quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Manaus, sua origem: As impressões de Alfred Russel Wallace sobre a Vila da Barra do Rio Negro

Vila da Barra do Rio Negro em 1848.

Alfred Russel Wallace foi um dos mais importantes naturalistas do século 19. Após conhecer o entomologista Henry Walter Bates, decidiu empreender uma série de viagens por regiões tropicais, para estudar sua fauna e a flora, além de lançar os fundamentos da Teoria da Evolução das Espécies. Os dois amigos partiram de Liverpool, em 27 de abril de 1848, em um pequeno navio, rumo à foz do rio Amazonas, nela chegando em 26 de maio do mesmo ano. Sobre a vila da Barra do Rio Negro (atual Manaus), Russel deixou preciosas anotações sobre a localização, atividades econômicas e costumes dos habitantes.

Sobre a localização da vila, ele nos informa que ela "está situada na margem leste daquele rio (Negro), cerca de doze milhas acima de sua junção com o Amazonas. E está localizada em um terreno desigual repleto de ondulações, cerca de trinta pés acima do nível das mais altas cheias, e é cortada por dois córregos, cujas águas, na estação chuvosa, atingem a considerável altura, havendo, porém, sobre eles duas pontes de madeira"

As ruas vão ser motivo de reclamação para os futuros viajantes. Para Wallace, "elas são regularmente traçadas; não têm, no entanto, nenhum calçamento, sendo muito onduladas e cheias de buracos, o que torna a caminhada sobre os seus leitos muito desagradável, principalmente à noite".

As casas são simples "geralmente só tem um pavimento; são cobertas de telha vermelha e assoalhadas com tijolos, têm as paredes pintadas de branco ou de amarelo; e as portas e janelas pintadas de verde. Quando o sol bate sobre elas, o efeito é muito bonito."

Do Forte de São José da Barra, núcleo de origem da cidade, erguido em 1669, "só há, presentemente, uns restos de muralhas e um monte de terra".

Existiam duas igrejas católicas na localidade, a dos Remédios e a de Nossa Senhora das Graças. "Muito pobres e bastante inferiores à de Santarém". Manaus não possuía construções imponentes, situação que só iria mudar mais de 30 anos depois, graças a economia da borracha.

Existiam entre 5.000 e 6.000 habitantes, dos quais "a maior parte é constituída de índios e mestiços. Na verdade, não há ali uma única pessoa, nascida no lugar, da qual se diga que seja de puro sangue europeu, tanto e tão completamente se teêm os portugueses amalgamado (mesclado, misturado) com os índios".

Os comércio era baseado na exportação de castanhas, peixes e drogas do sertão, e as importações "são tecidos europeus, de inferior qualidade, cutilaria ordinária, colares, espelhos e outras bugigangas mais". Esses objetos de menor valor eram utilizados no comércio com os indígenas.

gêneros de primeira necessidade, ou produtos mais sofisticados como queijos, vinhos e trigo, "são sempre muito caros e, por vezes, não se pode obtê-los, quando chegam a faltar". 

"Os habitantes mais civilizados da Barra dedicam-se todos ao comércio, não havendo ali qualquer outra diversão, se assim podemos considerar, que não seja a de beber e jogar em pequena escala".

Além disso, hábitos cosmopolitas faziam parte dos costumes locais. "Aos domingos, principalmente, todos trajam as suas melhores roupas. As mulheres vestem-se elegantemente, exibindo lindos vestidos, confeccionados com gazes e musselinas francesas". Os homens deixam os afazeres nos armazéns e "trajam nesse dia bonitos ternos escuros, chapéu de castor, gravata de cetim e finíssimos sapatos de pelica".

O principal passatempo do dia era fazer visitar uns às casas dos outros , "para palestrar, tendo como assunto principal da conversação os escândalos, que se acumularam durante a semana".

Wallace fez uma conclusão que ficou famosa que passou a ser reproduzida em vários livros de História do Amazonas: "os sentimentos morais em Barra estão reduzidos ao mais baixo grau de decadência possível, mais do que qualquer outra comunidade civilizada". Apesar de ser um exímio naturalista, Russel tinha uma visão Eurocêntrica de mundo.



FONTE: WALLACE, Alfred Russel. Viagem pelo Amazonas e Rio Negro. Edição Brasilianas. Série 2°, vol. 158. 1939.


CRÉDITO DA IMAGEM: catadordepapeis.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Manaus, uma cidade pra ser amada


Por Otoni Moreira de Mesquita


Chegar a Manaus é sempre um impacto. Depois de horas de voo ou dias navegando por densas áreas verdes, recortadas por curvas ocres e negras, depara-se com uma grande clareira que ruge animadamente. Surge clara e nua, banhada pelas águas escuras de um belo rio que lhe embeleza. De noite ou de dia, é sempre um espetáculo, mesmo para aqueles que estão sempre a retornar. Mas parte do encanto se desfaz, ao constatar que a ânsia de modernizar se desfaz de suas belezas naturais. 

Quarenta anos após a implantação da Zona Franca de Manaus não há como duvidar do crescimento manifesto em vários setores da sociedade. A arrojada expansão da cidade é sem dúvida conseqüência de suas atividades econômicas que vem atraindo grande contingente de trabalhadores de outros estados. O crescimento populacional, assim como o nível de desigualdade social pode ser medido pela ampliação exagerada das periferias suburbanas e dos arrojados empreendimentos verticais que se multiplicam, em algumas áreas da cidade. Contudo, a falta de infraestrutura necessária, não somente material, mas, sobretudo, sociocultural, faz deste crescimento uma coisa ameaçadora para todos os segmentos sociais.

