quinta-feira, 17 de março de 2016

Breve História do bairro de Adrianópolis

Por Roberto Mendonça

Cartão postal  Bairro de Adrianópolis, da empresa A Favorita, dos anos 1950-60.

Na manhã do primeiro dia de 1912 ocorre a inauguração da Vila Municipal, cujo projeto urbanístico, ideado pelo prefeito Arthur César Moreira de Araújo, fora aprovado pela Lei (Municipal) n°. 218, de 30 de maio de 1901. Aprova o ato do superintendente no que diz respeito à Vila Municipal, bem como o projeto apresentado. Autoriza a aforar os terrenos municipais no bairro do Mocó. Estabelecer o foro e demais despesas a cobrar-se. No decurso da festividade, é celebrada uma missa comemorativa por monsenhor Fonseca Coutinho, vice-governador, na Praça Silvério Nery, hoje de Nossa Senhora de Nazaré. Bem que este bairro foi projetado para abrigar a elite citadina. Levou algum tempo, mas alcançou a aspiração de seu idealizador. Nas décadas 1970-80, o bairro já identificado por Adrianópolis, serviu de referência para as melhores residências.

Como assegura a norma legal, o projeto pertence ao prefeito Arthur Araújo, tenente engenheiro militar, que desembarcou na Metrópole da Borracha no final do século XIX, em 1896, posto à disposição do governador Fileto Pires (também tenente do Exército), para comandar o 2° Batalhão do Regimento Militar do Estado, a PMAM de nossos dias.

Por ocasião da Campanha de Canudos (1897), assistiu ao colega Cândido Mariano seguir no comando da tropa amazonense contra Antonio "Conselheiro", e, diante do impedimento do capitão Cordeiro Júnior, teve a oportunidade de comandar o Regimento. Arthur demitiu-se do Exército, para melhor exercer diversas funções públicas no Estado. Dessa maneira, esteve à frente da Municipalidade manauara entre 1898 e janeiro de 1902, sucedido pelo coronel Adolpho Lisboa, a quem a Vila Municipal deve em sua fase de implantação uma compreensível dedicação.

A Vila Municipal foi instalada em terras do patrimônio municipal situadas no denominado bairro do Mocó (em referência ao Reservatório) ou de São João (em homenagem ao orago do cemitério). O terreno de cerca de 431.148 m² havia sido adquirido pelo governo ao capitão-de-mar-e-guerra Nuno Alves Pereira de Mello Cardoso, e se destinava à construção de uma penitenciária, a mesma que resultou edificada na avenida Sete de Setembro. O terreno então foi cedido pelo governador Silvério Nery (mais um tenente que optou pela vida civil), autorizado pelo Decreto n°. 520, de 26 de setembro de 1901. A expansão da Vila Municipal ainda recebeu um acréscimo de terrenos, comprados a João Miguel Ribas (mais outro oficial, este se converteu em negociante).

O esforço urbanístico do governo em benefício da capital parecia ter se esgotado com Eduardo Ribeiro. Manaus limitava-se ao Norte pelo Boulevard Amazonas (agora de Álvaro Maia) e o Cemitério de São João Batista. A instalação da Vila Municipal visava expandir a cidade, convertendo aquele "espaço ermo e despovoado em um logradouro", aprazível, dotado de moradias de elevado conforto e de bela aparência, e mais, dotado de infra-estrutura básica adequada à Belle Époque manauara. Nesse sentido, a Lei n°. 239, de 30 de novembro de 1901, regula a construção das residências. O obstáculo crucial, porém, constituía-se em atrair para acolá residentes endinheirados, para superá-lo, primeiramente foram realizados o arruamento e o traçado das ruas pelo engenheiro Lo Gonçalves Bastos Neto, secundado pelo colega Antônio Paiva e Melo. Seguidamente, por deliberação da Lei n°. 243, de 12 de dezembro de 1901, foram nomeadas as ruas e avenidas, todas homenageando capitais nordestinas.

A Vila Municipal prossegue recebendo incentivo dos poderes constituídos. Na data de sua inauguração, o prefeito Artur Araújo dirige a solenidade "de colocação da primeira pedra da fundação da Escola Municipal, que se realizou no lote n.°28, reservado à Municipalidade". Como não prosperou a aludida construção, o lote de terras escolhido, com área de 1.563 m² e situado no Boulevard Amazonas, "foi aforado em 6 de março de 1907" a Antônio José da Silva Júnior. Somente na noite de 2 de julho de 1921, o prefeito Franco de Sá inaugura à rua Maceió, a Escola desse bairro estabelecida pela Lei n.° 1072, de 28 de março do mesmo ano.

A despeito de tantos estímulos governamentais, uma única residência no estilo foi construída, curiosamente a de Adolpho Lisboa. Em terreno de 5.000 m², à rua São Luís, quando este exercia seu terceiro mandato à frente da Prefeitura (1905-07). Ao contrário do que relata seu contemporâneo, o mestre Bittencourt (Dicionário, 1973), o chalet mandado edificar pelo coronel Lisboa não foi titulado de Zulmira, muito menos este fora o nome de sua esposa (Laura) ou concubina. O edifício (ou Castelinho), que ainda se conserva, teve a denominação de Vila Alcida em homenagem, sim, a filha do alcaide.

