François-René
Auguste, visconde de Chateaubriand (1768-1848) foi escritor,
ensaísta, diplomata, político e historiador francês, considerado
um dos principais nomes do pré-romantismo. De família nobre,
caracterizou-se pela defesa da religião católica e da Monarquia
francesa, em obras como Ensaio histórico, político e moral
sobre as revoluções antigas e modernas (1794-1797) e O
gênio do Cristianismo (1802). Não via com bons olhos
Napoleão Bonaparte, para ele um estrangeiro (Napoleão nascera na
Itália) que usurpou o trono francês. Isso lhe rendeu perseguições
e censura. Com o fim da Era Napoleônica, em 1815, voltou ao
prestígio e liberdade de produção literária. Como pré-romântico,
valorizava as emoções, a imaginação e a religiosidade na
história, em oposição a super valorização da razão e do
anticlericalismo que dominara a Europa durante a Revolução de 1789.
Também escreveu os romances Atala, Os
natcheses, René e o relato Viagem à
América.
No
prefácio de seus Estudos Históricos, Chateaubriand
empreende um trabalho metódico sobre a História, pautado pela
erudição documental de decretos reais, leis, cartas e dicionários.
Essas fontes passavam por uma análise minuciosa, estabelecida no
século XVII por Jean Mabillon, em De re diplomatica (1681),
a fim de garantir uma narrativa segura. Da escola histórica alemã,
a qual tinha um conhecimento escasso, valorizava os contos populares,
as lendas, as poesias medievais e gestas escandinavas como fontes
históricas, não se limitando à história política. Também
expressa suas dúvidas sobre os rumos da História em seu tempo;
discorre sobre os historiadores franceses e a história crítica da
França antes da revolução; analisa a escola histórica moderna da
França, a escola história da Alemanha, a Filosofia da História e a
história na Inglaterra e na Itália. Por ser um prefácio extenso,
irei dividir o texto em três partes.
ÉTUDES
HISTORIQUES (1843)
Heródoto
começou sua história declarando os motivos que o fizeram
empreendê-la; Tácito explicou as razões que lhe colocaram a pena
na mão. Sem ter os talentos desses historiadores, posso imitar seu
exemplo; posso dizer, como Heródoto, que escrevo para a glória de
minha pátria, e porque vi os males dos homens. Mais livre que
Tácito, não amo nem temo os tiranos. Agora isolado sobre a Terra,
não esperando nada de meus trabalhos, encontro-me na posição mais
favorável para a independência do escritor, pois já convivo com as
gerações das quais evoquei as sombras.
As
sociedades antigas perecem; de suas ruínas saem sociedades novas:
leis, costumes, usos, hábitos, opiniões, princípios mesmo, tudo
mudou. Uma grande revolução aconteceu, uma grande revolução se
prepara: a França deve recompor seus anais, para colocá-los em
contato com os progressos da inteligência. Nessa necessidade de uma
reconstrução sobre um novo, onde buscar materiais? Quais foram os
trabalhos executados antes do nosso tempo? Que existe a louvar ou a
lamentar nos escritores da antiga escola histórica? Deve a nova
escola ser inteiramente seguida, quais são os autores mais notáveis
dessa escola? Seria tudo verdadeiro nas teorias religiosas,
filosóficas e políticas do momento? Eis o que me proponho examinar
neste prefácio. Eu trabalhava havia anos em uma história da França,
da qual estes estudos não representam senão a exposição, as
visões gerais e os destroços. Falta minha vida à minha obra: no
caminho onde o tempo me retém, eu aponto com a mão aos jovens
viajantes as pedras que eu havia acumulado, o solo e o lugar onde eu
queria construir meu edifício.
Os
antigos haviam concebido a história de modo muito diferente do
nosso; eles a consideravam um simples ensinamento, e, sob esse
aspecto, Aristóteles a colocou num patamar inferior ao da poesia;
eles concediam pouca importância à verdade material; e isso lhes
bastava, ainda que houvesse nela um fato verdadeiro ou falso a
relatar, que esse fato oferecesse um grande espetáculo ou uma lição
de moral e de política. Liberados dessas imensas leituras sob as
quais a imaginação e a memória são igualmente esmagadas, eles
tinham poucos documentos para consultar; suas citações são quase
nada, e quando eles remetem a uma autoridade, é quase sempre sem
indicação precisa. Heródoto contentou-se em dizer em seu primeiro
livro, Clio, que escrevia conforme os historiadores da
Pérsia e da Fenícia; em seu segundo livro, Euterpe, ele
falava conforme os sacerdotes egípcios que lhe leram seus
anais. Ele reproduziu um verso da Ilíada, uma
passagem da Odisseia, um fragmento de Ésquilo: não
fizeram falta a Heródoto outras autoridades, nem aos seus ouvintes
nos Jogos Olímpicos. Tucídides não fez uma única citação:
mencionou somente alguns cantos populares.
Tito
Lívio nunca se apoiou sobre um texto: autores,
os historiadores relatam; é sua maneira de
proceder. Em sua terceira Década, ele lembrou os dizeres
de Cintius Alimentus, prisioneiro de Aníbal, e de Coelius e Valerius
sobre a guerra púnica.
