assim, pois eu estava lá”…


FONTES:

RICARDO, Paulo Pe. Por que não sou protestante? Disponível em: https://padrepauloricardo.org/episodios/por-que-nao-sou-protestante. Acesso em 28/05/2017.

JÚNIOR, Paulo Pr. O que foi a Reforma Protestante? Disponível em: https://defesadoevangelho.com.br/videos/o-que-foi-reforma-protestante/. Acesso em 28/05/2017.

CRÉDITO DAS IMAGENS:

commons.wikimedia.org


sábado, 6 de maio de 2017

História da América: Análise de documento

Ritual de sacrifício asteca retratado no Codex Magliabechiano (circa 1570).

Trecho de Historia de los indios de Nueva España, de Frei Toríbio Motolinía

Tratado primeiro, capítulo VI – Da festa chamada panquezalizti, e dos sacrifícios e homicídios que nela se faziam; e como tiravam os corações e os ofereciam, e depois comiam os que sacrificavam.

[...]Naqueles dias dos meses acima ditos, em um deles que se chamava panquezalizthi, que era o décimo quarto, o qual era dedicado aos deuses do México, principalmente a dois deles que se diziam ser irmãos e deuses da guerra, poderosos para matar e destruir, vencer e sujeitar; pois neste dia, como páscoa ou festa muito importante, se faziam muitos sacrifícios de sangue, tanto das orelhas como da língua, sendo isso muito comum; outros se sacrificavam dos braços e peitos e outras partes do corpo; mas porque nisto de arrancar um pouco de sangue para lançar nos ídolos, como quem derrama água benta com os dedos , ou jogar o sangue em alguns papéis e oferecê-los das orelhas e da língua era comum a todos em todas as partes; mas das outras partes do corpo cada província tinha o seu costume; uns dos braços, outros dos peitos, e através desses sinais se reconhecia de que províncias eram. Além destes e de outros sacrifícios e cerimônias, eles sacrificavam e matavam muitos da maneira que aqui direi.

Tinham uma pedra grande, de uma braçada de comprimento, e quase um palmo e meio de largura, e um bom palmo de grossura ou de espessura. Metade desta pedra estava enterrada na terra, no alto, em cima dos degraus, diante do altar dos ídolos. Nessa pedra estendiam os desventurados de costas, para os sacrificar, com o peito muito tenso, porque tinham atados os pés e as mãos, e o principal sacerdote dos ídolos e seu lugar-tenente, que eram os que mais comumente sacrificavam, e se algumas vezes haviam muitos a serem sacrificados e estes se cansassem, entravam outros que já eram hábeis no sacrifício e , prontamente, com uma pedra de pedernal com que tiram faíscas, desta pedra faz-se uma grande navalha como ferro de lança, não muito afiada; digo isto porque muitos pensam que eram daquelas navalhas de pedra negra, que há nesta terra, e as fazem com o corte tão fino quanto o de uma navalha, e corta tão docemente como navalha, que logo abrem fendas: com aquela cruel navalha grande, como o peito estava tão tenso, com muita força abriam o desventurado e prontamente lhe tiravam o coração, e o oficial desta maldade jogava o coração em cima do umbral do altar na parte de fora, e ali deixava feita uma mancha de sangue; e caído o coração, ele ainda se mexia um pouco na terra, e logo o colocavam em uma tigela diante do altar. Outras vezes, pegavam o coração e levantavam-no em direção ao sol, e às vezes untavam os lábios dos ídolos com o sangue. Às vezes, os ministros velhos comiam os corações; outras, enterravam-no e logo pegavam o corpo e o jogavam rolando escada abaixo; e chegando embaixo, se o corpo era dos presos de guerra, o que o prendeu, com seus amigos e parentes, levavam-no e preparavam aquela carne humana com outras comidas, e em outro dia faziam festa e o comiam ; o mesmo que o prendeu, se tinha como o fazer, dava naquele dia mantos a seus convidados; e se o sacrificado era escravo, não o jogavam a rodar, mas sim o desciam nos braços, e faziam a mesma festa e convite que ao preso de guerra, ainda que não tanto com o escravo...Quanto aos corações dos que sacrificavam, digo: que após tirar o coração do sacrificado, aquele sacerdote do demônio tomava o coração em suas mãos e o levantava como quem o mostra ao sol, e logo voltava a fazer o mesmo ao ídolo, e o colocava diante de um vaso de madeira pintada, maior que uma tigela, e em outro vaso colhia o sangue e o davam como que de comer ao ídolo principal...

Em outros dias daqueles já nomeados se sacrificavam muitos, ainda que não tanto como na festa já dita; e ninguém pense que nenhum dos que sacrificavam matando-lhes e tirando-lhes coração, ou qualquer outra morte, que não era de sua própria vontade, mas sim à força, e sentiam muito a morte e sua espantosa dor. Os outros sacrifícios de tirar sangue das orelhas ou língua, ou de outras partes, estes eram voluntários quase sempre. Daqueles que assim sacrificavam, tiravam a pele de alguns, em umas partes, dois ou três, em outras, quatro ou cinco, em outras, dez, e no México até doze ou quinze, e vestiam aqueles couros, que pelas costas e em cima dos ombros, deixavam abertos, e vestido o mais justo que podiam, como quem veste colete e calças, dançavam com aquela cruel e espantosa vestimenta; e como todos os sacrificados ou eram escravos ou prisioneiros de guerra, no México, para este dia, guardavam algum prisioneiro de guerra que fosse senhor ou pessoa importante e, a este, esfolavam para vestir o couro dele no grande senhor do México, o qual, vestido com aquele couro, dançava com muita solenidade, pensando que fazia grande serviço ao demônio que naquele dia honravam; e a isto muitos iam ver com grande maravilha porque nos outros povoados não se vestiam os senhores com os couros dos esfolados, mas outros principais. Outro dia, de outra festa, em cada parte sacrificavam uma mulher, e esfolavam-na, e alguém se vestia com o couro dela e dançava com todos os outros do povo; aquele vestido com o couro da mulher e os outros com suas plumagens.