Estimo que este edifício foi construído em 1906. Diversas são as razões, mas duas se destacam. O interesse desse alcaide em "melhorar a rua São Luís com a construção de passeios laterais e preparo do leito para receber calçamento", consoante vulgariza a Comissão Organizadora do Tombo dos Próprios do Município (1922). O outro argumento fundamenta-se no número de edificações, em Manaus, utilizando ferro fundido como alicerces e ornamentos. Esta matéria-prima, com seus modelos espalhados pelo mundo, sinalizou "na Amazônia da goma elástica o modismo dominado pelos ingleses". Ainda com maior visibilidade, é desse período, o edifício da Biblioteca Pública; o gradil e as entradas do Cemitério de São João Batista, e o corpo principal do Mercado Público, cujos alicerces de ferro fundido foram fabricados pela empresa Walter MacFarlane, de Glasgow (Escócia).

Foi nesse período que Adolpho Lisboa se empenhou na implantação do bairro. Promove o aforamento da área, dando prioridade aos lotes da rua Belém e do Boulevard Amazonas. Consulta ao Livro n.° 2 de Aforamento (1906-1924) da Prefeitura Municipal de Manaus (PMM), permite viabilizar um panorama dos aforamentos. Alguns lotes concedidos a privilegiados denotam a influência das amizades, das camaradagens que perpassam esse tipo de empreendimento público. Em 1907, Adolpho Lisboa deixa a gestão da Municipalidade, da cidade de Manaus, mas deixa igualmente questões, pessoais em julgamento pelo Judiciário.

Mas a Vila Municipal não perdeu seu ímpeto. Nenhum prefeito pós-Lisboa deixou de conceder aforamento no bairro, ou impediu o avanço dos recursos da modernidade, como a instalação de água, de luz elétrica, da linha de bondes e do Prado Amazonense. Ao contrário, em 1909, a praça situada em frente ao Reservatório do Mocó recebe a denominação de Praça Chile, mediante a Lei n.° 547, de 22 de maio. Em 1920, o prefeito Basílio Torreão Franco de Sá faz colocar duas placas comemorativas na praça, com as armas e o nome daquela República, as quais sumiram com o desfiguramento desse logradouro.

Também se preocupou o prefeito Jorge de Moraes, médico conceituado. No final da tarde de 14 de outubro de 1911, presente o governador, coronel Antônio Bittencourt, de outras autoridades civis e militares "e de grande massa popular reunida na Praça Chile", o prefeito "declara inaugurada a iluminação elétrica da Vila Municipal". Outra providência marcante ocorreu em 22 de dezembro de 1911, às vésperas do Natal, quando a empresa The Manáos Tramways & Light Co Limited realiza a inauguração da linha de bondes - Villa Municipal. No ensejo, era governador, Pedro de Alcântara Bacellar (1917-21), e prefeito, Antônio Ayres de Almeida Freitas (1917-19).

Chegou o momento da Igreja ocupar-se do atendimento aos paroquianos. A primeira capela homenageava a São Saturnino (1942), sob a orientação dos frades capuchinhos. Alguns anos depois, os padres dos Pime edificaram a igreja de Nossa Senhora de Nazaré, benzida por dom João da Matta Amaral, bispo do Amazonas, em 11 de julho de 1948. Novos tempos desceram sobre Manaus, a Vila Municipal do alvorecer do século XX havia se expandido, como propugnaram seus idealizadores. Mas quando a edilidade renomeia o bairro para Adrianópolis, em homenagem a um ilustríssimo morador do bairro, o falecido médico Adriano Augusto de Araújo Jorge, certamente sinaliza para uma outra etapa dessa História.


FONTES:

BITTENCOURT, Agnello. Dicionário Amazonense de Biografias: Vultos do Passado. Rio de Janeiro: Conquista, 1973.

MONTEIRO, Mário Ypiranga. Roteiro Histórico de Manaus. Vol. 1 e 2. Manaus: Universidade do Amazonas, 1998.

SILVA, Geraldo Gomes da. Arquitetura do ferro no Brasil. 2°. ed. São Paulo: Nobel, 1988.

Digesto do Município de Manaus, Tomo II - Leis Orçamentárias (1853-1906). Paris: Livraria Aillaud, 1907.

Relatório da Comissão Organizadora do Tombo dos Próprios do Município, em 31 de julho de 1922.


Roberto Mendonça, 69, é graduado em Direito pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), sócio efetivo do IGHA (Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas) e coronel da reserva da PMAM (Polícia Militar do Amazonas). É autor dos livros Cândido Mariano e Canudos, Administração do Coronel Lisboa, L. Ruas: Itinerário de uma vocação, L. Ruas: Poesia Reunida e Bombeiros do Amazonas: retrospectiva 1876-1998.

quarta-feira, 9 de março de 2016

Hagiografia - A Vida dos Santos

O Último Julgamento ou O Juízo Final. Fra Angelico, 1425-1430. Ao redor de Jesus Cristo estão Maria, João, o Evangelista, anjos e vários santos.