Em
Tácito as autoridades são menos raras, ainda que bem pouco
numerosas; não se podem contar senão 13 referências: são elas, no
primeiro livro dos Annales, Plínio, historiador das
guerras da Germânia; no quarto livro, as Memórias de
Agripina, mãe de Nero, obra cuja perda nunca será suficientemente
lamentada; no terceiro livro, Fábio Rústico, o historiador Plínio
e Cluvius; no 14° livro, Cluvius; no 15°, Plínio. No terceiro
livro de Histórias, Tácito mencionou Massala e
Plínio, e remeteu às Memórias que tinha em mãos;
no quarto livro, ele se referiu aos sacerdotes egípcios;
nos Costumes dos germânicos, escreveu um verso de
Virgílio modificado. Com frequência ele dizia: "os
historiadores destes tempos relatam": temporum illorum
scriptores prodiderint; ele explicou seu sistema declarando que
não mencionava os nomes dos autores a não ser quando divergiam
entre si. Assim, duas citações vagas em Heródoto, nenhuma em
Tucídides, duas ou três em Tito Lívio e 13 em Tácito formam todo
o corpo de autoridades desses historiadores. Alguns biógrafos como
Suetônio e Plutarco, sobretudo, leram um pouco mais das Memórias;
mas as numerosas citações são deixadas aos compiladores, como
Plínio, o naturalista, Ateneu, Macróbio e São Clemente de
Alexandria, em seus Stromateis.
Os
analistas da Antiguidade não faziam entrar em seus relatos o quadro
dos diferentes ramos da administração; as ciências, as artes, a
educação pública eram rejeitas do domínio da história; Clio
caminhava agilmente, desembaraçada da bagagem pesada que arrasta
hoje atrás de si. Com frequência o historiador era apenas um
viajante relatando o que havia visto. Agora a história é uma
enciclopédia; é preciso tudo incluir nela, da astronomia à
química; da arte das finanças à da manufatura; do conhecimento do
pintor, do escultor e do arquiteto até a ciência do economista; do
estudo das leis eclesiásticas, civis e criminais até o das leis
políticas. O historiador moderno abandona-se ao relato de uma cena
de costumes e de paixões, a gabela sucede o belo ambiente; um outro
imposto exige; a guerra, a navegação, o comércio acorrem. Como as
armas era feitas então? De onde se tirava a madeira de construção?
Quanto valia a libra de pimenta? Tudo estará perdido se o autor não
observar que o ano começava na Páscoa e ele o datou do 1° de
janeiro. Como pretender que sua palavra seja confiável, se ele se
enganou sobre a página de uma citação, ou se ele referiu mal a
edição? A sociedade permanece desconhecida, se forem ignorados a
cor dos calções do rei e o preço do marco de prata. Esse
historiador deve saber não apenas o que se passou em sua pátria,
mas também nas terras vizinhas; e entre esses detalhes é preciso
que uma ideia filosófica esteja presente em seu pensamento e lhe
sirva de guia. Eis os inconvenientes da história moderna: eles são
tais que nos impediram talvez de ter um dia historiadores como
Tucídides, Tito Lívio e Tácito; mas não se pode evitar esses
inconvenientes é preciso submeter-se a eles.
O
escritor chamado a pintar um dia um grande quadro de nossa história
não se limitará à procura das fontes de onde saíram imediatamente
os francos e os franceses; ele estudará os primeiros séculos das
sociedades vizinhas da França, porque os jovens povos de diversos
lugares, como as crianças de diversos países, possuem entre si a
semelhança comum que lhes dá a natureza, e porque esses povos,
nascidos de um pequeno número de famílias aliadas, conservam em sua
adolescência a marca dos cuidados maternos.
Quatro
espécies de documentos contêm a história inteira das nações na
ordem sucessiva de sua idade: as poesias, as leis, as crônicas de
fatos gerais, as memórias que pintam os costumes e a vida privada.
Primeiro os homens cantam; depois escrevem.
Nós
não temos mais os bardits¹ que Carlos Magno fez
recolher; não nos resta senão uma onde em honra da vitória que
Luís, filho de Luís, o Gago, alcançou em 881 sobre os normandos;
mas o monge de Saint-Gall e Ermold, o Negro, escreveram inteiramente
ao gosto da canção germânica.
A
mitologia e as poesias escandinavas; os edda² e as
sagas; os cantos dos scaldes, que Snorron, Saxão, o
Gramático, Adam de Bremen e as crônicas anglo-saxônicas nos
conservaram; os nibelungos, ainda que de data mais recente, suprem
nossas perdas: veremos o uso que faço deles procurando a história
dos costumes bárbaros. Quanto ao que concerne às línguas, os
evangelhos godos de Ulfilas são um tesouro.
Para
o sul da França, Raynouard reabilitou a antiga língua românica e,
publicando as poesias escritas ou cantadas nessa língua, prestou um
importante serviço.