Tal como ocorreu no final do século XIX, um novo surto de prosperidade econômica direciona mudanças radicais na cidade, visando atender as novas necessidades de circulação, segurança e garantir as demandas de crescimento, sobretudo dos setores industriais e comerciais. Contudo, populações sem qualquer qualificação sobrevivem com grande dificuldade nas áreas urbanas e sem condições de penetrarem no mercado de trabalho, portanto, sem instrumentos que permitam exercitar pleno direito de cidadania, permanecem excluídos. O desafio é estabelecer políticas públicas capazes de promover a integração, valorização e a inclusão deste contingente no viver social da cidade.

Compreende-se que uma sociedade democrática, deva ser regida por interesses dos mais variados segmentos, não somente pelas políticas econômicas. Certamente, as decisões seriam representativas, contemplando múltipla participação e promovendo diferentes necessidades e interesses. Assim, gerando uma sociedade mais humana, justa e sensível.

Quanto aos aspectos ambientais, históricos e patrimoniais, nota-se que mesmo, parcialmente protegido pela Lei Orgânica do Município, e ensaiadas algumas tentativas no sentido de recuperar, sobretudo, alguns exemplares do patrimônio arquitetônico. No entanto, grande parte das belas edificações do Centro histórico de Manaus se encontra completamente abandonada, outras sem qualquer conservação, e muitas definitivamente agredidas: descaracterizadas ou demolidas. Patrimônio arquitetônico e o natural permanecem em risco, agredidos e degradados em uma velocidade acelerada. Igarapés continuam poluídos, mesmo que parte de suas margens tenham sido embelezadas. O verde da arborização e das praças, com raríssima exceção, foi subtraído ou substituído por magrelas palmeiras importadas de outras regiões. Para o cidadão não há caminhos com sombra, transporte digno ou calçadas contínuas e regulares.

Infelizmente, o patrimônio material e imaterial não está amparado por uma política pública autônoma e contundente, capaz de se confrontar com interesses econômicos. Com amplos poderes de atuação, não somente em sua extensão geográfica, mas, sobretudo, no âmbito cultural. Para tanto, suas ações devem encontrar respaldo nos currículos escolares, cujos conteúdos e metodologias inculquem idéias e valores que fortaleçam as noções de cidadania e pertencimento da cidade.

Grandes empreendimentos na área da construção civil e das obras públicas vêem produzindo construções arrojadas, denotando uma clara situação de prosperidade. No entanto, esta aparência não parece de acordo com as condições enfrentadas pela maior parte da população. Ou seja, a convivência com deficiências de serviços públicos básicos, como a educação, saúde e transporte. Além de uma rotina marcada por outros setores que necessitam ser continuamente acompanhados, ou seja, a melhoria e ampliação do serviço de distribuição de água, iluminação pública, pavimentação de ruas, calçamento para pedestres, ciclovias, instalação de rede de esgotos, engenharia e sociologia do trânsito. Que pensem no homem como usuário da cidade.

A sociedade tem pressa em demasia, violência em excesso e solidariedade e fraternidade de menos. Por este ângulo, a cidade humanizada, embelezada, e tranquila só faz sentido e só será economicamente rentável, para usuários sensibilizados com estes aspectos. Não se deve esperar uma mudança radical no modelo de cidade, se não houver mudanças nas relações sociais, econômicas e, sobretudo, culturais que se processam em seu interior. Novas práticas exigem o apoio de uma população sensibilizada e predisposta a adotá-la. Assim, a aceitação e a eficácia de sua implantação, em geral, exigem um trabalho de médio e longo prazo, vinculado a uma mudança substancial no processo educativo. Não há como preservar a mais bela das cidades, ou as práticas mais tradicionais se não tiverem sentido para os seus usuários. Não se trata de decorar um discurso ou obedecer a leis, mas de uma relação afetiva que envolve sensibilidade e pertencimento.

Não é suficiente recuperar, conservar, limpar e embelezar espaços públicos, nem estabelecer leis de conservação e fiscalizar sua aplicação. É necessário inculcar idéias que sensibilizem aqueles que usufruem desses espaços; planejar estratégias para as gerações futuras. Que as manifestações culturais não sejam transformadas apenas em espetáculos, nem que os espaços públicos sejam embelezados somente para o lazer de alguns. Mesmo que os espaços ganhem novos significados, que se busque preservar as referências e a memória que possam proporcionar um relacionamento afetuoso com a cidade.

Acreditamos que recuperando monumentos e seus entornos, é possível propiciar uma valorização da auto-estima da população, fazendo com que esta se reconheça, não somente como usuária, mas como a protetora que ama, preserva e se orgulha de sua cidade. De fora para dentro, a recuperação destes espaços poderá auxiliar na construção e difusão de uma imagem da cidade mais bela e humana.

Sem dúvida é necessário que as idéias circulem na esfera da administração pública, dos empresários e da população, mas a ideia não é suficiente, se faz necessário animá-las a partir do pronunciamento de nossos representantes, na Câmara, na Prefeitura, na Assembléia, no Senado, sobretudo, no governo do Estado: administradores competentes, políticos sensíveis e sabedor das necessidades e processos, que trabalhem pelo bem comum e sejam capazes de convencer seus pares e mantenham a continuidade dos projetos. Sem dúvida, é um filão político e que poderá trazer grandes dividendos econômicos para a cidade, mas que ainda exigirá algum tempo.