Os primeiros intelectuais da Igreja, além de se debruçarem sobre problemas existenciais como o sentido da vida, a morte, o pecado, a natureza divina e a humana, dedicavam seus estudos a um gênero conhecido como Hagiografia. A Hagiografia (do grego hagios, santo, e graphía, escrita) é a escrita sobre a vida de um santo, figura que, nos tempos mais remotos do Cristianismo e durante o Império Romano, foi um defensor de sua religião, morrendo em seu nome e tornando-se reverenciada pelos seguidores desse culto. Esse gênero se tornou popular na Idade Média entre os historiadores cristãos, mas, lembrando que a Hagiografia não se preocupa com os fatos históricos, mas sim com a descrição dos martírios, dos milagres atribuídos aos santos, relíquias como objetos pessoais e restos mortais, a canonização e as formas de veneração a essas figuras consideradas sagradas. O termo hagiografia foi cunhado no século XVII, quando esse estudo passou a ser sistematizado.

De característica hagiográfica também existem os martirológios e necrológios, que abordam a forma como essas personagens foram mortas e a data em que isso ocorreu. A fixação da data era importante para que essa pessoa fosse lembrada. As sangrentas perseguições do Império Romano ao Cristianismo produziram uma série de mártires. A atribuição de santidade a uma pessoa variou de acordo com a evolução desse religião: Nos tempos mais primitivos, quando ela estava em início, a comunidade atribuía a santidade ao mártir e celebrava sua morte na data em que ocorreu; Já na Idade Média, com essa religião oficializada, com um líder eclesiástico conhecido por Papa, a atribuição de figura sagrada passava pelo crivo de um tribunal, de éditos ou pela aceitação direta do líder da Igreja Católica.

Como foi dito, os primeiros intelectuais da Igreja escreviam sobre a vida dos santos. O primeiro a discorrer sobre esse tema foi Atanásio de Alexandria (328 d.C. -373 d.C.) que escreveu a obra Vita Antonii (Vida de Antônio, 360 d.C.), uma biografia sobre Santo Antão, o Anacoreta, considerado santo ainda em vida, por suas ações de caridade e proteção aos perseguidos por Roma. Eusébio de Cesareia (265 d.C. -339 d.C.), primeiro historiador da Igreja, escrevia martirológios sobre as perseguições ocorridas em sua cidade natal, Cesareia, na Palestina. Com uma riqueza de detalhes sobre o triunfo dessas pessoas ao morrer em nome da fé, Eusébio recorria a figuras heroicas do mundo greco-romano. Seu professor, Doroteu de Tiro, foi martirizado em 362. É da obra de Eusébio, História Eclesiástica, que tiramos informações sobre a vida desse santo.

Sulpício Severo (363 d.C. - 425 d.C.), além de escrever a História Sacra, escreveu Vida de São Martinho. Essa obra tem poucos aspectos biográficos, pois salta cronologicamente para uma série de milagres atribuídos a São Martinho de Tours, bispo dessa cidade francesa. A obra de Severo é considerada mais um catálogo de milagres do que uma biografia propriamente dita. Vida de São Martinho povoou o imaginário dos séculos seguintes, influenciando, por exemplo, o historiador Gregório de Tours (século VI d.C.), que fala da influência da veneração desse santo em sua cidade natal. Gregório, assim como Atanásio de Alexandria, se tornou santo.

O primeiro autor a tentar reunir todas as biografias de santos até sua época foi Jacopo de Varazze (1226-1298), que escreveu Legenda Áurea – Vida de Santos. Essa obra apresenta características históricas, como o relato dos enfrentamentos entre romanos e cristãos, crentes e pagãos. O objetivo maior de Jacopo era de fornecer, através dessas biografias, um farto material para estudos teológicos, sermões e, bem ao estilo dos primeiros intelectuais da igreja, exemplos morais para se seguir. Foi sem dúvida um dos livros mais importantes da Baixa Idade Média, servindo de molde para futuras compilações.

John Foxe é uma exceção nesse texto por dois motivos: Primeiro, que diferente dos autores anteriormente citados, ele não era católico, mas protestante; segundo, escreveu sobre as perseguições e martírios contemporâneos que ocorriam em seu país, a Inglaterra. Sua obra O Livro dos Mártires, publicada em 1559, aborda os martírios de Jesus Cristo, Apóstolos, líderes das primeiras heresias documentadas pela Igreja de Roma, líderes da Reforma Protestante e, de forma contemporânea, as perseguições empreendidas contra os protestantes pela rainha católica Maria I da Inglaterra, que ficou conhecida como “Maria Sangrenta”.

A escrita de hagiografias, as biografias dos santos, em alta durante a Idade Média, teve um papel importante na manutenção das tradições da Igreja Católica. Nem sempre preocupada com os relatos históricos, ela traz um arcabouço de exemplos morais, exemplos de superação frente as provações da vida; e materiais teológicos, e, ao lado dos martirológios, constitui não só um dos gêneros eclesiásticos mais importantes da erudição cristã, como também é uma das bases dos ensinamentos sagrados e parte fundamental do calendário litúrgico da Igreja Católica, com a comemoração do dia em que essas pessoas foram martirizadas por defenderem sua fé.


FONTES:

SANTOS, Juberto. Você sabe o que é Hagiografia?. Disponível em: Catequisar - http://www.catequisar.com.br/texto/colunas/juberto/06.htm

SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão (Coord.). História e Hagiografia V. II – Banco de Dados dos Santos Ibéricos (séculos XI ao XIII). Rio de Janeiro: Pem, 2012.


