segunda-feira, 23 de maio de 2016

Bairro: o fragmento de uma cidade

Vista parcial do bairro de São Vicente. Manaus, 1953.

Texto sobre o bairro como elemento social e histórico de uma cidade, produzido através de extratos do prefácio do meu futuro livro, Barro Vermelho: História e Memória do bairro São Lázaro.

Bairro, na definição do mais simples dicionário, é cada uma das partes que formam uma cidade. É em cada uma dessas partes, seja em qual zona for, que surge a memória coletiva, passada de geração em geração através da vida pública, representada pela convivência em templos religiosos, estabelecimentos comerciais e repartições públicas; e da vida privada, por meio de ensinamentos e práticas familiares. Essas memórias, quando evocadas e transmitidas de forma oral, constituem-se de matéria essencial para a construção da História desses bairros. Soma-se à memória as fontes documentais, encontrada em paróquias, prefeituras e acervos particulares.

Essa divisão administrativa e geográfica de uma urbe, a menor hierarquicamente, se faz presente desde as civilizações da Antiguidade, com diferentes funções em determinados locais e épocas: Nas cidades da América pré-colombiana, por exemplo, estavam acima dos núcleos familiares e tinham mais liberdade em relação ao estado; e na China da Dinastia Tang, surgiram para facilitar o registro civil e a cobrança de impostos.

Um bairro não é igual ao outro. Cada um possui particularidades distintas e bem visíveis. Na Roma Clássica, Subura era conhecido como lugar dos prazeres mundanos e da libertinagem, e Cerâmico, por abrigar os oleiros da capital. Alfama, bairro português do século XV, era conhecido por seus banhos públicos desde os tempos clássicos. Vila Nova Conceição, em São Paulo, é considerado o mais caro da capital. Essas diferenças, com o passar do tempo e aceitação dos moradores, se tornam referência para a comunidade.

Em Manaus, São Vicente de Fora, núcleo inicial de povoação do Centro, é considerado o mais antigo da cidade, com relatos desde o século XVIII. Compreendia as ruas 5 de Setembro, Bernardo Ramos, Frei José dos Inocentes, Visconde de Mauá, Monteiro de Souza, Tamandaré e Itamaracá. Mais tarde surgiram Remédios, Espírito Santo, Campina, República e Nazaré, todos amalgamados e transformados no que hoje é o Centro.

Esses locais, no decorrer da História de Manaus, foram surgindo de diferentes formas: alguns, raros, tem início de forma planejada, com projetos registrados em plantas e traçados feitos por engenheiros, como foi o caso dos bairros Cachoeirinha e Adrianópolis. A maioria esmagadora foi surgindo por meio de invasões em momentos críticos como o fim da economia gomífera; a grande cheia de 1953; a destruição da Cidade Flutuante, grande favela fluvial erguida em 1920 em frente ao Centro (destruída em 1967); e o boom provocado pela instalação da Zona Franca (1967-1990). Estes se encontram em peso nas zonas Leste e Norte, e também estão nas zonas Sul e Oeste.

São Lázaro, na zona Sul, foi um desses bairros que surgiu em meio a invasões, durante os anos 1950, quando a cidade ainda sofria os reflexos da decadência da economia da borracha e passava a receber um número crescente de pessoas vindas do interior do estado, que estava com seus seringais falidos e abandonados. Nele se amalgamaram os saberes populares, as tradições culturais e os dramas anônimos daqueles que tentavam se fixar e iniciar uma nova vida na capital. A Paróquia improvisada, construída de madeira e palha; as casas humildes, feitas do mesmo material; e as ruas, irregulares, abertas sem ordenamento e nomeadas conforme a topografia, o nome de um morador ilustre ou nome religioso, são elementos de um cenário bucólico presente nos primeiros tempos de existência da comunidade.

Uma parte, um pedaço, uma divisão, um fragmento. Da Roma Clássica à Manaus, guardadas as devidas diferenças, o bairro é o elemento que catalisa a vida em comunidade, o social em confluência ao histórico, os saberes populares e culturais. Quando se juntam esses “fragmentos”, todos com as características anteriormente citadas, se forma o espírito de uma cidade. Que num futuro não tão distante se produza uma grandiosa História Geral dos bairros e comunidades de Manaus, com foco nas zonas Leste e Norte, carentes de uma narrativa que dê luz às suas identidades históricas.


