sexta-feira, 13 de maio de 2016

A relação entre Filosofia e História e a busca da construção do sentido

Por Wilton Abrahim


A filosofia é a mãe das ciências, e é tão antiga quanto a História. Ela é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos. Desde os seus primórdios com os pré-socráticos até os dias atuais, é uma conduta da vida humana e do comportamento do homem na sociedade, por isso está filiada à sabedoria, que permite adquirir a capacidade de pensar, de agir e de participar da sociedade, assim fazendo uma relação com a História, que é a ciência do homem no tempo. A História soma-se à filosofia para apresentar uma finalidade na busca pela sabedoria; e dar um sentido à vida do homem e em sua capacidade intelectual. No decorrer dos séculos, vamos ter inúmeros filósofos da história.
Segundo Olinto A. Pegoraro: “a maior dificuldade das teorias do destino é o confronto com a liberdade. Sempre a liberdade humana transcendeu as leis da física e da biologia; sempre tivemos a possibilidade de agir contra as leis, de decidir entre levar uma vida justa ou injusta, de viver bem ou distribuir-nos1
Para Ricardo Timm, devemos nos perguntar “Qual o sentido de fazer filosofia, hoje, aqui e agora?”. Inúmeros historiadores fizeram esse questionamento, tais como: Giambattista Vico (1668-1744) foi um filósofo, jurista, político, retórico e historiador italiano, vindo a ser reconhecido apenas no século XIX. Escreveu Ciência Nova, obra em que pretendia criar uma forma alternativa de estudar as ciências humanas, principalmente a história, forma diferente da aplicada às ciências naturais.
Vico põe a filosofia e filologia como duas disciplinas auxiliares da História. Em filosofia, aproveita-se a reflexão, as ideias e a sabedoria humana; e na filologia, o conhecimento da língua e das tradições dos povos. A filosofia oferece o arcabouço teórico, e a filologia o concreto, tangível, fragmentos das produções humanas. Vico, em oposição a Descartes, afirma que para verdadeiramente se conhecer algo é necessário que seu conhecedor o tenha criado. Vico afirma que o homem não caminha necessariamente para o progresso do pensamento racional.
Para Olinto A. Pegoraro: “O Cristianismo, que surgiu em plena expansão do estoicismo e neoplatonismo, aos poucos substitui o férreo determinismo da providência estoica pela providência totalmente transcendente e extracósmica2”. Vico confirma a Providência Divina para dar um sentido à História; e este afirma que essa ciência tem uma parte construída pelo homem e outra por Deus. Neste ponto Deus é o arquiteto, enquanto o homem seria o construtor.
Um outro historiador muito polêmico que podemos abordar é o francês François-Marie Arouet, mas conhecido como Voltaire (1694-1778). Seu lado historiador é pouco conhecido, pois o que vemos mais é o filosófico. Para Voltaire, a História é um conjunto dos desenvolvimentos produzidos pelo homem, nas artes, ciências e técnicas, através das transformações espirituais e morais. Sua obra filosófica-histórica foi A Filosofia da História.
Em Filosofia da História temos dois sentidos: o primeiro é uma forma de conceber o processo histórico; o segundo está em um modo de reconstituir esse processo para os leitores do presente. A obra filosofia da história é um ensaio sobre o mundo Antigo e sobre o que se produziu sobre ele. Diferente de Vico, Voltaire atacava as concepções religiosas que se fizeram da história das nações e também lendas, mitos e fábulas. A Historiografia de Voltaire é crítica, secularizada, cultural e filosófica.
Este dois grandes historiadores filósofos fizeram o uso do sentido da filosofia, que mudou a mentalidade e a forma de pensamento. Contudo, nós estudantes acadêmicos temos o dever de nos aprofundarmos nas questões filosóficas, criando assim, um sentido para nossos projetos de pesquisa, de pós-graduação e entre os iniciantes, pois o sentido somos nós que construímos.

1 PEGORARO, Olinto A. “concepções do mundo”. In--------------------------- SENTIDOS DA HISTÓRIA. P 18. Petrópolis, RJ:Vozes, 2011.
2 Ibidem, p.20.


Wilton Abrahim Gomes Garcez é acadêmico da Licenciatura em História na Universidade Federal do Amazonas (UFAM).











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quarta-feira, 11 de maio de 2016

Viver à grega

Baco, de Caravaggio. 1593-1597.

Pargraecari é um termo de origem latina, que significa “viver à grega”. Era com este termo que alguns romanos, os mais conservadores, designavam o modo de vida de seus semelhantes. O modo de vida romano, entre os séculos III e II, recorte histórico feito pela autora, é marcado pela devassidão, pela ostentação, a vida galante e desregrada. Naquela época, a existência desses hábitos, que iam contra a moral estabelecida e defendida pelas elites, era atribuída à má influência grega. Mas como era esse estilo de vida grego? Uma fonte material pode ser utilizada como simples resposta: Vejam, abaixo. O mosaico da imagem, grego, data do século III a.C., e foi encontrado à duas semanas nas ruínas de Antioquia, na Turquia. Ele fazia parte de uma sala de jantar de uma residência, e nele se lê: “Seja alegre, viva sua vida”. Observem que, quem segura a tigela de bebida, ao lado da garrafa, é um esqueleto, lembrando da efemeridade da vida. Era assim que os gregos, e agora os romanos, em parte influenciados pelos vizinhos mediterrâneos e em outra, antigos praticantes, viviam.



As comédias de Plauto e Terêncio, as Sátiras de Petrônio Árbitro e os escritos de outros autores, legaram para nós as figuras das prostitutas que arruinavam famílias, os homens que, em avançada idade, ainda sentem os ardores do amor, e o militar fanfarrão. Plauto, em uma de suas comédias, exclama: “Bebam dia e noite, vivam à grega, comprem mulheres, libertem-nas, engordem os parasitas”. Por mais que se jogasse a culpa nos gregos, era difícil ocultar algo facilmente visível na sociedade romana muito antes do contato destes com seus vizinhos.