BURROW, John. Uma História das HistóriasDe Heródoto e Tucídides ao século XX. Rio de Janeiro/São Paulo, Record, tradução de Nona Vaz de Castro, 2013.


CRÉDITO DA IMAGEM:

commons.wikimedia.org

domingo, 6 de março de 2016

Antiquarismo: O gosto por Antiguidades e a reconstituição do passado

O artista comovido diante da grandeza dos fragmentos antigos, Johann Heinrich Füssli, 1778-1780. 

Na Antiguidade, os romanos mais ricos tinham um grande interesse por ruínas, esculturas, monumentos e fragmentos de civilizações passadas, especialmente dos gregos. Esses materiais eram utilizados como decoração para suas residências, símbolo de poder e exaltação política e étnica. Durante o Humanismo dos séculos XIV e XV, o gosto pelas antiguidades continuou sendo um interesse dos sábios, que recuperavam textos, moedas, esculturas, leis, e, deles, tiravam exemplos políticos e morais. Nos séculos XVII e XVIII, com uma Europa abalada por uma crise espiritual travada desde o século XVI entre protestantes e católicos, surge um ceticismo em relação à credibilidade das ciências e das criações humanas. Em oposição à essas dúvidas, filósofos criaram métodos científicos para validar as ciências naturais. Os métodos por eles criados eram empíricos matemáticos. A História, por ser propensa a diferentes pontos de vista e análises, não poderia ser comprovada através de métodos matemáticos e pelo empirismo. A escrita da História ficou relegada à condição de mero registro de fatos duvidosos, utilizados apenas para leitura agradável e exaltação política.

Com a História relegada a uma posição inferior, restou aos colecionadores e donos de antiquários, que não eram necessariamente historiadores, dar continuidade à produção histórica. Nos antiquários, eram recuperados documentos, bulas papais, esculturas, moedas, insígnias e fragmentos de ruínas, como foi o caso da redescoberta, no século XVIII, das cidades de Herculano (1738) e Pompéia (1748). Dessa atividade de recuperar objetos antigos, surge a Arqueologia no século XIX, que se torna uma das ciências auxiliares da História. Os antiquaristas dedicavam sua atenção para a reconstituição dessas peças, que tinham muito a dizer sobre a época em que foram produzidas. Essa atividade era somada ao método de analisar criticamente documentos oficiais e outros registros. Dessa forma, o antiquário não precisava "prestar" contas para os métodos matemáticos, pois seus objetos de estudo eram físicos, testemunhos vivos de uma época passada e com pouca possibilidade de terem sido falsificados. No entanto, devemos pontuar as diferenças entre o antiquário e o historiador nos séculos XVII e XVIII: O antiquário preserva, analisa empiricamente suas peças, e delas tira informações sobre o passado. O historiador presa a narrativa e as lições morais e políticas que dele podem ser retiradas. O antiquário não tem um interesse moral ou político, apenas a curiosidade pelo passado como ele pode ser desvendado.


Sobre as obras dos antiquários, podemos citar duas: A História Universal Demonstrada com Monumentos e Ilustrada com Símbolos dos Antigos (1697), de Francesco Bianchini; e A História e Antiguidades do Erário dos Reis de Inglaterra (1711), de Thomas Madox. Da obra de Madox temos mais informações. Esse antiquário inglês, utilizando documentos desde a época da conquista Normanda, traçou, como o próprio título de sua obra diz, as origens das riquezas do estado inglês. Madox, em uma análise crítica, utilizou documentos oficiais, assinados por funcionários, e que, em sua opinião, eram mais confiáveis que outras formas de registro, como cartas ou relatos de terceiros.


A História, desde que começou a ser escrita, sempre foi posta a dúvida, seja por seus praticantes ou por cientistas de outras áreas. O debate sobre os métodos para escrevê-la existem desde os tempos de Heródoto e Tucídides, quando se discutia a utilização de relatos de terceiros ou a observação pessoal dos fatos. A historiografia sobre a contribuição dos antiquários para a história ainda está, segundo o professor Auxiliomar Ugarte, por fazer. Talvez o pontapé inicial dessa pesquisa seja registrar a importância da metodologia dos antiquários para a história como ciência, pois podemos perceber que os métodos críticos, empíricos e arqueológicos desses profissionais tem certa semelhança nas metodologias utilizadas por historiadores da área da História Antiga.



FONTES:

HADDOCK, B.A. Uma Introdução ao Pensamento Histórico. Tradução de Maria Branco. Lisboa: Gradiva, 1989.

CRÉDITO DA IMAGEM:

Warburg - Banco Comparativo de Imagens (warburg.chaa-unicamp.com.br)

quarta-feira, 2 de março de 2016

Analisando um documento histórico


Ao analisar um documento, precisamos levar em conta quatro aspectos fundamentais: O autor; tipo de documento (carta informal, documento oficial, relação, testamento etc); o contexto histórico em que foi redigido e, claro, saber sobre o que ele se refere. O documento que será aqui analisado é a Carta Régia de 03 de março de 1755 criando a Capitania de São José do Rio Negro. A Carta Régia é um documento oficial assinado por um monarca (no nosso caso, o autor é José I de Portugal), contendo determinações endereçadas diretamente para o chefe político de uma região administrativa. Por ser extensa, não irei compilar a carta totalmente nesse texto, deixando isso para outra ocasião. Para nossa análise, serão utilizado trechos centrais para o entendimento.