Otoni Moreira Mesquita nasceu em Autazes-AM, em 27 de junho de 1953. É artista plástico e professor da Universidade Federal do Amazonas. Formado em jornalismo (1979 - UFAM) e em Gravura (1983 - Escola de Belas Artes - UFRJ). É mestre em Artes Visuais e História e Crítica da Arte (1992 - UFRJ). De março de 1997 a dezembro de 1998, atuou como coordenador do Patrimônio Histórico, da Secretaria de Cultura e Estudos Amazônicos. É doutorado em História Social pela UFF, concluído em 2005 com o trabalho O Mito de progresso na refundação da cidade de Manaus: 1890/ 1900. Livros publicados: La Belle Vitrine: Manaus entre dois tempos - 1890/1900 (2009) e Manaus: História e arquitetura - 1852/1910 (3 edições. 1997, 1999 e 2006).








CRÉDITO DA IMAGEM: http://turismo.culturamix.com/

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Um olhar sobre o século 21



1997, ano do meu nascimento e final do século 20. Com quatro anos, assisti pela televisão, um dos atentados mais marcantes da História: em 11 de setembro de 2001, dois aviões foram lançados por terroristas islâmicos nas duas torres do World Trade Center; um terceiro avião no Pentágono; e um quarto no Estado da Pensilvânia. Morreram cerca de 2977 pessoas, entre funcionários do WTC, passageiros dos aviões sequestrados, funcionários do Pentágono e bombeiros que socorriam as vítimas. A Guerra Santa (Jihad) promovida por radicais islâmicos; o preconceito religioso e étnico contra os árabes, gerado pelo trauma da sociedade americana; e a Guerra ao Terror, investida militar americana contra o terrorismo, marcada pela invasão do Iraque e Afeganistão. Ao meu ver, assim começava o século 21, de forma conturbada e marcado pela guerra.

A primeira resposta dos Estados Unidos ao atentado de 2001 foi a Guerra do Afeganistão, na qual forças americanas, apoiadas pela Força Islâmica Unida e países como a França e Reino Unido, visavam a captura do terrorista Osama bin Laden e outros membros da Al Qaeda e por um fim no regime Talibã. Em 2011 bin Laden foi capturado e morto. Os Estados Unidos, no entanto, tiveram grandes baixas e altos gastos.

Em 2002, os Estados Unidos, sob o comando do presidente George W. Bush, acusavam o Iraque de possuir um poderoso arsenal de armas de destruição em massa. Não só o Iraque, mas também o Irã e a Coréia do Norte, que, nas palavras do presidente, formavam o "Eixo do Mal". Os Estados Unidos estavam planejando invadir o país caso a ONU não tomasse medidas drásticas. A Organização investigou o Iraque, mas não foram encontradas provas a favor da acusação americana. Contrariando a ONU, Os Estados Unidos, com o apoio da Grã-Bretanha, invadiu o Iraque em 2003 e, no mesmo ano, conquistou a capital Bagdá. Mais tarde, ONU legitimou a presença anglo-americana no território. O ditador Saddam Hussein foi capturado em 2003 e condenado por cometer crimes de guerra. Foi enforcado em 2006. Terminada a guerra, com um saldo de 100 mil civis mortos, as forças anglo-americanas não conseguiram provar a presença de armas de destruição em massa no Iraque.

Sabe-se que, além de justificativas militares e investidas contra o terrorismo, os Estados Unidos tinham interesses econômicos, pois o Iraque é rico em reservas de petróleo. O brasileiro Sérgio Vieira de Mello, funcionário da ONU e Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Unidos - e outros 14 funcionários da organização, foram mortos em um atentado em Bagdá, atribuído à Al Qaeda.

A economia mundial também mostrou que era propensa à grandes crises como a que se iniciou em 2008. Depois dos atentados de 11 de setembro, os Estados Unidos passaram a investir maciçamente em material bélico e também estavam importando mais do que exportavam. Com a economia fragilizada e recebendo ajuda financeira do exterior, o governo americano reduziu os juros numa tentativa de incentivar o consumo. Milhões de americanos, alguns considerados de risco (nome sujo), financiaram a compra de imóveis. A situação econômica foi piorando, a inflação aumentou, e os juros tiveram que ser aumentados pelo governo. Os financiamentos, muitas vezes, tinham juros variáveis, fazendo com que pessoas que financiaram com juro baixo tivessem que pagar um juro mais alto.

As pessoas que fizeram os empréstimos ficaram sem condições de pagá-los, o que gerou um efeito dominó: sem o pagamento dos empréstimos, as casas financiadoras ficaram sem dinheiro para pagar os bancos. Em pouco tempo, a Bolsa de Valores foi atingida. Igual a Crise de 1929, os países que mantinham relações econômicas com os Estados Unidos também tiveram suas economias atingidas. Aumento de juros bancários e queda de bolsas se tornaram frequentes na vida desses países.

Neste século, a internet, o celular, computadores multi-uso, DVDs e produtos de última geração estão cada vez mais presentes em nosso cotidiano. Além desses avanços, a descoberta de novos planetas, a maioria deles em condições de abrigar vida;  o Projeto Genoma, criado para desvendar o código genético dos organismos; e melhorias na Medicina e em tratamentos, são avanços técnicos que permitem o intercâmbio de conhecimentos e o aumento da expectativa de vida.

Uma Primavera jamais vista atingiu o Norte da África e o Oriente Médio. Era a Primavera Árabe, uma onda de revoluções e protestos contra governos corruptos e autoritários e a favor de melhores condições de vida. Os primeiros protestos começaram na Tunísia em 2010, e terminaram vitoriosos em 2011, com a deposição do ditador Abidine Ben Ali, que estava no poder desde 1987. A vitória tunisiana influenciou a Líbia, o Egito, a Argélia, a Síria, o Barhein, o Marrocos, o Iêmen, a Jordânia e Omã. Além do governo da Tunísia, também foram derrubados os da Líbia, Egito e Iêmen.