O contato entre romanos e gregos, citando Catherine Salles, e a introdução desses hábitos entre os latinos, se deu no século III a.C., quando as legiões romanas conquistam a Itália do Sul, e os habitantes do Lácio começam a se familiarizar com os hábitos desregrados dos habitantes da Campânia, na Magna Grécia. Francisco Oliveira e José Luís Brandão, em História de Roma Antiga. Vol I. - das origens à morte de César, citam que esse estilo de vida grego chegou à Roma de diferentes formas: “pela presença de gregos em Roma – reféns, escravos, imigrantes e embaixadores; a passagem de romanos pela Magna Grécia, pela Grécia e pelo mundo helenístico – militares, viajantes, comerciantes, embaixadores, jovens estudantes que aperfeiçoavam os seus estudos em grandes centros culturais, como Alexandria, Atenas, Nápoles, Pérgamo e Rodes. Nesta fase merece particular destaque a atração de intelectuais gregos por Roma: professores, médicos, retores, filósofos, geógrafos, historiadores e artistas”1.

Por mais que existissem tentativas, por parte das elites aristocráticas e burocráticas romanas, de esconder a realidade de devassidão dos habitantes da cidade, a vida dos prazeres à grega era indissociável para um romano do Aventino, dos lupanares e ruas do bairro Subura, das zonas do Grande Circo, povoadas por populações à margem da sociedade. Esses nomes de bairros, e a associação que carregam, revelam, nas palavras de Catherine, a existência de uma “geografia do prazer”. Os romanos, muito antes de terem contato com a “má influência” grega, já cultivavam hábitos considerados reprováveis pela moral citadina. “O mito do romano casto, corrompido por costumes estrangeiros, deve ser posto na lista dos acessórios de uma comédia que os partidários da castidade original do povo latino gostam de presentar”2

Jogar a culpa aos estrangeiros era um método não muito efetivo de diminuir a culpa pelo que se praticava na cidade, que era associada a todas as formas de prazer, principalmente os proibidos. Basta lembrar que, entre os antigos, Roma é o anagrama de Amor. A elite tentava omitir essas práticas, mas ela mesma os praticava. No Império, é bom enfatizar, existia uma relação intensa entre poder e sexo, a qual pode ser exemplificada com os altos impostos cobrados das lupas, prostitutas, bordéis e choupanas; e até em decisões políticas tomadas durante bebedeiras ou relações entre quatro paredes.


1OLIVEIRA, Francisco; BRANDÃO, José Luís. História de Roma Antiga: vol I: das origens à morte de César. Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015, p. 270.

2SALLES, Catherine. Nos submundos da Antiguidade. 2° ed. São Paulo, Brasiliense, 1983. p. 171.


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Revista Aventuras na História

segunda-feira, 9 de maio de 2016

A produção historiográfica nos Estados Unidos entre 1940 e 1990

Entre 1940 e 1990, os principais ataques eram feitos à ideologia comunista.

O presente artigo é parte da minha resenha do capítulo IV do livro A História dos Homens, do historiador Josep Fontana. Esse capítulo, intitulado As Guerras da História, aborda como os embates ideológicos, travados com maior força desde a Segunda Guerra, influenciaram a produção historiográfica. Entre 1940 e 1990, travaram-se nos Estados Unidos embates violentos, que culminaram na instalação de um clima de vigilância contra o que era considerado nocivo à produção historiográfica:

As guerras da história se mostram mais violentas na outra parte do Mundo Ocidental, com maiores agravantes após a divisão ideológica causada pela Guerra Fria. Segundo Fontana, desde os anos 1930 se notam conflitos no ensino de História nos Estados Unidos, onde os livros que não se adequassem aos valores conservadores e patrióticos eram censurados e eliminados. A Associação Nacional de Manufaturas, nos anos 1940, possuía mais de 6.800 vigias locais, com a missão de manter a educação livre do perigo do coletivismo, que pode ser interpretado como Comunismo.

Após o fim da Primeira Guerra Mundial e a ascensão de duas forças antagônicas, Conservadorismo (representado pelos Estados Unidos) e Comunismo (representado pela URSS), os Estados Unidos passaram a atacar a história progressista de historiadores como Charles Beard e Carl Becker; e a elaborar uma história objetiva, que transmitisse ensinamentos morais. Nunca houve, nas palavras de Fontana, “uma associação tão íntima entre os historiadores e o poder que se estabeleceu nestes anos1. Historiadores de prestigiadas universidades passaram a trabalhar na CIA, na OSS, no Departamento de Estado e em outros órgãos do governo. A produção historiográfica que começava a se formar nesses anos de embates ideológicos visava não só a consolidação dos Estados Unidos como principal potência mundial e a defesa dos valores tradicionais americanos, mas também atendia ao interesse governamental sobre informações dos “inimigos”. Surgem sovietólogos, kremlinólogos, matérias universitárias sobre a Ásia e a Rússia. O historiador George Kennan fixa as linhas da política norte-americana em relação a URSS; e o professor emérito de História Russa, Richard Pipes, num primeiro momento, ataca o comunismo, para mais tarde, minar o estado de bem-estar social.

Aliava-se à história, nesse período, a sociologia, surgindo a sociologia histórica, que interpretava os fatos históricos a partir de modelos sociológicos esquemáticos. Também era produzida uma história erudita, representada por maciços trabalhos de compilação documental. Sociologia Histórica e História Erudita eram voltadas para o estudo de conflitos sociais e formas de evitá-los ou contê-los. Podem ser citadas as obras de Barrington Moore Jr., Charles Tilly e Theda Skocpol.

A repressão tornou-se constante no cenário intelectual americano. Livros considerados subversivos, com tendências pró-comunistas, eram censurados. A Daughters of the American Revolution chegou a denunciar 170 livros nessa categoria, que continham, por exemplo, expressões sobre coletividade, algo considerado pró-comunista. Esse clima repressivo permitiu o surgimento de uma história baseada na predestinação, na doutrina Destino Manifesto e em outros "talentos" considerados natos dos Estados Unidos. Não eram feitas menções à conquistas dos nativos, a grupos marginalizados e não eram feitas críticas sociais. Fontana, citando Gendzier, afirma que "voltava-se, ao mesmo tempo, à doutrina da objetividade, à rejeição da "ideologia" - isto é, das ideias dos outros - e da "construção social".2

Os Estados Unidos, representantes máximos do lado liberal da Guerra Fria, tinham de estender sua influência para outros países. Seus ideais eram difundidos através do Congresso pela Liberdade da Cultura (CCF), dirigido pela CIA e amparados por recursos provenientes do Plano Marshall. Eram financiadas revistas propagandistas dos ideais norte-americanos da Europa à Oceania: Na França, existiu a publicação preuves; na Grã-Bretanha, a EncounterCuadernos, na Espanha; Tempo Presente, na Itália; e outras de mesmo cunho na Austrália, Índia e Japão.