Os motivos que levaram à criação da Capitania de São José do Rio Negro

"Tendo consideração ao muito que convem ao serviço de Deos, e meu, e ao bem commum dos meus vassalos moradores nesse Estado, que nelle se augmente o numero dos Fieis alumiados das Leis do Evangelho, pelo proprio meio da multiplicação das Povoações civis e decorosas; para que attrahindo a si os Racionaes, que vivem nos vastos sertões do mesmo Estado separados da Nossa Santa Fé Catholica, e até dos dictames da mesma Natureza: E achando alguns delles na observancia das Leis Divinas, e humanas, socorro e descanço temporal e eterno sirvão de estimulo aos mais que ficarem nos mattos, para que imitando tão saudaveis exemplos, busquem os mesmos benefícios: e attendendo a que aquella necessaria observancia das Leis, senão conseguira para produzir tão uteis effeitos se a vastidão do mesmo Estado que tanto difficulta os recursos das duas capitaes do Gram Pará e de São Luiz do Maranhão senão se subdividissem em mais alguns governos a que as partes possão requerer para conseguirem que se lhes administre justiça com maior brevidade, e sem a vexação de serem obrigados a fazer tão longas, e penosas viagens, como agora fazem. Tenho resoluto estabelecer um terceiro Governo nos confins occidentaes desse Estado, cujo Chefe sera denominado Governador da Capitania de São José do Rio Negro". 

Vamos contextualizar a região amazônica na segunda metade do século XVIII e, através desse trecho da carta, compreender as necessidades que levaram à criação de um terceiro governo: Naquela época, a capital do Estado do Maranhão e Grão Pará estava em Belém (desde 1751). Os territórios mais ao interior desse Estado português enfrentavam dificuldades para se desenvolver, principalmente por causa das distâncias entre a capital. Para o governo, era um empecilho para o cumprimento das leis, na arrecadação de impostos e na pregação da religião Católica aos índios. Somamos ao problema da distância, a questão da soberania de Portugal sobre suas fronteiras, tão cobiçadas por ingleses, holandeses, franceses e irlandeses; e a presença de jesuítas, vistos como uma ameaça ao governo de Portugal (o que, 4 anos mais tarde, seria confirmado com a expulsão dessa ordem das possessões do Império Português). O nome escolhido par ao novo Governo, Capitania de São José do Rio Negro, é apenas mais uma marca da religião oficial do Império e de sua colônia.

Logradouros e Prédios Públicos

"Sou servido ordenar-vos, que aproveitando a occazião de vos achares nessas partes, passando a referida Aldea, depois de haveres publicado por Editaes o contheudo nesta, e de haveres feito relação dos moradores que se offerecerem para a povoar, convoqueis todos para determinado dia, no qual sendo presente o Povo determineis o lugar mais proprio para servir de Praça, fazendo levantar no meio della o Pelourinho: assignando área para se edificar uma Igreja capaz de receber um competente numero de Freguezes, quando a Povoação se augmentar, como tambem as outras áreas competentes para as casas das vereações, e audiencias, Cadêas, e mais officinas publicas, fazendo delinear as casas dos moradores por linha recta, de sorte que fiquem largas, e direitas as ruas".


No trecho acima temos destacados os principais componentes de uma vila colonial brasileira: A Praça, o Pelourinho e a Igreja. A Praça seria o local das festividades públicas, dos deveres cívicos para com Vossa Majestade, e o comércio. O Pelourinho, na Amazônia, não teve, na maioria das vezes em que foi usado, o mesmo "sentido" que ganhou nas cidades escravistas do Brasil: As cidades da Amazônia não tinham dinheiro suficiente para importar escravos africanos dos grandes centros coloniais, claro, com exceção da capital Belém, que possuía alguns, em número reduzido, sendo o Pelourinho, na maioria das vezes, utilizado para castigar escravos indígenas ou criminosos. O governo português também estimulou a povoação da nova capitania, dando terras para seus colonos e concedendo facilidades para a exploração de atividades comerciais. A tecnologia da época e o terreno da região não permitiram a criação de vias públicas de qualidade, que só viram melhorias a partir do Império Brasileiro (1822-1889).


Os Limites da Capitania


"O território do sobredito Governo se estenderá pelas duas partes do Norte, e do Occidente até as duas raias Septentrional, e Occidental dos Dominios de Hespanha, e pelas outras duas partes do Oriente, e do meio dia lhe determinareis os limites que vos parecerem justos, e competentes para os fins acima declarados".


Mendonça Furtado, respeitando as novas fronteiras estabelecidas pelo Tratado de Madrid (1750), marcou os limites orientais e sul da Capitania. Foi apenas em 10 de maio de 1757, durante a administração de Joaquim de Melo e Póvoas, primeiro governador da Capitania, que os limites foram melhor traçados: Com a Capitania de Mato Grosso, ao sul, através da cachoeira de Nhamundá até sua foz no Amazonas e deste pelo outeiro do Maracá-Açu, ficando para o Rio Negro a margem ocidental do Nhamundá e do outeiro (REIS, 1989, adaptado).