O Brasil ficou marcado pelos Protestos de Junho de 2013. A redes sociais se mostraram poderosos mecanismos de mobilização popular. Mais de 430 cidades, capitais ou interioranas, estiveram envolvidas nesse evento. As causas que motivaram as manifestações foram várias: aumento da tarifa do transporte público; PEC 137, projeto de lei que, se fosse oficializado, tiraria do Ministério Público o poder de investigar crimes; Repressão policial; e gastos vultosos em obras e eventos esportivos. Em meio aos manifestantes que queriam mudanças na "ordem" vigente, existiam pessoas que agiam de forma violenta, depredando o patrimônio público, agredindo pessoas e envolvendo na causa o partidarismo político. Terminados os protestos em julho de 2013, algumas medidas foram tomadas pelos governantes: redução da tarifa do transporte público; Aprovaram o projeto de lei que tornava a corrupção um crime hediondo; e arquivaram a PEC 137.

Século 21. Em um curto espaço de tempo já presenciamos momentos que entraram para a História. Avanços tecnológicos, guerras, invasões de territórios, embates entre Esquerda e Direita, enfraquecimento das religiões dominantes e ascensão de outras, manifestações no Brasil e disputas por territórios. Todos esses eventos em menos de duas décadas. Até 2100, nos surpreenderemos com nossos próprios atos, tanto para o bem quanto para o mal.



CRÉDITO DA IMAGEM: http://blogdelapraca.files.wordpress.com/
















quinta-feira, 17 de julho de 2014

Meu Bairro Querido

Uma rua do bairro São Lázaro em 1960.

Moro na Zona Sul de Manaus. Essa zona, acredito eu, é diferente do que se vê em outras cidades do país. Ela não abriga bairros nobres. Aqui, a maioria dos mais abastados estão na Zona Centro-Sul e Oeste. A parte sul, porém, guarda os bairros mais antigos, os que deram origem a cidade.

O bairro São Lázaro nasceu na década de 1950. Eram tempos difíceis para o Amazonas. Passados o efêmero Ciclo da Borracha de 1890 a 1920 e a rápida recuperação Durante a Segunda Guerra Mundial, o Estado vivia mais de 30 anos em recessão econômica. Primeiro foram os europeus que a abandonaram, depois foi Getúlio Vargas, que utilizou a região para fornecer borracha para os Aliados.

Além da péssima situação financeira, a natureza também agravava a situação. Em junho de 1953, as águas do Rio Negro atingiram a marca de 29,69 metros. Essa foi, por décadas, a maior cheia do Amazonas. Várias famílias vieram do interior para a capital, ocasionando o primeiro boom populacional da cidade. O São Lázaro, ou "Barro Vermelho", nome que recebia por causa da coloração do solo, nasce durante esse período, sendo fundado por seringueiros abandonados, os 'Soldados da Borracha', e por pessoas vindas de cidades como Itacoatiara, Manacapuru e Parintins.

Com a instalação da Zona Franca em 1967, o progresso trouxe, além de melhorias, problemas que existem até hoje, tanto no bairro como na cidade. Ruas foram asfaltadas, a energia elétrica e a água chegaram nas residências. Os problemas ficam por conta das constantes invasões que o bairro sofreu, principalmente na Rua Magalhães Barata e adjacências.

Foi pelas mãos de Carlos Viana, um jovem de 14 anos que sonhava em ser padre, que o bairro passou a ser reconhecido desde 1958. Carlos saiu de Manaus em 1972, quando entrou para a Polícia Militar de Porto Velho. Desde aquela época, perdeu-se contato com ele. Seu nome caiu no esquecimento do bairro. Nenhuma rua ou instituição leva o seu nome. A História está aqui para lembrar as pessoas de suas origens.

Hoje o São Lázaro cresce à passos lentos. O progresso parece ter dado uma "pausa". O Catolicismo é a religião predominante, marcando a paisagem com procissões em nome do Santo Lázaro. No início, os moradores sobreviviam da venda de capim para fábricas de colchões, da coleta de caju e da produção de farinha. Hoje, a economia é baseada em pequenos comércios e na renda da maioria dos moradores que trabalham no Polo Industrial. Vez ou outra temos uma ocorrência, mas nada que abale as estruturas.


Bairro São Lázaro em 2013.



CRÉDITO DAS IMAGENS: Paróquia São Lázaro
                                   Google Street View




sábado, 5 de abril de 2014

Um Tesouro no bairro de Educandos

Tirando a fiação, que polui a paisagem, é um belo prédio entre as esquinas da rua Manoel Urbano e Boulevard Sá Peixoto.

Depois do sucesso do artigo Casarões e Palacetes de Manaus, prometi aos leitores abordar novamente o assunto. Dessa vez vamos ao Educandos, tradicional bairro da Zona Sul de Manaus. Nesse bairro, ainda existem alguns exemplares de casarões antigos. Próximo a ponte Pe. Antônio Plácido de Souza (indo para o Centro), é possível observar, do ônibus, do carro ou até mesmo em uma caminhada, conjuntos de casas construídas entre os anos 40 e 50. O que mais impressiona é que, os moradores dessas residências, tem conservado um hábito cada vez mais difícil de se ver nas grandes cidades: No final da tarde, cadeiras na frente de casa e muitas conversas entre a família e os vizinhos.