Outros campos do conhecimento humano passaram por transformações radicais dentro desse contexto. No campo das Artes, por exemplo, o realismo, vertente utilizada para popularizar as artes, é substituído pelo expressionismo abstrato. Essa vertente tem uma linguagem complexa, entendida apenas por uma pequena elite intelectual. As exposições dos artistas expressionistas abstratos eram financiadas pela CIA. No curso de Letras das universidades, língua e literatura passam a ser estudados sem se levar em conta o contexto social e histórico, apenas o conteúdo do texto. É um estudo elitista, que evita críticas tanto da direita quanto da esquerda. No estudo de Ciências Sociais, a National Science Foundation, pedia para aqueles que pediam apoio para seus estudos que evitassem qualquer ligação com reformas ou bem-estar social. Se o apoio viesse da iniciativa privada, os pedidos eram, por exemplo, que se evitassem pesquisas sobre relações de raça.

Dando um salto cronológico de quase 50 anos, Josep Fontana sai do período da Guerra Fria e entra nos anos 90, afirmando, no entanto, que a luta não terminou naqueles tempos de visível divisão ideológica. Nessa década, o presidente George W. Bush empreendeu uma grande reforma na educação dos jovens americanos, no qual estava incluído o conhecimento das “diferentes heranças culturais da nação”. A comissão encarregada da área da História teve uma tarefa árdua ao englobar uma gama de minorias presentes no país, numa tentativa de construir uma história verdadeiramente global. Os novos parâmetros de ensino ficaram prontos em 1994, e quase de imediato passaram a ser denunciados por grandes veículos de comunicação do porte de Wall Street Journal, que os acusavam “como uma conspiração para inculcar uma educação ao estilo comunista ou nazista, dentro de uma campanha contra o multiculturalismo e contra os “tenured radicals”: os professores “radicais” que se acreditava, sem fundamento algum, controlassem os ensinos de história, literatura ou antropologia nas universidades norte-americanas”3Emergiam novamente os conflitos da época da guerra, que de fato nunca foram superados.

As perseguições ao marxismo e seus simpatizantes continuava a funcionar com o mesmo mecanismo dos anos 40: os vigilantes e historiadores alinhados à classe dominante. O historiador David Abraham foi perseguido pelo também historiador Henry A. Turner; Norman Cantor atacava Lawrence Stone; Robert Conquest, que em seu último livro mostrara como as “ideias revolucionárias devastaram mentes, movimentos e países inteiros”, atacava o historiador inglês Eric Hobsbawm, autor de História do Século XX, livro bem aceito nos meios liberais britânicos.


1FONTANA, Josep. “As Guerras da História”. In: A História dos Homens. Bauru, (SP). p. 347.
2Ibidem, p. 353.
3Ibidem, p. 355-56.


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segunda-feira, 2 de maio de 2016

Alexandria - o Farol e o Porto

Por Antonio José Souto Loureiro


Alexandria em 1681. Gravura de Cornelius de Bruyn.

Os Egípcios receberam Alexandre com alegria, pois viam nele um libertador que poria fim ao duríssimo domínio persa. Por seu lado, Alexandre, como prova de respeito à civilização egípcia, dirigiu-se ao oásis de Siwa, para receber do deus Ámom-Rá a consagração como faraó legítimo.

Foi durante essa viagem que ele se deteve para fundar, no extremo ocidental do Delta, uma grande cidade, a primeira de uma longa série, à qual quis dar o seu nome. O seu plano consistia em erigir uma cidade sumptuosa que seria o núcleo do seu poder e um centro de cultura.  Alexandre Magno morreu antes de ver concluída a obra, mas Ptolomeu, seu sucessor, no Egito, foi quem continuou o seu ambicioso plano. Assim nascia Alexandria, no Inverno de 332-331 a.C., no local de uma antiga aldeia de pescadores e pastores chamada Rhakotis, a Oeste do delta, no istmo entre o mar e o lago Mareótis, perto do braço Canópico do Nilo.

Alexandria, estava magnificamente situada, na encruzilhada das rotas navais, fluviais e terrestres de três continentes: Europa, África e Ásia. Desta forma, será a capital cultural do Helenismo, pelo menos durante três séculos, e, rapidamente na maior cidade comercial do mundo.  A tradição atribui a planificação da cidade de Alexandria ao arquiteto e urbanista Dinócrates de Rodes, o mesmo que teria projetado a reconstrução do Artemísion de Éfeso, no tempo de Alexandre Magno. Duas grandes avenidas: a Avenida Norte-Sul e a Avenida Leste-Oeste, dividiam a cidade em quatro bairros principais, denominados pelas quatro primeiras letras do alfabeto grego. A artéria principal (Leste-Oeste), chamada Canópica, tinha 7 quilômetros e meio de comprimento e 30 metros de largura, sendo ladeada por passeios. A artéria norte-sul desdobrava-se em duas largas áleas separadas por um renque de árvores.

A configuração da cidade era geométrica. As ruas, de cada um dos seus 4 bairros, eram ortogonais. Dado o clima quente e seco característico daquela região, eram estreitas para originarem mais sombra. Na realidade, não eram necessárias ruas mais largas pois só em dias de festa a circulação tornava-se intensa. A cidade construiu-se muito rapidamente distinguindo-se das outras cidades egípcias por ter sido edificada não em tijolo, mas em pedra.

O palácio real dos Ptolomeus, o Bruquium, cobria por si só cerca de um quarto da cidade, todo ele construído com mármores importados. Contudo, a sua arquitetura, ainda que majestosa, em nada se assemelhava aos conjuntos monumentais das mansões faraônicas. Para além deste imenso palácio, a Neópolis, ou seja, a cidade nova, incluía diversas outras grandes construções: jardins, o Museu, a Biblioteca e o Teatro. A Leste, no subúrbio do Elêusis, situavam-se o ginásio, o estádio, o Hipódromo e um cemitério; a Oeste, a necrópole principal ao longo do canal que ligava Alexandria a Canopo. Nesta zona existiam ainda belos jardins e moradas sumptuosas onde, segundo o testemunho de Estrabão, se vivia alegremente.