Através desses trechos da Carta Régia de 03 de março de 1755, percebemos as principais características do documento: É um documento oficial, escrito por um rei e destinado a uma autoridade local. Foi escrito em um contexto de povoação da Amazônia, quando se fazia necessária a presença da autoridade nessa parte do Brasil, com anseios de desenvolvimento econômico e sofrendo ameças estrangeiras. No seu conteúdo temos diversas ordens administrativas (o estabelecimento de um novo Governo na Amazônia, os motivos para sua criação, a povoação do mesmo e a criação de logradouros de prédios públicos).



FONTES:


Carta Régia de 03 de março de 1755 criando a Capitania de São José do Rio Negro. Universidade do Amazonas. CEDEAM. Cartas do Primeiro Governador da Capitania de São José do Rio Negro, Joaquim de Mello e Póvoas (1758-1761): transcrições paleográficas. Manaus, Universidade do Amazonas, 1983. p. 69, 71.


REIS, Arthur Cézar Ferreira. História do Amazonas. 2° ed. Belo Horizonte: Itatiaia; Manaus: Superintendência Cultural do Amazonas, 1989. - (Coleção reconquista do Brasil. 2° série; v. 145). p. 121.


CRÉDITO DA IMAGEM:


armdigital.arquivo-madeira.org

sábado, 27 de fevereiro de 2016

A Posse de Aguinaldo Nascimento Figueiredo e a renovação historiográfica do IGHA


Tomou posse no IGHA (Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas), no dia 26 de fevereiro, o historiador Aguinaldo Nascimento Figueiredo. Aguinaldo, apaixonado pelo Amazonas, historiador formado pela Universidade Federal do Amazonas e docente da rede pública de ensino por mais de 20 anos, renova essa instituição cultural com sua historiografia, que abrange elementos da nova história e da micro história no amazonas, trazendo à luz da história fatos até então ignorados pela historiografia tradicional. Em suas obras, das quais se destacam História do Amazonas (2000); Santa Luzia: História e Memória do povo do Emboca (2008); e Os Samurais das Selvas: A presença Japonesa no Amazonas (2012), esse historiador faz um diálogo entre história documental e oral, apresenta personagens e fatos históricos desconhecidos, rompe com anacronismos, indevidamente utilizados por historiadores atuais; e, claro, para quem não o conhece, tudo com uma pitada de ironia e críticas independente de partidarismos ou ideologias.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

A atual Decadência da Civilização Ocidental

Massacre dos Inocentes, de Peter Paul Rubens (1611-1612)

Vamos imaginar o Ocidente como uma grande casa, imponente e bem construída. Toda construção de porte elevado se sustenta em sólidos pilares, construídos com materiais resistentes. Essa não é uma construção erguida de um dia para o outro. Ela levou milhares de anos para ser concluída, através de sacrifícios humanos e da formulação de fundamentos morais e éticos duradouros. Uma casa é feita para abrigar pessoas. Imaginemos, agora, que essas pessoas estão, aos poucos, destruindo sua proteção maior, desde a base até o teto. O resultado trágico será a queda da casa e o abandono/morte de seus moradores.

Com essa breve analogia, inicio aqui uma crítica à atual situação do Ocidente, que posso chamar de Decadência da Civilização Ocidental. A crítica irá levar em conta cenas que vemos se tornar cada vez mais frequentes: a perda do valor da vida; a destruição de valores morais e éticos; a ambição pelo poder político dentro das instituições públicas e privadas; o desinteresse pelas artes, leituras e reflexões críticas; o desrespeito aos mais velhos e às pessoas em geral, a destruição de instituições milenares que, mesmo com seus excessos durante a história, sustentam o Ocidente; e o ataque às liberdades individuais. Sabemos da importância e dos benefícios que a manutenção de fundamentos e instituições trazem para diferentes culturas. Não é atoa que temos uma História de mais de 2000 mil anos. O texto poderia ser intitulado A Decadência da Humanidade, mas, como faço parte do Mundo Ocidental, detentor de conhecimento de causa, prefiro não "opinar" em outras regiões do globo, que merecem ter suas particularidades culturais, políticas e econômicas respeitadas.

Por onde começar? Por dois dos pilares mais importantes e sólidos de qualquer civilização: suas manifestações culturais e religiosas. Não temos mais o ócio criativo do qual nossos antepassados desfrutavam. Temos apenas o ócio. Leituras densas e de qualidade ficam de lado, sendo preferíveis leituras rasas, fórmulas prontas, soluções imediatas. Nos tornamos mais sensíveis em relação ao conteúdo de obras e às verdades nuas e cruas do mundo. Recentemente, alunos da prestigiada universidade de Columbia, nos Estados Unidos, pediram a proibição de obras de autores clássicos como Hesíodo, Aristófanes e Ovídio, por abordarem temas como sexualidade, morte, violência e religião. A atual geração se tornou infantil, sem preparo para a dura realidade que é o mundo, realidade essa estudada e declamada pelos autores antigos.