A primeira construção, de 1956, é de autoria de Raimundo Alves de Oliveira (1906-1979), cearense que veio para Manaus em 1953 e se tornou famoso por transformar a arquitetura do Educandos entre 1955 e 1970.

Mas porquê Um Tesouro no bairro de Educandos? Um tesouro, pelo simples fato de que, a construção histórica que irei abordar, 'a Vila Cavalcante' trata-se do único exemplar de arquitetura centenária preservada que restou no bairro.

Hoje pela manhã me encontrei com Cláudio Amazonas, escritor, historiador e pesquisador sobre o bairro de Educandos. Conversamos e tirei algumas dúvidas sobre a Vila Cavalcante. Depois de algumas horas de conversa, fui tirar algumas fotos do casarão. Sobre as fotos, aconteceu um fato interessante. Enquanto eu as tirava, uma senhora que estava observando me perguntou: O que tem de tão especial nessa casa ? Eu disse que é um casarão centenário, último exemplar do bairro. Com espanto ela disse: Menino, eu não sabia, pensava que esse 1912 era o número de localização e não a data da construção.


A Antiga Vila Cavalcante

A antiga Vila Cavalcante, último exemplar conservado e um dos primeiros prédios feitos em alvenaria no bairro.

Segundo o escritor, historiador e pesquisador Cláudio Amazonas, o casarão da antiga Vila Cavalcante foi um dos primeiros prédios de alvenaria a ser construído no bairro. No início do século 20, ruas largas e arborizadas em Constantinópolis (em homenagem a Constantino Nery, governador da época), eram ocupadas por edificações parecidas umas com as outras, com uma arquitetura de origem portuguesa que lembravam chalés.

Na rua Delcídio Amaral existe a Vila Neuza, construída em 1889 (totalmente descaracterizada) e, no Boulevard Sá Peixoto a Vila Péres construída no mesmo ano (já demolida e sem registro algum). No Boulevard Rio Negro, existiram até 1988, dois lindos chalés construídos em 1906 pelo Coronel do Exército Brasileiro e diretor do Hospital Geral de Manaus, José Leandro Hermes de Araújo.

Vamos a principal edificação. No Boulevard Sá Peixoto, a Vila Cavalcante, construída em 1912, é a única dessas construções que o "tempo" não levou e mantem suas características originais.

Em cima do óculo, a data: 1912.

A antiga Vila leva o nome de uma família de seringalistas do Alto Juruá, adquirida em 1912 pelo regatão Manuel Figueiredo de Barros, que morou nela até 1935, quando a vendeu para o comerciante de estivas Joaquim Ferreira da Silva, pela importância de Rs.: 11.000$000 (onze mil contos de réis), através do recibo de 5 de maio daquele ano.

Joaquim Ferreira e a família, 1939.

Na Vila Cavalcante, sob a proteção da família Ferreira, ali residiram, entre as décadas de 40 e 50, importantes personalidades, dentre elas Siqueira Campos, primeiro governador e político de grande expressão no Estado de Tocantins, e os irmãos Denizard (advogado no Rio de Janeiro) e Deni Menezes, famoso repórter esportivo da Rede Globo de Televisão.

Na Vila funcionou, logo que foi criado, em 1924, o Grupo Escolar "Machado de Assis", e na década de 30 o escritório dos Correios, sob a chefia de dona Ivone Robert da Encarnação. Até 19 de novembro de 1990, residia ali, com os filhos, a herdeira de Joaquim Ferreira, dona Hilda, viúva de Adauto Costa, quando a propriedade passou às mãos do comerciante Américo de Souza Santos e, logo em seguida, para o comerciante Demétrio Salles.

Atualmente o prédio pertence à Fundação Santa Catarina, uma organização religiosa vinculada à Igreja Católica.

Esse casarão, assim como eu disse em Casarões e Palacetes de Manaus, é parte da história de Manaus. Graças ao bom coração de seus proprietários, a Antiga Vila Cavalcante permanece de pé. Manaus é assim, a cada caminhada uma nova descoberta a ser feita.


Cláudio Amazonas

Hoje pela manhã, eu e o escritor, historiador e pesquisador Cláudio Amazonas.

Cláudio Amazonas nasceu em 1° de maio de 1945, é jornalista, bacharel em Teologia e graduando em Docência do Ensino Superior. Trabalhou nos jornais A Crítica, Jornal do Commercio, A Notícia e Diário do Amazonas, como repórter, chargista, copy desk e editor. Foi secretário do Serviço de Loteria do Estado, chefe do setor de Comunicações, secretário geral e diretor administrativo da Centrais Elétricas do Amazonas S/A - Celetramazon; foi diretor administrativo/financeiro da Companhia de Navegação Interior do Amazonas - Conavi, diretor-administrativo/financeiro da Empresa Amazonense de Extensão Rural - Emater, pertenceu a diretoria do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado do Amazonas e suplente de Deputado Estadual.

Estreou na literatura com Memórias do Alto da Bela Vista - Roteiro Sentimental de Educandos, lançado na solenidade dos Cem Anos do Teatro Amazonas (1996), seguido de Gonçalo, o Rei da Noite - As peripécias de um certo marreteiro, premiado nacionalmente no I Concursos Literários Cidade de Manaus; Constantinópolis: Origens e Tradições, Prêmio Mário Ypiranga Monteiro, promovido pela Secretaria Municipal de Cultura e Academia Amazonense de Letras (1997). É membro da Academia de Letras e Artes de Paranapuã - Alap (Ilha do Governador/Rio de Janeiro).

É autor, ainda, de Confidências (poesia-inédito) e Reminiscências, (crônicas-inédito) e Sem Testemunhas (romance policial inédito).