Havia outro dia em que faziam festa ao deus da água. Antes que este dia chegasse, vinte ou trinta dias, compravam um escravo e uma escrava e os faziam morar juntos como casados; e chegado o dia da festa, vestiam o escravo com as roupas e insígnias daquele deus, e a escrava com as da deusa, mulher daquele deus, e assim vestidos dançavam todo aquele dia até à meia-noite quando os sacrificavam; e a estes não os comiam, mas sim os deixavam em uma cova como um depósito que para isto tinham.

(FERNANDES, Luis E. de Oliveira. “Motolinía: o choque espiritual no Novo Mundo”, Ideias: Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Unicamp, ano 11, vol. 1, 2004)


Frei Toríbio de Benavente

Frei Toríbio de Benavente, alcunhado ‘Motolinía”, o pobre, nasceu no final do século XV. Era, portanto, um homem que viveu em um contexto de Renascimento cultural e disputas religiosas. Veio para a Nova Espanha como religioso franciscano, atuando no projeto espanhol de colonização. Sendo um homem do Renascimento e do mundo religioso, tinha conhecimentos de Filosofia e Teologia, o que leva Leandro Karnal a classificá-lo como um autor que transitava entre o intelectual e o religioso. Dentro dessa perspectiva, estava inserido no projeto colonial como um agente que utilizava a cultura como um mecanismo da colonização nativa, de forma que fossem eliminadas práticas e alterados comportamentos que não fosse de encontro com a ordem colonizadora. O texto estudado em questão, Tratado primeiro, capítulo VI – Da festa chamada panquezalizti, e dos sacrifícios e homicídios que nela se faziam; e como tiravam os corações e os ofereciam, e depois comiam os que sacrificavam, foi produzido na segunda metade do século XVI, entre 1540 e 1550. É válido salientar que, além de Toríbio ser um homem de um contexto de Renascimento, ele também vinha de uma Europa cujas estruturas políticas, sociais e urbanas ainda guardavam fortes traços medievais, traços esses fortemente influenciadores nas mentalidades de homens e mulheres. Não é exagero afirmar que a Igreja que veio para a América era medieval, igreja essa que reproduziria no território conquistado doutrinação, conversão e controle através do aparelho religioso. Santo Santiago Matamoros, terror dos ‘sarracenos’ durante a reconquista da Península Ibérica (1492), é transformado em Santiago Mataindios na América, isso em um curto intervalo de tempo entre um processo puramente medieval e outro da era ‘moderna’. O local e os inimigos eram outros, mas a ideia era a mesma: conquistar. Toríbio é um dos vários agentes do processo de introdução dos nativos em uma ordem a eles imposta.

Sobre alteridade e síntese de ideias

Alteridade, a questão do outro, como escreveu Todorov no clássico Conquista da América: a questão do outro (1983). Frei Toríbio escreveu etnograficamente sobre os índios da Nova Espanha, impregnado de uma visão de mundo religiosa. Nesse texto, é possível identificar alguns elementos de uma escrita de alteridade. No início, Toríbio inicia sua narrativa como um tradicional cronista religioso e etnográfico, destacando as principais características das festividades nativas e comparando-as com festejos cristãos. Seria essa alguma tentativa de encontrar semelhanças, mesmo que mínimas, entre duas realidades distintas? Ou apenas um parâmetro eurocêntrico? Aos poucos, alguns termos e observações vão dando o tom de uma narrativa que tem por objetivo, além da documentação, depreciar determinadas práticas. A pessoa que realiza o sacrifício é chamado de “oficial do diabo”. Os deuses eram nomeados “ídolos”, que faz remeter ao “terrível pecado da idolatria”. Outro agente do processo de sacrifício é chamado de “sacerdote do demônio”, numa clássica oposição entre o bem (colonizador, Cristianismo) e o mal (nativo, práticas pagãs). Toríbio dá ênfase que, para o sacrificado, o processo “não era de sua própria vontade, mas sim à força”, e que este “sentia muito a morte e sua espantosa dor”. Os adereços utilizados nos ritos (feitos de pele humana) também eram vistos como cruéis e espantosos. Outra forma de se referir aos deuses ou ídolos era por “demônios”, os quais eram honrados pelos indígenas. Dessa forma, Toríbio buscava em sua escrita etnográfica um meio para facilitar o processo evangelizador. Sua crônica é religiosa e etnográfica, intelectual e eclesiástica, descritiva e crítica. Essas passagens escolhidas para falar sobre uma escrita de alteridade, nos permitem entender a mentalidade por trás conquista.

O título do trabalho de onde foi retirado esse texto, Motolinía: o choque espiritual no Novo Mundo, já nos direciona para uma discussão de caráter cultural. Portanto, esse texto do século XVI, amparado por outras fontes de caráter seriado e quantitativo, nos permite, através de sua problematização, identificar elementos do contexto do processo de colonização da América, seus mecanismos e as mentalidades de seus agentes.