O Porto

Para fazer de Alexandria um centro de comércio de primeira grandeza, foi necessário dotar a cidade com as estruturas e os aperfeiçoamentos necessários. Como o porto da cidade não era satisfatório, Alexandre mandou construir um porto artificial entre a costa e a Ilha de Faros que se encontrava aproximadamente a mil metros da margem. Esta ilha foi unida ao continente através de um paredão, o Heptaestádio, um dique com sete estádios de comprimento, aproximadamente 1200 m. A baía ficava assim dividida em dois portos: a leste, o porto de guerra, os arsenais, os estaleiros navais e o porto pessoal do soberano. A oeste, o porto mercantil, o Eunostos significando bom regresso. Duas aberturas existentes no dique permitiam aos navios passar de um porto para o outro. Este duplo porto de Alexandria foi mais tarde copiado em várias cidades helenísticas.

O Farol

O arquiteto Sóstrato de Cnido levantou, na ilha de Faros, o primeiro farol do mundo. Com cerca de 120 metros de altura e equipado com todos os instrumentos mecânicos então conhecidos para proteção da navegação era capaz de efetuar previsões meteorológicas. A sua luz era alimentada por lenha resinosa, içada por máquinas hidráulicas, que, por uma combinação de espelhos côncavos, se dizia ser visível a mais de 50 Km de distância.

O farol dispunha ainda de engenhos que assinalavam a passagem do sol, a direção do vento e as horas. Estava equipado com sinais de alarme acionados a vapor que se faziam ouvir durante o mau tempo, bem como com um elevador que permitia o acesso ao cimo da torre. Possuía também um periscópio gigante, por meio do qual um vigia podia observar embarcações que se encontrassem para além do horizonte aparente. Este farol, uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo, foi destruído por um terremoto no século XIV.

Em Alexandria a Bíblia deixou de ser uma tradição oral e foi escrita, pela primeira vez em grego. Quando foi tomada pelos árabes e sob o domínio bizantino, grande parte de seus rolos espalhou-se pela Europa, sendo talvez a raiz das bibliotecas dos conventos das Ordens então fundadas, como a dos Dominicanos.


Antonio José Souto Loureiro, 75, é escritor, médico reumatologista e historiador. Nasceu em Manaus, em 06 de junho de 1940. Formou-se em Medicina na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. É membro (Presidente) do Instituto Histórico e Geográfico do Amazonas (IGHA), da Maçonaria do Amazonas, da Academia Amazonense de Letras e da Academia Amazonense de Medicina. É autor de Amazônia 10.000 anos, 1972; Síntese da História do Amazonas, 1978; A Gazeta do Purus, 1981; A Grande Crise, 1986; O Amazonas na Época Imperial, 1989; Tempos de Esperança, 1994; Dados para uma História do Grande Oriente do Estado do Amazonas, 1999; História da Medicina e das Doenças no Amazonas, 2004; O Brasil Acreano, 2004; e o Toque de Shofar.




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quarta-feira, 27 de abril de 2016

Quando o Império Romano se torna Cristão

Por Pierre Maraval, historiador das religiões, especialista em Cristianismo Antigo, Antiguidade Tardia e professor emérito da Université Paris-Sorbonne.

A Visão da Cruz. Afresco de Rafael Sanzio, 1520-1524.

De Constantino a Teodósio
Da conversão do Imperador
à conversão do Império

Como muitos outros não-cristãos da sua época, o imperador Constantino parece ter sido, a princípio, simplesmente monoteísta, crendo num Deus criador supremo, conhecido por diferentes nomes e adorado de diversas maneiras. Assim, o Sol invictus aparece nas moedas depois de 308; só progressivamente é que ele virá a formular de maneira explícita, em textos provenientes da sua pena, sua adesão ao cristianismo. Não há por que contestar sua sinceridade, como fizeram vários historiadores, ainda que essa adesão lhe permita identificar-se como um instrumento escolhido pessoalmente por Deus e que essa relação pessoal adquira um alcance político: estava-se então num mundo em que pagãos e cristãos consideravam o imperador um indivíduo religiosamente marcado. Não se deve, de resto, imaginar uma conversão súbita, mas antes uma evolução, um despertar gradual: o próprio Eusébio de Cesareia, seu biógrafo, diz que o imperador recebeu várias vezes sinais de Deus.

Resulta em todo caso que, quando volta a Roma após a batalha da ponte Mílvio (312), Constantino encontra o denominador comum que garantirá tanto a unidade do seu Império - o reconhecimento de um Deus único -, como sua própria legitimidade, que ele faz proceder de uma missão pessoal recebida de Deus. Isso não o leva a uma atitude intolerante em matéria de religião. O "edito de Milão", de 313, exprime ao mesmo tempo a ideia de que a segurança do Império é assegurada pelo Deus supremo (e não mais pelos deuses da tetrarquia, Júpiter e Hércules) e o reconhecimento oficial do fato de que a religião não pode ser forçada. Constantino dá testemunho de uma política de consenso à qual cristãos e pagãos podem aderir, de um fundamento comum unitário: o monoteísmo, um monoteísmo que tolera as diferenças religiosas e rejeita a coerção. Pondo fim à Grande Perseguição lançada em 303 por Diocleciano, que fracassou em sua tentativa de erradicar o Cristianismo, Constantino tem em vista, portanto, conquistar os cristãos, incorporá-los ao Império e à sua política tradicional.

O caso é que, bem cedo, ele vai favorecer de forma manifesta a Igreja: doações de dinheiro, de terrenos, de palácios, financiamento de basílicas em Roma e em Jerusalém. Com isso, os bispos requerem que ele se envolva em seus assuntos internos e se, num primeiro, procura resolver os conflitos entre eles de maneira consensual, as resistências encontradas logo o levam a tomar medidas severas contra os dissidentes: donatistas e, mais tarde, arianos. Em compensação, em relação à religião tradicional, conserva uma atitude de tolerância (conquanto um pouco desdenhosa), contentando-se em proibir algumas práticas já recusadas por um paganismo esclarecido (os sacrifícios sangrentos, a magia, a adivinhação privada). Se não pôde conter os bispos e suas ásperas desavenças teológicas, soube, porém, durante seu reinado, neutralizar um cristianismo militante antipagão.