O Cristianismo, sem dúvidas, teve e ainda tem um papel crucial na construção do Ocidente. Só em pensarmos nas Grandes Navegações da Idade Moderna, nas Universidades nascidas no seio das catedrais medievais e na criação do Método Científico, pelas mãos do monge Roger Bacon, vemos como a cristandade é um pilar a ser preservado. Devemos, claro, aprender a separar e reconhecer os pontos positivos e negativos de uma instituição como a Igreja de Roma, uma criação humana, passível de erros. Observamos, nos dias de hoje, como cresce, seja por interesses políticos ou ideológicos, o desejo por apagar as contribuições do Cristianismo na formação da Civilização Ocidental, seja por pessoas sem religião ou de outras crenças. A destruição desse legado teria um resultado desastroso do ponto de vista histórico. Obs: não sigo uma religião e nem tenho crenças em uma ou mais divindades, mas sei reconhecer e dar os devidos créditos para bons trabalhos. Isso lembra uma frase do meu professor de Historiografia Geral: Mesmo com todos os erros do passado, em suas instituições, o Ocidente ainda consegue, diferente de outras regiões, garantir a liberdade de pensamento para seus habitantes. O Cristianismo, para o Ocidente, é outro pilar que deve ser protegido.

O homem foi percebendo, ao passar dos milênios, seja através da auto reflexão ou da contenção dada pela religião, que tirar a vida de seu semelhante é errado. Apenas em guerras, quando sua própria vida está em jogo, é que a defesa se torna necessária. Ainda assim, com tantos ensinamentos morais e éticos, leis, punições severas e privações de liberdade, a vida, a deriva em um mar de subjetividade, é jogada em uma lata de lixo como uma simples embalagem. Como impedir que ela, um bem único, sem retorno quando retirado, não seja descartada?. Uma solução prática não existe: Em conversa com o historiador amazonense Coronel Roberto Mendonça, ele relatou que, durante sua juventude, as pessoas temiam duas instituições e suas figuras: O padre, autoridade religiosa; e o delegado, autoridade civil. Em síntese, o medo seria a fronteira que impediria o homem de cometer crimes, seja por causa da punição temporal ou por causa da punição espiritual.

O poeta romano Petrônio, em sua obra Satíricon (século I d. C.), exclamou: "Que podem as leis se o ouro é o senhor absoluto? E se a pobreza jamais consegue triunfar? E até mesmo aqueles que ostentam o magro alforje dos Cínicos, muitas vezes por belas moedas negociam a verdade. É, pois, um negócio o austero e civil tribunal, e o juiz não faz senão assinar o contrato". Uma denuncia do século I de nossa era parece ser capa de um jornal dos dias atuais. A busca por riquezas e poder avança sem freios dentro das instituições públicas e privadas. Escândalos em monarquias na Europa, em governos na América Latina e em instituições privadas nos fazem repensar na política que vem sendo aplicada no Ocidente. As partes interessadas nas facilidades oferecidas pelo Estado se valem de partidarismos e ideologias, que acabam cegando a coletividade, que prefere defender apenas um lado e esquece que o grupo que lhe rouba é bastante organizado. A política no Ocidente é um pilar que já deveria ter sido demolido e reconstruído, mas por favorecer certos interesses, continua o mesmo.

A formação de uma família, seja ela tradicional ou moderna, patriarcal, nuclear ou matriarcal, deve ser pautada em princípios como a cumplicidade e o respeito entre seus membros. A família Ocidental sobreviveu através de uma hierarquia, no qual os ensinamentos das gerações passadas é transmitido através das palavras dos mais velhos. Infelizmente, temos jovens que bradam por mais direitos e espaço dentre dessa unidade social doméstica, e esquecem de seus deveres. Uma família bem estruturada, sadia, com o cumprimento, entre seus membros, de direitos e deveres, é mais um pilar a ser mantido para o bom andamento e perpetuação da Civilização Ocidental.

O Ocidente vem passando por profundas transformações. Seus valores vem sendo abalados diariamente, seja por acomodação da população, cega por partidarismo, conivência ou ideologia; e pela nocividade que se instalou em suas instituições mais importantes. Nós, habitantes dessa parte do mundo, seja na Europa ou em alguma antiga colônia na América do Sul, Caribe e América do Norte, percebemos como esses abalos estão se tornando cada vez mais negativos. A manutenção e proteção dos pilares Cristianismo, Família, Propriedade, Moral e Ética, Respeito, Cultura e Liberdade permite a sustentação, como foi dito na introdução, de nossa moradia (o Ocidente).

Estamos condenados à civilização. Ou progredimos ou desaparecemos - Euclides da Cunha.



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quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

A evolução histórica e social das vias públicas

Via Ápia (aberta em 312 a.C.  e ampliada em 264 a.C.), estrada romana com 600 quilômetros de extensão, ligando Roma até a cidade de Brindisi.

Hoje, quem passa por uma rua, avenida, beco ou travessa, independente da cidade, talvez não se questione sobre a origem daquela via pública, quais os motivos para a sua abertura e quais as mudanças ocorridas com isso. As vias públicas como as conhecemos atualmente são o resultado de um longo processo de aperfeiçoamento social e técnico: social no sentido de ligar diferentes pontos de uma cidade, onde são realizadas transações comerciais, oferecidos serviços, abriga templos religiosos e, claro, as casas; e técnico pela forma como são construídas e com quais materiais foram produzidas.