Mais fotos do casarão


















terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Memória Afetiva da Cidade

CIDADE DA MEMÓRIA 

1° semestre de 2002

Por Otoni Moreira de Mesquita

Vista aérea do Centro de Manaus, 1960.

Ainda que aparentemente mergulhado em devaneio nostálgico, justifico esse meu passeio afetivo por uma cidade que mistura o vivido ao imaginado, e ainda que estejamos em outra época acredito ser possível compartilhar, mesmo com aqueles de memória mais recente. Não é preciso ter vivido aquele momento para encantar-se com seus elementos. Senão que validade teria fazer História e como explicaríamos o despertar das paixões pelas antigas civilizações; interesse pelas outras culturas, de que valeriam as reflexões que tentam, mas nem sempre evitam a repetição das mesmas ações equivocadas.

Mas o que me interessa nesse momento, é discutir que elementos despertam o interesse e encantam a imaginação, mantendo em nós a história uma coisa viva. Certamente não são as repetições de datas e nomes dos pontos decorados no grupo escolar. Penso que deve existir um momento ou um ato capaz de atiçar a fantasia e a memória, algo presente no ato de contar a história. Seria a narrativa em si, “o como”, apenas uma questão de talento que pode ser aperfeiçoado, ou algo natural e especial na postura, no timbre da voz, na sensualidade ou afeto contido gesto, não importando “o que” se conte - mentira ou verdade soam com a mesma intensidade. O certo é que há qualquer coisa que vibra e contagia, reverberando e gravado em nossa película interna. Por outro lado, penso que a imaginação é algo em nós guardado, como asas que ao receber um sopro qualquer ganham impulso e podem fazer voar.

Hoje, mesmo a academia, tende a escapar daquela história de narrativa insípida e fria, insossa para digerir, estimulando outras abordagens. A Nova História abre-se num grande leque de possibilidades: são as micros histórias, as questões regionais, situações que se restringiram a pequenos grupos locais e nem por isso deixaram de refletir o todo de uma realidade. A história oral com seus sons e tons, e as imagens trazendo momentos e personagens que já se foram. As idéias, as técnicas, a política. Indo ao tempo remoto ou vindo ao momento recente, tudo pode ser relevante. E como são tantas as lacunas, penso ser urgente recuperar tudo que nos for possível, os mais diversos aspectos da história da nossa cidade, mesmo que recente ou pessoal não importa. Ainda que pequena e aparentemente banal poderá ser algo vibrante e original. O tempo é como um grande incêndio, passa devorando tudo que não fica protegido, não basta reter em nossas memória, é preciso compartilhar, deixando para o futuro.
            
Penso assim por lembrar de significativos momentos passados no 4o ano primário, quando a professora Aurelina, uma gaúcha de longa trança negra nos fazia cantar: o “terra dos Barés, dos igarapés...”, falava dos rios colossais, contava do ciclo áureo da borracha, mostrando diferentes aspectos da cidade, lembrando da riqueza marcada na fachada dos prédios antigos; da instalação da eletricidade e dos bondes como uma novidade que chegou à poucas cidades.

Aqueles momentos não desbotaram, ficaram em mim gravado, e penso que modelaram uma espécie de arquétipo da cidade que fui construindo, misturando ao vivido e ao imaginado. Desde então, carrego e monto uma cidade cuja matéria, pode não corresponder precisamente à verdade que temos na razão. Nesse espaço abstrato, que é bem a cara da gente, guarda-se de tudo, coleções de pequeninos fatos, assim como fragmentos e traços do material. Arquivos que retém o cheiro da chuva no barro, o gosto das suculentas  pitanga do cemitério, o canto triste das cigarras nas pitombeiras do fim do dia. Não é um cenário que pode ser desmontado, ou somente uma montagem de diferentes temporalidades, nem esquema, nem réplica da cidade, são apenas representações, e mesmo que apontem para diferentes direções, funcionam como bússola a nos guiar.

Penso que a lembrança desse fato pode remeter diretamente ao papel assumido pelas narrativas na construção e permanência de mitos e heróis. Ciclicamente eles necessitam ser rememorados, remontados, ganham corpo e vontade, dando sentido à existência, sustentando e fortalecendo a cultura que os gerou. Caso contrário serão apagados e esquecidos como qualquer mortal. Parece-me que somente na circularidade do sistema adotado são capazes de existir essas entidades. Como aplicar isso à cidade? Será que apenas nossas imagens colecionadas e meia dúzia de significados são suficientes para dar sentido e manter viva a alma da cidade?


Otoni Moreira Mesquita nasceu em Autazes-AM, em 27 de junho de 1953. É artista plástico e professor da Universidade Federal do Amazonas. Formado em jornalismo (1979 - UFAM) e em Gravura (1983 - Escola de Belas Artes - UFRJ). É mestre em Artes Visuais e História e Crítica da Arte (1992 - UFRJ). De março de 1997 a dezembro de 1998, atuou como coordenador do Patrimônio Histórico, da Secretaria de Cultura e Estudos Amazônicos. É doutorado em História Social pela UFF, concluido em 2005 com o trabalho O Mito de progresso na refundaçao da cidade de Manaus: 1890/ 1900. Livros publicados: La Belle Vitrine: Manaus entre dois tempos - 1890/1900 (2009) e Manaus: História e arquitetura - 1852/1910 (3 edições. 1997, 1999 e 2006).







CRÉDITO DA IMAGEM: www.manausdeantigamente.blogspot.com.br


domingo, 2 de fevereiro de 2014

A Família Romana

Família Romana. Lawrence Alma-Tadema.