Os sucessores cristãos de Constantino (em particular Constâncio II, Valêncio e Teodósio) continuam a intervir nos assuntos da Igreja. Para tanto, podem se apoiar na teologia política elaborada por Eusébio de Cesareia em seus derradeiros escritos, em particular no Discurso para os trinta anos de reinado e na Vida de Constantino: se autor apresenta, neles, o modelo de um basileus cristão, posto à frente de um Império também cristão. Isso implica que ele "submeta os inimigos da verdade", proclame "as leis da verdadeira piedade" para todos, cuide de assegura  a salvação de todos. Investidos dessa missão de proteção, se não de vigilância, os imperadores cristãos, ao longo de toda a crise ariana, sustentam ou impõem fórmulas de fé diversas, concedendo seus favores aos que as aceitam, mas perseguindo os que as rejeitam (os dissidentes, sobretudo bispos, são depostos e banidos - é o caso de Atanásio de Alexandria e de Hilário de Poitiers). Ao cabo de cinquenta anos de controvérsias, a ascensão ao poder de Teodósio I (379-395) assinala o retorno definitivo à "ortodoxia". Definida no Concílio de Niceia de 325 e reafirmada no Concílio de Constantinopla de 381, recebe o apoio do imperador, que faz dela uma lei válida para todos. Uma série de leis, cada vez mais repressivas, restringem a liberdade de expressão e de culto de todos os dissidentes da ortodoxia, tidos como heréticos e perseguidos como tais.

Mas, entre os deveres do imperador, Eusébio incluía também o de combater o "erro ateu", o paganismo. Por isso, paralelamente às medidas de repressão das dissidências cristãs, os sucessores de Constantino tomam outras que vão restringir, depois proibir, a liberdade do culto pagão. Os filhos de Constantino são os primeiros a atacá-lo. Uma lei de Constante, de 341, declara: "Cesse a superstição, seja abolida a loucura dos sacrifícios." Ainda não se trata, porém, ao que parece, de uma proibição absoluta de todos os cultos pagãos já autorizados, mas de uma simples renovação das restrições impostas por Constantino. De fato, uma lei sua proíbe que se destruam templos, tolerados, "embora toda superstição deva ser totalmente destruída". Constâncio II vai mais longe, por motivos entre os quais parece ter estado a política: no período que vai de 353 a 357, depois da derrota do usurpador Magnêncio, que havia autorizado novamente os sacrifícios noturnos, várias leis ordenam o fechamento dos templos e tentam proibir totalmente o culto pagão: quem ousar sacrificar é ameaçado de ser "golpeado por um gládio vingador" e de confisco dos bens; a adoração de estátuas é proibida sob pena de morte. No entanto, essas medidas só foram parcialmente aplicadas. A política religiosa dos dois irmãos não resulta portanto na repressão sistemática do paganismo, mas somente num acentuado desfavorecimento.

O imperador Juliano, que nascera cristão mas voltara à religião tradicional, abole aquelas medidas e tenta reavivar esta; todavia, seu curto reinado (361-363) não lhe permite levar a cabo essa empreitada. Sua lei escolar, logo abolida por seu sucessor Joviano, havia tentado proibir que os professores cristãos difundissem a herança da cultura clássica, tida como um bem do paganismo. A política dos sucessores de Valenciniano e Valêncio é, no entanto, relativamente tolerante com este. Uma das suas principais leis, renovada em 370, declara manter a liberdade de culto. Mas, no final do seu reinado, Valêncio proíbe de novo os sacrifícios sangrentos.

A política religiosa de Graciano e Teodósio I - depois, com a morte do seu associado, deste último somente - adotará medidas muito mais decisivas, que acabarão pondo o paganismo fora da lei. Quando da sua ascensão ao poder, Teodósio rejeita o título e o manto de Pontifex maximus, e logo em seguida Graciano renuncia a ele. Os cristãos que voltam ao paganismo são objeto de vários editos, perdendo desde 381 o direito de fazer testamentos. Essa lei é renovada em 383: aplicando-se estritamente aos cristãos batizados que abandonam sua fé, considerados "excluídos do direito romano", ela deixa aos que foram apenas catecúmenos o direito de testar em benefício da família. Será endurecida por Teodósio em 391, a pretexto de que o abandono da comunhão cristã equivale a "apartar-se do resto dos homens". Por outro lado, velhas interdições visando as práticas religiosas tradicionais são renovadas: em 381 e 382, os sacrifícios sangrentos são proscritos, sob pena de deportação; em 385, as práticas de adivinhação, sob pena de morte. Os dois imperadores também vão investir contra as próprias instituições do culto pagão. No outono de 382, Graciano manda tirar do Senado a estátua e o altar da Vitória, depois suprime as imunidades das Vestais e dos sacerdotes pagãos, confisca seus rendimentos e subvenções; Teodósio ordena o fechamento dos templos: só podem permanecer abertos, com fins unicamente culturais ou para a realização de assembleias públicas, os que contêm obras de arte. Vários templos, em 384, são fechados ou demolidos.

Mas é uma série de leis emitidas de 391 a 394 que culmina essa investida, vedando qualquer manifestação do culto pagão: a lei de 24 de fevereiro de 391, proíbe-a para Roma; a de 16 de junho, para o Egito; a de 8 de novembro de 392, para todo o Império. Todos os sacrifícios, inclusive os modestos sacrifícios do culto doméstico, são desautorizados, seja em público, seja em particular, seja qual for o nível social, sob pena de multas pesadíssimas e até de punições mais graves. Essa lei é que faz do cristianismo a religião do Império, já que a religião tradicional perdeu todo direito legal de se exprimir: com Teodósio (e não com Constantino, como às vezes se diz), o Império Romano tornou-se oficialmente cristão.

FONTE:

MARAVAL, Pierre. Quando o Império Romano se torna cristão. In: CORBIN, Alain - (org.). História do Cristianismo. São Paulo, Martins Fontes, 2012.


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cleofas.com.br

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Antigos Cemitérios Cristãos de Roma

Orante. Pintura sobre reboco do século III em uma Catacumba Romana, representando uma mulher em súplica e oração no que seria o Paraíso. Sob a pintura, os túmulos.

Em Roma, os cemitérios se situavam fora dos portões da cidade. Os romanos tinham os corpos cremados, e suas cinzas guardadas em urnas junto das de outros parentes. Os judeus que viviam no Império enterravam seus mortos em cemitérios subterrâneos, administrados pelas sinagogas. Os cristãos seguiam a mesma prática dos judeus referentes ao sepultamento, e seus cemitérios ficaram conhecidos como ''catacumbas''.

As catacumbas estavam localizadas em propriedades de cristãos ou de ricos protetores pagãos. Os cristãos que tinham algumas terras as doavam à comunidade cristã para os sepultamentos que iam crescendo. As catacumbas possuíam uma estrutura bastante complexa, divididas em ambulacra (passagem subterrânea), loculi (túmulos escavados na parede), pilae (túmulos um sob do outro), arcosolium (túmulos decorados com um nicho em arco), cubicula (câmaras particulares para os túmulos de uma família) e as cryptae (capelas decoradas com afrescos de motivos religiosos, dedicadas geralmente a pessoas importantes e santos). Os túmulos eram abertos dos dois lados da catacumba, e quando não existia mais a possibilidade de novas escavações, o piso dos corredores era escavado e recebia novos túmulos (formae).