Fauriel,
a quem devemos a bela tradução de cantos populares da Grécia, deve
mostrar, na formação da língua românica, os traços de línguas
antigas da Gália ainda faladas hoje: uma na Escócia, outra no país
de Gales e na Baixa Bretanha, a terceira entre os bascos. Ele anotou
um poema sobre as guerras dos árabes da Espanha e dos cristãos da
Occitânia, cujo herói é um príncipe aquitano chamado Walther: não
seria ele Waiffre? Muitos cantos rememoram as rebeliões de diversos
chefes do sul da França contra os monarcas carolíngios: isto serve
cada vez mais para provar que as hostilidades de Carlos Martel,
Pepino e Carlos Magno, contra os príncipes da Aquitânia, tiveram
por causa uma inimizade de raça, os descendentes dos merovíngios
reinando do outro lado do Loire. Fizeram-nos esperar que Fauriel se
ocupasse de uma história dos bárbaros nas províncias meridionais
da França: o objeto seria digno de seu raro saber e de seus
talentos.
Não
é preciso se ater às leis sálica, ripuária e burgúndia para o
estudo das leis bárbaras; devem-se considerar como capítulos de um
mesmo código nacional as leis lombardas, alemãs, bávaras, russas
(estas não senão o direito sueco), algo-saxãs e gálicas; com as
últimas pode-se reconstruir muitas partes do primitivo edifício
gaulês. Todas essas leis foram impressas separadamente ou em
diferentes coletâneas dos historiadores da França, da Itália, da
Alemanha e da Inglaterra. [...]
Entretanto,
não abusemos, como estamos demasiado inclinados a fazer, das origens
escandinavas, eslavas e tudescas. Parece hoje que toda nossa história
esteja na Alemanha, que não se encontram senão lá nossas
antiguidades e os homens que as conheceram. Os 40 anos de nossa
revolução interromperam os estudos na França, enquanto eles
continuaram nas universidades germânicas. Os alemães conquistaram
sobre nós uma parte do tempo que havíamos ganhado deles. Mas se,
pelo direito, pela filologia e pela filosofia, eles nos superam
atualmente, eles estão ainda longe de chegar em história ao ponto
em que estávamos quando nossos tumultos explodiram.
Rendamos
justiça aos sábios da Alemanha, mas saibamos que os povos
setentrionais são, como povos, muitos séculos mais jovens do que
nós; que nossas cartas remontam muito mais no tempo que as deles;
que os imensos trabalhos beneditinos de Saint-Maur e Saint-Vannes
começaram bem antes que os trabalhos históricos dos professores de
Gottinguer, Iena, Bonn, Dresden, Weimar, Brunswick, Berlim, Viena,
Bresgurg etc.; que os eruditos franceses, superiores pela clareza e
precisão aos eruditos de além-Reno, os ultrapassam ainda pela
solidez e universalidade das pesquisas. Os alemães não nos superam
verdadeiramente senão na codificação; ainda os
grandes legistas, Cujas, Domat, Dumoulin, Pothier, sejam franceses.
Nossos vizinhos têm sobre as origens das nações bárbaras algumas
noções particulares, que eles devem às línguas faladas na
Dalmácia, Hungria, Sérvia, Boêmia, Polônia etc.; mas um espírito
sadio não deve dar muita importância a tais estudos que terminam
por degenerar em uma metafísica da gramática, que parece tanto mais
maravilhosa quanto está afogada na obscuridade.[...] Falemos do que
nos pertence e indiquemos nossas próprias riquezas. Rendamos de
início uma brilhante homenagem a essa escola dos beneditinos que
nada jamais substituirá. Se eu não fosse agora um estrangeiro no
solo que me viu nascer; se eu tivesse o direito de propor alguma
coisa, eu ousaria solicitar o restabelecimento de uma ordem que tem
tantos méritos nas letras. Eu queria ver reviver a congregação de
Saint-Maur e Saint-Vannes na abadia de Saint-Denis, à sombra da
igreja de Dagoberto, junto desses túmulos cujas cinzas foram jogadas
ao vento no momento em que se dispersava a poeira do Trésor de
Chartes: não eram necessárias às crianças³ de uma liberdade sem
lei e, consequentemente, se mãe senão bibliotecas e sepulcros
vazios. [...]
E,
no entanto, posto que não somos tocados senão pelos fatos, nós
deveríamos reconhecer que o passado é um fato, um fato que nada
pode destruir, enquanto o futuro, tão caro a nós, não existe.
Existem para um povo milhões de milhões de futuros possíveis. De
todos esses futuros um só acontecerá, e talvez o menos previsto. Se
o passado não é nada, que é o futuro senão uma sombra à beira do
Letes, que não aparecerá talvez nunca neste mundo? Nós vivemos
entre um nada e uma quimera [...].
¹Canto
dos bardos. (N. do T.)
²Coleção
de poemas escritos em norueguês antigo e recolhidos no manuscrito
islandês Codex Regius. Constitui a principal fonte
sobre a mitologia nórdica e os heróis lendários germânicos. (N.
do T.)
³No
original, enfants de la liberté, referência ao verso da
Marselha. (N. do T.)
CRÉDITO
DA IMAGEM:
Editora
Bartillat