A vida familiar na Roma Antiga era bastante conturbada. As separações entre casais eram comuns, e geralmente as crianças ficavam com o pai. Durante toda a vida, uma pessoa poderia se casar inúmeras vezes, como indicam várias inscrições funerárias da época.

Os romanos não tinham um termo específico para designar o que chamamos “família”. A palavra familia englobava todos aqueles que viviam sob a autoridade do pater familias, crianças e adultos, homens e mulheres, livres e escravos. Empregavam também a palavra domus (casa) que representava todos que moravam em uma mesma habitação.

Em Roma existiam três estruturas distintas: a família nuclear, a tríade pai-mãe-filho; a família ampliada – várias gerações que coabitavam sob a autoridade do patriarca; e finalmente a família múltipla, que congregava pessoas e outras famílias nucleares unidas por contratos de casamento.

Nas classes médias e populares as famílias eram muito mais estáveis do que na aristocracia. Nas inscrições funerárias há elogios freqüentes às mulheres que viveram em paz com seus maridos durante 20, 30, até 60 anos. Mas também existiram famílias reconstituídas. A morte de um dos cônjuges levava o sobrevivente a assumir uma nova união. Alguns documentos mencionam mulheres que foram casadas várias vezes.

Já nas classes dominantes, o casamento era equivalente a um acordo político. Não significava uma aliança afetiva, mas obedecia, na maior parte das vezes, às flutuações táticas das forças atuantes. Muitos dos homens (e das mulheres) influentes de Roma tiveram várias uniões. Sylla, Pompeu e Antônio esposaram cada um cinco mulheres; os imperadores Calígula e Cláudio se casaram cada um quatro vezes. Entre as mulheres, o recorde parece pertencer a Vistilia, mãe do grande general da época de Nero, Corbulão: ela teve sete filhos de sete maridos em um período de 20 anos.

A mulher podia pedir o divórcio sem ter de se justificar. O divórcio tornou-se uma prática tão banal na alta sociedade romana que Sêneca estigmatizou suas concidadãs: “Elas se casam para se divorciarem, e se divorciam para se casarem”. Messalina aproveitou a ausência do marido, o imperador Cláudio, para se declarar divorciada e celebrar seu casamento com o amante Silius.

Algumas vezes essas uniões firmadas em uma contingência política provocaram situações escabrosas. Pompeu esposou em terceiro matrimônio a nora de Sylla, Aemilia, que estava grávida de seu primeiro marido, Acilius Glabrio. Mas isso não impediu que ela se instalasse na casa de seu novo marido. Pouco depois, morreu ao dar à luz um menino, que foi imediatamente transferido para a casa de seu pai natural. Augusto, cuja mulher Escribônia estava grávida, apaixonou-se loucamente por Lívia, que também estava grávida, e era casada com Nero. Augusto esperou que Escribônia desse à luz sua filha Júlia para repudiá-la no próprio dia de seu parto. Em seguida, casou-se com Lívia que deu à luz em sua casa.

Desde o fim da República, a antiga fórmula de casamento que submetia a esposa ao marido caíra em desuso. A mulher casada continuava legalmente independente, até mesmo no campo financeiro. O dote, que consistia em moedas, jóias, prataria, mobiliário, terras e escravos, era confiado ao marido, mas somente sua renda podia ser empregada para a vida do casal. Em caso de divórcio ou viuvez, a mulher recuperava integralmente seu dote. Ela também tinha o direito de legar seus bens a quem desejasse. Só quando o adultério era o motivo do divórcio o marido ficava com uma parte do dote.

As crianças eram as que mais sofriam com as sucessivas uniões de seus pais. Em caso de divórcio, geralmente elas eram separadas da mãe, ficando sob guarda paterna. As madrastas deviam garantir a educação de seus enteados, muitas vezes tão jovens quanto elas. Os irmãos e irmãs nascidos de um mesmo pai eram educados juntos, mas não mantinham vínculos com os filhos que suas mães tinham de outras uniões.

As crianças órfãs de pai se encontravam em uma situação ainda pior: deveriam ficar com a família paterna ou poderiam se unir à de sua mãe? Com 3 anos, o pequeno Nero perdeu seu pai enquanto sua mãe estava exilada em Roma. Morou com sua tia paterna, Domitia Lépida, que se desinteressou da criança e a confiou a dois escravos, um dançarino e um barbeiro. Quando Agripina retornou do exílio, casou-se com Sallustius Crispus, e em seguida com o imperador Cláudio, trazendo o filho para morar com eles. Mas a sorte de Nero não melhorou: novamente sua educação foi entregue a dois escravos.

No entanto, há casos de reagrupamentos familiares mais felizes. A irmã do imperador Augusto, Otávia, cuidou ao mesmo tempo de seus próprios filhos e dos que seu marido Antônio teve de outras uniões. A “família” de Otávia se compunha de três filhos de seu primeiro casamento, de suas duas filhas nascidas de Antônio, dos dois filhos de Antônio e de Fúlvia e dos três filhos de Antônio e Cleópatra.

O concubinato era uma forma de casamento inferior entre uma mulher livre que vivia com um homem sem ser sua esposa. Era proibido ter ao mesmo tempo uma esposa e uma concubina. Mesmo assim, o concubinato era freqüente, sobretudo entre escravas libertas e seus antigos donos. Muitas vezes os homens das classes superiores uniam-se a uma concubina após terem sido casados regularmente uma ou duas vezes.

Outra forma de união, o contubernium ou “coabitação”, ocorria quando um dos membros era de origem servil. Era, em particular, o caso das uniões entre escravos, que podiam ser tão estáveis quanto os casamentos dos homens livres. Além disso, sempre existiram relações entre o patrão e as mulheres escravas, consentidas ou não. O mesmo acontecia entre mulheres livres e homens escravos.