Os cemitérios cristãos eram protegidos contra sacrilégios pela Lei Romana, que os considerava invioláveis. Os romanos tinham medo de violar os túmulos cristãos, pois acreditavam que poderiam ser incomodados pelos espíritos dos mortos. Quanto a nomenclatura, as catacumbas eram reconhecidas pelo nome do antigo proprietário onde foram escavados os túmulos; pela topografia onde estavam assentadas; e pelo nome de algum mártir ou santo.

Enterros em catacumba foram práticas em alta durante a época do Cristianismo Primitivo (séculos I, II, III e parte do IV d.C.); que passaram a entrar em declínio após a transformação do Cristianismo em religião estatal do Império Romano, através do Édito de Tessalônica de 380 d.C., realizado durante o governo de Teodósio I. Os corpos passaram a ser sepultados em cemitérios localizados nos terrenos das igrejas.

O mapa abaixo, retirado do livro A Idade Antiga – Curso de História da Igreja I, de Franco Pierini (Paulus, 2013), nos dá a localização de 41 cemitérios cristãos ao redor da cidade de Roma, espalhados pelas inúmeras vias que ajudavam na comunicação entre as cidades italianas.

Esses cemitérios, além de representarem um dos aspectos culturais dos cristãos que viviam em Roma, são o testemunho da Arte Cristã Primitiva, representada nos inúmeros afrescos com motivos religiosos que decoravam os corredores de túmulos.




FONTES: JEFFERS, James S. Conflito em Roma: ordem social e hierarquia no Cristianismo Primitivo. São Paulo, Edições Loyola, s. d. Págs 73,74 e 75.

O mapa foi entregue pela professora de História Antiga II, Maria Eugênia Matos, aos alunos da graduação em História da UFAM (Universidade Federal do Amazonas).


CRÉDITO DAS IMAGENS:

historiasevariaveis.blogspot.com
A Idade Antiga - Curso de História da Igreja I




segunda-feira, 11 de abril de 2016

Glossário Histórico sobre o Império Romano

Ruínas romanas. Giovanni Paolo Panini, século XVIII.

Os termos abaixo são de essencial importância para a compreensão histórica e social do Império Romano. Eles foram retirados do livro O Império Romano (1993), do historiador e latinista francês Pierre Grimal. O glossário foi entregue aos alunos da graduação de História da UFAM (Universidade Federal do Amazonas), sob o comando da professora de História Antiga II, Maria Eugênia Matos.

Academia: Jardim sagrado do herói Akadêmor, nos arredores de Atenas. Era ali que Platão, e depois os seus discípulos, ministravam o seu ensino.

Apocoloquintose: Esta palavra significa <<transformação em abóbora>>. Paródia da palavra (e da noção) de apoteose. Título de uma sátira redigida por Sêneca em 54, destinada a ridicularizar Cláudio, que acaba de morrer e é divinizado e, sobretudo, a prometer aos senadores que o jovem Nero não cometerá os excessos de que o Senado se queixara no reinado anterior.

Apoteose: Reconhecimento oficial, pelo Senado, da divinização de um imperador defunto. Origina, em cada caso, a organização de um culto, com um clero especial, e, muitas vezes, a construção de um templo consagrado ao novo deus.

Auctoritas: O fato de uma pessoa ou um grupo constituído possuir a eficácia necessária para assegurar o sucesso de uma empresa projetada. Assim, o Senado garante que determinada lei, apresentada ao povo, será boa. Autoridade moral.

Casa das Vestais: Edifício de peristilo existente no Fórum Romano, perto do Templo de Vesta. Ali se alojava o Colégio das Vestais (em número de sete durante o Império). Esta casa, muito aumentada com o decorrer dos séculos, remonta, no seu estado atual, ao reinado de Sétimo Severo.

Cicerianismo: Nome dado por S. Jerônimo à cultura pagã, simbolizada pela obra de Cícero, em que a preocupação com a forma literária prevalece sobre o conteúdo do pensamento.

Comícios curiata: A mais antiga assembleia, formada por membros das cúrias e representando o populus, fonte de poder, exatamente como o Senado. São estes comícios que conferem o imperium, primeiro aos reis, depois aos magistrados saídos da realeza, cônsules e pretores. Também tratam de casos de adoção. A sua natureza é de essência religiosa.

Congiário: Distribuição ao povo de vinho, trigo, azeite, etc. Por extensão, distribuição de dinheiro. Quando se trata de dinheiro dado aos soldados também se emprega o termo donativum.

Constituição serviana: Organização da cidade atribuída ao rei Sérvio Túlio, no século VI a.C. Divisão dos cidadãos em cinco classes censitárias, estas mesmas divididas em centúrias, em função do seu papel no exército.

Cônsul: Nome de dois magistrados supremos saídos do desmembramento do poder real, em 509 a.C. Estes magistrados ficaram inicialmente conhecidos por praetores (de prae-ire, ir à frente, preceder); a palavra cônsul realça a ideia de deliberação e também de previdência, de desígnio cuidadosamente premeditado. Os cônsules, primeiramente escolhidos pelos patrícios, possuem o imperium. Cada um deles tem o direito de se opor a uma decisão do outro.

Cúria: Na Roma arcaica, divisão do corpo dos cidadãos, espécie de <<paróquias>> que os reúnem. Havia dez cúrias por tribo. Por extensão, local onde se reúne uma cúria. Por fim, a cúria por excelência é o local onde se reúne o senado. É o sentido da palavra na época clássica e durante o Império.

Cursus honorum: Série de magistraturas que um Romano devia exercer no âmbito das instituições, antes de atingir o consulado. São a questura, a edilidade (patrícia ou plebeia), o tribunado da plebe (para os plebeus), a pretura, o consulado. Deve haver um intervalo de dois anos entre duas magistraturas consecutivas, de tal modo que, durante a República, não se podia ser cônsul antes dos quarenta e um anos. Durante o Império, o cursus devia ser precedido por um serviço militar e uma magistratura menor, seguindo-se a questura exercida aos vinte e cinco anos, dois anos mais tarde a pretura, e o consulado aos trinta e dois anos. A censura não está integrada no cursus.