Quando os homens ainda se agrupavam em comunidades primitivas, com atividades de subsistência baseadas na pesca, coleta e troca de produtos, talvez a abertura de caminhos não tivesse um sentido técnico-econômico complexo, servindo apenas para atalhos, localizar um curso d' água ou para facilitar a comunicação entre as casas ou um local de adoração a divindades. Com algumas exceções, já existe uma preocupação no traçado desses caminhos (ruas e avenidas), como ficou claro em escavações arqueológicas na Turquia, em 1996-7, que revelaram a antiga cidade de Titris Hoyuk (cerca de 5.000 anos), que chegou a abrigar 10.000 habitantes.

Na Antiguidade Clássica, as ruas da Roma Imperial eram construídas em ângulos retos, e largas, possibilitando um tráfego fluente de carruagens, liteiras e transeuntes sem maiores problemas. Os templos e foros se comunicavam; comerciantes anunciavam os mais variados produtos em cavaletes e barracas instaladas de uma ponta a outra da via; semblantes de diferentes nacionalidades se aglomeravam em busca das melhores ofertas, de um lugar para repousar, como os albergues e pensões, ou cuidar da higiene em um dos vários banhos públicos. O anfiteatro, casas de prostituição e tavernas prolongam a vida noturna, iluminada por tochas ou pela queima do azeite, mas perigosa nas estradas mais afastadas, que ligavam Roma à diferentes pontos da Itália.

As ruas medievais eram estreitas, ou porque seguiam a linha da muralha, uma necessidade de defesa para a cidade; a direção dos ventos, para arejar; ou a formação geográfica tortuosa da região. Eram, no entanto, movimentadas pelo comércio e por atrações dos tipos mais variados. A nomenclatura das ruas é definida por nomes populares, geralmente ligadas a uma atividade comercial nela estabelecida: Rua dos Ourives, Rua dos Cuteleiros, Rua dos Livreiros. Existem também nomes de santos e de nobres. A pavimentação das vias era feita com pedras sob uma camada de cimento. Esgotos eram construídos para dar vazão aos detritos públicos, e o resto era queimado. Construídas na rua principal, a fim de dominarem a paisagem e servirem de confluência política, social e religiosa, estavam as catedrais, abadias e capelas.

Nos séculos 16 e 17, as ruas e avenidas das principais metrópoles europeias foram favorecidas pela exploração ultramarina, que possibilitou o escoamento de riquezas para essas cidades, riquezas essas investidas em Lisboa, Paris, Madri e Amsterdã. As vias públicas mais preteridas pela burguesia eram aquelas com localização privilegiada, no caso a orla da cidade ou próximo a ela. A Rua Nova d' EL REI era a principal via da Lisboa Manuelina. Nela estavam os prédios públicos mais suntuosos e importantes e as principais lojas do país. Estrangeiros, vendedores de escravos, nobres e aristocratas frequentavam o local. O Óleo de baleia era utilizado na iluminação. Não só na Europa, mas também nas terras recém-descobertas, as ruas eram suntuosas. Hernán Cortés se impressionou com ruas de Tenochtitlán, largas e retas, tão grandes quanto as de Sevilha ou Córdoba, com praças e pontos de venda e troca de produtos.

Os caminhos do Brasil Colonial ligavam a Igreja ao forte, o forte a casa do administrador, e a produção econômica ao porto. Esses caminhos eram definidos pelas construções e muitas vezes eram o reaproveitamento de antigas trilhas indígenas. Na enriquecida Minas Gerais, por exemplo, os caminhos de terra batida interligavam a produção da região: Pelo Caminho Velho ou Caminho do Ouro, que passava pela Vila do Falcão, descendo o vale do rio Paraíba e atingia Vila Rica, o ouro das minas era transportado até o Rio de Janeiro, de onde partia para Lisboa. Os caminhos eram tortuosos, estreitos, iluminados apenas em algumas cidades, por meio de velas feitas com cera de abelha ou pela queima de óleos vegetais e animais. As cidades mais importantes recebiam o acompanhamento de engenheiros militares na hora de definir o traçado das ruas. A rua, junto à praça pública, era o local do divertimento popular, das procissões religiosas, do comércio, dos castigos no Pelourinho, trajeto dos condenados à morte, e local de exposição das partes dos corpos de rebeldes esquartejados. As nomenclaturas eram pitorescas, levando em conta alguma característica especial da região, nomes religiosos ou de moradores ilustres.

Os avanços industriais dos séculos 18, 19 e 20 permitiram o prolongamento da vida urbana, com o advento da iluminação pública mais eficiente. Os caminhos do passado agora eram ruas e avenidas propriamente ditas, construídas sob a supervisão de engenheiros e através de códigos de conduta rígidos. O asfalto produzido através do petróleo substituiu as pedras e o cimento; a iluminação a gás ou energia elétrica permitiu que a ópera acabasse mais tarde, que as casas de diversão, os cafés e tavernas atendessem por mais tempo. A rua ganhou a função social que possui até hoje: é o local de lazer, das práticas mundanas e religiosas, das trocas comerciais, do trabalho, é elemento concreto das relações sociais, de manifestações públicas, o caminho que leva a diferentes locais e partes vitais da cidade.


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