A criança nascida dessas relações não era reconhecida pelo pai. Seguia a condição da mãe: o filho de uma escrava era escravo, de uma mãe livre, era livre. O pai não tinha nenhuma obrigação de alimentá-la e a excluía de sua herança. O único modo de o pai obter o pátrio poder era adotando-a.

pater familias tinha o direito de modificar a composição da família suprimindo as crianças que não desejava ou adotando um filho para sucedê-lo. Muitas razões, em particular para os pobres, que enfrentavam dificuldades para alimentar muitas bocas, podiam levar o pai a não reconhecer um filho, mesmo legítimo. Isso era praticado em todas as classes sociais e atingia principalmente as filhas. O futuro imperador Cláudio abandonou sua filha Cláudia, pois suspeitava que ela era fruto dos amores adúlteros da mulher com seu escravo liberto Boter. Uma criança abandonada podia ser recolhida para ser adotada. Na maioria das vezes, no entanto, estava destinada à escravidão. Essa prática só foi revogada no século IV.

Uma família precisava de um filho homem para receber em herança os bens do pai e garantir a permanência do culto das divindades da casa. Na ausência de filhos, era necessário recorrer à adoção de um rapaz que, na maioria das vezes, já tivesse atingido a idade adulta. 
Nos meios mais populares, os homens que não tinham descendentes adotavam, muitas vezes, um de seus escravos libertos.

Por múltiplas razões, a família nuclear em Roma estava ameaçada por rupturas e reconstituições constantes. As crianças eram as principais vítimas dessa situação. Felizmente para elas, a estabilidade era garantida por aqueles a quem eram confiadas, as amas e os nutritores (pais babás) que não as deixavam durante todo o período da infância. Eles eram chamados pelas crianças de tata (papai) e mama (mamãe), e muitas vezes esses pais substitutos ficavam toda a vida ao lado de seus antigos protegidos.

O surgimento do cristianismo modificou a concepção romana de família e rompeu com as práticas matrimoniais do mundo pagão. Apoiandose em textos dos Evangelhos (“Que o homem não separe o que Deus uniu”) e das epístolas paulinas (“Que a mulher não se separe de seu marido... e que o homem não repudie sua mulher”), os Pais da Igreja declararam a obrigação da monogamia e a indissolubilidade do casamento, proibindo o divórcio.

Durante o primeiro milênio, o casamento permaneceu um assunto no qual a Igreja não intervinha. Foi somente em 1215, quando do concílio de Latrão IV, que o casamento se tornou o sétimo sacramento da Igreja católica e se transformou em um ato público efetuado em uma igreja diante de um religioso.

No entanto, com a queda do Império Romano no início do século V, o direito germânico se sobrepôs ao romano e introduziu novas práticas entre as famílias. A poligamia era muito arraigada entre os germânicos: ao lado da esposa legítima, geralmente o homem tinha esposas secundárias, as friedlehe (promessas de paz) e concubinas escravas.

Carlos Magno teve cinco esposas legítimas e ao menos quatro concubinas oficiais. Todas essas mulheres lhe deram 17 filhos ou mais. Esse pai tão afetuoso nunca se separou de sua numerosa prole: quando viajava, todos os filhos cavalgavam a seu lado e as filhas seguiam acompanhadas por guardacostas. Carlos Magno amava tanto suas filhas que não conseguia decidir- se a concedê-las em casamento. Desse modo, permitiu que se tornassemfriedlehes de amantes que moravam com elas. A mais velha, Rotrude, vivia com Orgon, duque do Maine, com quem teve um filho. No palácio de Aix-la-Chapelle, coabitavam, sob a autoridade de Carlos Magno, várias mulheres e concubinas, filhos legítimos e bastardos, amantes das filhas, netos, sem esquecer sua mãe Berta, que morreu com idade avançada. Todo esse pequeno mundo viveu mais ou menos em harmonia, sem suscitar reprovação pública especial.

Podemos nos perguntar como, em uma época em que o cristianismo determinava a indissolubilidade do casamento, as separações eram tão freqüentes. Os divórcios, muitas vezes decididos para que se concluíssem alianças mais vantajosas, eram disfarçados em anulações por esterilidade ou adultério da mulher. Outros casais utilizavam habilmente “o obstáculo proibitivo do parentesco”: o direito germânico proibia o casamento entre pessoas até o sétimo grau de parentesco. Não era muito difícil provar que se tinha uma ligação de parentesco distante com a mulher de que se buscava a separação.

As crianças nascidas de uniões paralelas tinham o status de bastardos e eram afastadas da herança paterna, mas viviam com o pai. Essa ilegitimidade não impedia que muitas delas fizessem uma bela carreira. Carlos Magno nasceu quando a mãe, Berta, era apenas a concubina de seu pai Pepino, o Breve. Foi legitimado mais tarde, quando os dois se casaram.

Durante a segunda metade do primeiro milênio, enquanto a religião cristã impunha a monogamia e a indissolubilidade do casamento, a poligamia ainda era comum. A partir do século X, essa situação tornou-se pouco a pouco obsoleta. No final do primeiro milênio, de fato, a Igreja ocupou uma posição preponderante na sociedade e impôs seus princípios primeiramente ao povo, depois à nobreza.


FONTES: Adaptado de - Famílias nada tradicionais. Texto de Catherine Salles. História Viva. n. 59. set. 2008.

CRÉDITO DA IMAGEM: http://www.pedagogia.com.br/