Digesto: Coletânea de textos provenientes das obras dos jurisconsultos, criada em 533, por ordem de Justiniano.

Dioniso: Também chamado Baco (Bacchus em terras latinas). Assimilado ao itálico Liber Pater. Divindade grega da vegetação, em particular da vinha e, por conseguinte, do vinho. Preside ainda à fecundidade animal e humana. É apresentado rodeado de sátiros e de Bacantes (ou Ménades). O seu culto está na origem da tragédia. Uma lenda muito tardia apresentava-o como um triunfador vindo dos confins da Índia, onde teria sido educado pelas Ninfas, no monte Nisa. A sua presença na Grécia é muito remota, segundo a confirmação.

Donatismo: Cisma da Igreja Cristã de África, formada em redor do bispo de Cartago Donat (312). A questão estava em saber se seria necessário excluir aqueles que haviam traído a fé divulgando os livros sagrados durante a perseguição de Diocleciano. Donat e os seus partidários recusavam-se a admiti-los na Igreja. O donatismo foi por diversas vezes condenado, por um sínodo, depois por um concílio gaulês, finalmente por Constantino, mas os donatistas resistiram até ao fim da África Romana (invasão dos Vândalos, em 429).

Epicuristas: Discípulos do filósofo Epicuro (341-270). Nascido em Samos, ensinou em Atenas uma doutrina materialista, baseada numa física atomista. Mas a sua preocupação principal não consiste em fornecer uma explicação do mundo; é essencialmente moral. Trata-se de assegurar a felicidade dos homens. O Bem supremo é o prazer, menos o dos sentidos do que a tranquilidade da alma, isto é, a ausência de perturbações (ataraxia). Epicuro acredita que a alma humana é inteiramente material e que não contém nenhuma possibilidade de sobrevivência. Os relatos referentes ao além-túmulo não passam de fábulas ilusórias. Para ele, os deuses existem, mas só comunicam conosco através do sonho e não intervêm no comportamento do mundo nem nos assuntos humanos.

Filosofia do Jardim: Nome muitas vezes atribuído ao epicurismo, desde que o fundador da escola, Epicuro, se instalou num parque que comprara nos arredores de Atenas.

Gens: Grupo social que, na Roma arcaica, se considerava descendente de um antepassado comum. Com o decorrer do tempo, a gens dividiu-se em familiae, cada uma delas caracterizada por um cognomen (apelido) hereditário (por exemplo os Cornelli: além dos Cornelli Scipiones, existiam Cornelli Cethegi, Cornelli Lentuli, etc.). Mas entre os diferentes ramos subsistia um laço místico, o sentimento de um parentesco profundo.

Humanitas: Noção (a palavra deriva de homo, ser humano) que implica o reconhecimento das particularidades espirituais próprias do ser humano e, consequentemente, o respeito deste pelo outro. Esta noção parece ter existido, em Roma, antes da influência dos filósofos. Está implícita nas formas mais arcaicas do direito, em particular o ius gentium, que reconhecia direitos aos não-cidadãos.

Idos: Divisão do mês. O primeiro dia do mês tem o nome de calendas. Seguem-se as nonas, que são a 7 de Março, de Maio, de Julho e de Outubro, e a 5 nos restantes meses. Os idos, que são a 15 nos meses de Março, Maio, Julho e Outubro, e a 13 nos outros meses. As datas formulam-se em função dos dias que faltam para uma destas referências. Assim, diremos: o 5 antes das calendas (ou, mais frequentemente: o 5 das calendas), o 3 das nonas (o mesmo que o 5 ou o 3 consoante o mês).

Intercessio: Direito reconhecido aos tribunos da plebe que podem vetar as decisões de um magistrado, seja este quem for, e mesmo, eventualmente, de um senátus-consulto. Por este ato, o tribuno interpunha-se entre o magistrado e o cidadão em causa. O objetivo consistia em subtrair os cidadãos às arbitrariedades.

Ísis: Divindade egípcia, mulher de Osíris. Como este tivesse sido condenado à morte por Tifão (o deus das trevas) e o seu cadáver cortado em pedaços, Ísis tentou reconstituí-lo e restituiu-lhe a vida. Ísis é uma divindade do mar. Dedicaram-lhe um culto em todo o contorno do Mediterrâneo, em particular na Campânia, por onde penetrou no mundo itálico. Teve um templo no Campo de Marte. O seu culto é assegurado por um clero sujeito a obrigações muito precisas (vestes de linho, sem nenhuma matéria de natureza animal, alimentação, etc.), que cumprem cerimônias diárias. A religião isíaca parece ter exercido uma grande atração sobre as mulheres.

Ius Fetiale: Os Feciais eram um colégio de dois sacerdotes encarregados das relações, de ordem religiosa, com os povos estrangeiros. Estavam encarregados, em particular, de proceder às declarações de guerra, mas também da conclusão dos tratados de paz. O <<chefe>> dos Feciais usava o nome de Pater patratus. O conjunto das regras que presidia às suas atividades era o ius fetiale.

Jogos: Tradição itálica muito antiga, muito viva entre os Etruscos, em que dançarinos e mimos estão encarregados de evocar todo um mundo místico e, ao mesmo tempo, de provocar a alegria, o prazer de viver. Este cortejo forma-se para os funerais. Mas existem jogos em honra de todas as divindades (Flora, etc.). As divindades satisfeitas só podem ser favoráveis aos mortais. Havia jogos que consistiam em corridas de cavalos, de carros, que exaltavam uma religião da Vitória. Os Jogos da Vitória de César tinham por desígnio agradecer às divindades, saudar o novo deus e acompanhá-lo alegremente na subida ao céu.

Larário: Capela onde, em cada casa, se colocam as estatuetas representando as dividades que as protegem. Estas divindades começam por ser os Lares, antiga palavra etrusca que designava os <<Senhores>>, e depois todas aquelas por quem os habitantes da casa sentem uma devoção em particular. Esta capela encontrava-se, em geral, no tablinum (o compartimento que se abria ao fundo do atrium), e muitas vezes também na cozinha.

Legião: O termo significa um corpo de tropas formado entre os cidadãos (e só estes). Durante a República, compreende 4.200 homens; a partir de C. Mário (pelo ano 100. a.C.), é de 6.000 homens. A legião está dividida em centúrias reunidas duas a duas num manípulo. Desenvolve-se em três linhas: à frente, os hastati, seguem-se os príncipes, e, por fim, na terceira fila, os triarii. Importa acrescentar os vélites, mal armados e que combatem foram da legião assim formada, e uma cavalaria legionária de 600 homens.

Libertas: Palavra que designa a República, durante o Império.

Liceu: Pórtico consagrado a Apolo Liciano, em Atenas, e o ginásio contíguo, onde ensinaram Aristóteles e os discípulos. A doutrina do Liceu é o aristotelismo.

Liga Acaica: Confederação que compreende cidades do Peloponeso (na Acaia), depois da conquista macedônica, na segunda metade do século IV a.C. A capital é Corinto. As cidades acaicas eram hostis a Esparta, que favoreciam os Romanos. Mummius obteve uma vitória decisiva contra a Liga em Leucóptera, em 146. Corinto, capital da Liga, foi tomada e pilhada.

Limes: Literalmente <<passagem>> entre dois campos. Depois, zona defensiva estabelecida ao longo de uma fronteira em que consistia numa estrada paralela à linha de combates que ligava entre si fortalezas e campos. Base de partida para uma defesa efetiva. Existia um limes ao longo do Reno, outro na Síria, outro em África, etc.

Livros Sibilinos: Coletânea de receitas religiosas e mágicas encontrada, segundo constava, na sepultura do rei Numa, em Roma. Atribuída à Sibila de Cumes, personagem meio lendária. Conservada por um colégio de dez sacerdotes, era consultada em caso de crise ou quando se produzia algum prodígio. Augusto mandou encerrá-la no pedestal do Apolo Palatino.

Municípios: Cidades já existentes antes da conquista romana e que conservam as suas instituições tradicionais ou às quais foram atribuídos magistrados e assembleias análogas às de Roma. Na prática, designam-se por municípios as cidades de direito latino, que não possuem o direito de cidade romana, mas uma forma inferior. Só os magistrados destas cidades recebem o título de cidadão romano.

Olimpianos e Titãs: Antiga lenda, decerto vinda do Oriente, recolhida por Hesíodo na Teogonia. Os Titãs, nascidos da união do Céu (Urano) e da Terra (Gaia), personificam forças naturais. São em número de seis, com seis Titânides. O mais novo é Cronos, que será o pai de Zeus, origem dos Olimpianos. Os Titãs revoltar-se-ão contra Zeus, que os precipitará no Tártaro.

Ordo senatorius: Classe de cidadãos formada por pessoas que possuem o censo senatorial, isto é, a fortuna necessária para serem senadores; mas esta situação não dá lugar à entrada no Senado.

Otium: O fato de não sofrer nenhum constrangimento, nenhuma obrigação. Lazer (o contrário é negotium, <<negócio>>). Designa a paz no conjunto da cidade.

Poder tribunício: Conjunto dos poderes pertencentes aos tribunos da plebe, essencialmente a sacrossantidade e o direito de intercessio.

Pontifex Maximus: Sumo Pontífice, presidente do colégio dos pontífices, sacerdote de caráter arcaico, de origem e de funções obscuras. O Sumo Pontífice é eleito pelo povo, por toda a vida. Mora numa residência oficial, a Domus Publica, perto da Casa das Vestais. Controla o conjunto da religião, o que lhe confere um grande poder. Exerce uma autoridade absoluta no Colégio das Vestais.

Pretor: Magistratura desligada do consulado, a partir de 367 a.C., quando foi criado um pretor urbano, encarregado de <<dizer o direito>> na cidade (a urbs). Em 242 é criado um praetor peregrinus, cuja jurisdição se estende aos estrangeiros residentes em Roma (peregrini). Os pretores possuem o imperium, o que lhes confere o direito de promulgar editos (ius edicendi). A partir de 227, os pretores, eleitos para este fim, são encarregados de governar províncias recém-criadas. A partir de César, os pretores serão em número de dezesseis.

Procônsul: Cônsul prorrogado na sua magistratura e encarregado do governo de uma província.

Propretor: Pretor prorrogado, ao terminar o cargo, e a quem é confiado o governo de uma província.

Província: A palavra designa, em primeiro lugar, uma missão, de uma ordem qualquer, da qual é encarregado um magistrado, e depois, mais particularmente, o território no qual é exercida esta missão. Durante a República, um general vencedor tem como <<província>> o território que conquistou; com a ajuda de uma comissão senatorial, e sob o seu controlo, fica encarregado de estabelecer a lex provinciae, o estatuto jurídico da sua <<província>>.

Queruscos: Povo germano estabelecido na região do Hesse.

Quirites: Nome dado aos cidadãos romanos de condição privada. Opõe-se a milites (soldados). Segundo a tradição, foram primeiramente designados Sabinos, vindos da cidade de Cures e estabelecidos em Roma no tempo do rei Numa.

Res Gestae: Literalmente, <<ações cumpridas>>. Augusto estabelecera ele próprio o balanço da sua ação, capítulo por capítulo, e este texto foi afixado em frente do seu mausoléu, no Campo de Marte, por volta do ano I d.C. Contém uma justificação da sua política, desde a tomada do poder. A inscrição comportava uma versão em língua latina, outra em língua grega. Foi descoberto um exemplar em Ankara, a antiga Ancira. Tinham sido enviadas réplicas para todas as grandes cidades do Império.

Sacrossantidade: Caráter inviolável da pessoa de um magistrado, em princípio, durante a República, um tribuno da plebe. Qualquer tentativa de violência para com um tribuno coloca o culpado fora da lei.

Saepta: Conjunto de recintos ao ar livre, destinados a reunir, materialmente, por unidades de voto, os eleitores que, em seguida, passavam um a um sobre uma ponte para depor o seu boletim de voto. Dizia-se saepta ou, por vezes, ovilia, redis de carneiros.

Senátus-consulto: Decisão tomada oficialmente pelo Senado para resolver um problema particular como, por exemplo, tomar medidas policiais, cuja responsabilidade nenhum magistrado queria assumir. Estas medidas não podiam ser contestadas tão facilmente como o seria a decisão de um magistrado.

Sumo Pontífice: Ver Pontifex Maximus.

Tabularium: Grande monumento, ainda existente, destinado a guardar os arquivos oficiais (as tabulae, as tábulas), construído no tempo de Sila entre o Capitólio propriamente dito e o Arx, a Cidadela, fechando assim a depressão existente entre os dois cumes da colina.

Término: Divindade que assegura o caráter sagrado e inviolável dos limites legalmente estabelecidos: de uma propriedade privada, de uma fronteira, etc. O deus é figurado por uma pedra solidamente fixada ao solo.


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