CRÉDITO DA IMAGEM:

Biblioteca IBGE

sábado, 21 de maio de 2016

Prefácio dos Estudos Históricos de René Chateaubriand (I)



François-René Auguste, visconde de Chateaubriand (1768-1848) foi escritor, ensaísta, diplomata, político e historiador francês, considerado um dos principais nomes do pré-romantismo. De família nobre, caracterizou-se pela defesa da religião católica e da Monarquia francesa, em obras como Ensaio histórico, político e moral sobre as revoluções antigas e modernas (1794-1797) e O gênio do Cristianismo (1802). Não via com bons olhos Napoleão Bonaparte, para ele um estrangeiro (Napoleão nascera na Itália) que usurpou o trono francês. Isso lhe rendeu perseguições e censura. Com o fim da Era Napoleônica, em 1815, voltou ao prestígio e liberdade de produção literária. Como pré-romântico, valorizava as emoções, a imaginação e a religiosidade na história, em oposição a super valorização da razão e do anticlericalismo que dominara a Europa durante a Revolução de 1789. Também escreveu os romances AtalaOs natchesesRené e o relato Viagem à América

No prefácio de seus Estudos Históricos, Chateaubriand empreende um trabalho metódico sobre a História, pautado pela erudição documental de decretos reais, leis, cartas e dicionários. Essas fontes passavam por uma análise minuciosa, estabelecida no século XVII por Jean Mabillon, em De re diplomatica (1681), a fim de garantir uma narrativa segura. Da escola histórica alemã, a qual tinha um conhecimento escasso, valorizava os contos populares, as lendas, as poesias medievais e gestas escandinavas como fontes históricas, não se limitando à história política. Também expressa suas dúvidas sobre os rumos da História em seu tempo; discorre sobre os historiadores franceses e a história crítica da França antes da revolução; analisa a escola histórica moderna da França, a escola história da Alemanha, a Filosofia da História e a história na Inglaterra e na Itália. Por ser um prefácio extenso, irei dividir o texto em três partes.


ÉTUDES HISTORIQUES (1843)

Heródoto começou sua história declarando os motivos que o fizeram empreendê-la; Tácito explicou as razões que lhe colocaram a pena na mão. Sem ter os talentos desses historiadores, posso imitar seu exemplo; posso dizer, como Heródoto, que escrevo para a glória de minha pátria, e porque vi os males dos homens. Mais livre que Tácito, não amo nem temo os tiranos. Agora isolado sobre a Terra, não esperando nada de meus trabalhos, encontro-me na posição mais favorável para a independência do escritor, pois já convivo com as gerações das quais evoquei as sombras.

As sociedades antigas perecem; de suas ruínas saem sociedades novas: leis, costumes, usos, hábitos, opiniões, princípios mesmo, tudo mudou. Uma grande revolução aconteceu, uma grande revolução se prepara: a França deve recompor seus anais, para colocá-los em contato com os progressos da inteligência. Nessa necessidade de uma reconstrução sobre um novo, onde buscar materiais? Quais foram os trabalhos executados antes do nosso tempo? Que existe a louvar ou a lamentar nos escritores da antiga escola histórica? Deve a nova escola ser inteiramente seguida, quais são os autores mais notáveis dessa escola? Seria tudo verdadeiro nas teorias religiosas, filosóficas e políticas do momento? Eis o que me proponho examinar neste prefácio. Eu trabalhava havia anos em uma história da França, da qual estes estudos não representam senão a exposição, as visões gerais e os destroços. Falta minha vida à minha obra: no caminho onde o tempo me retém, eu aponto com a mão aos jovens viajantes as pedras que eu havia acumulado, o solo e o lugar onde eu queria construir meu edifício.

Os antigos haviam concebido a história de modo muito diferente do nosso; eles a consideravam um simples ensinamento, e, sob esse aspecto, Aristóteles a colocou num patamar inferior ao da poesia; eles concediam pouca importância à verdade material; e isso lhes bastava, ainda que houvesse nela um fato verdadeiro ou falso a relatar, que esse fato oferecesse um grande espetáculo ou uma lição de moral e de política. Liberados dessas imensas leituras sob as quais a imaginação e a memória são igualmente esmagadas, eles tinham poucos documentos para consultar; suas citações são quase nada, e quando eles remetem a uma autoridade, é quase sempre sem indicação precisa. Heródoto contentou-se em dizer em seu primeiro livro, Clio, que escrevia conforme os historiadores da Pérsia e da Fenícia; em seu segundo livro, Euterpe, ele falava conforme os sacerdotes egípcios que lhe leram seus anais. Ele reproduziu um verso da Ilíada, uma passagem da Odisseia, um fragmento de Ésquilo: não fizeram falta a Heródoto outras autoridades, nem aos seus ouvintes nos Jogos Olímpicos. Tucídides não fez uma única citação: mencionou somente alguns cantos populares.

Tito Lívio nunca se apoiou sobre um texto: autores, os historiadores relatam; é sua maneira de proceder. Em sua terceira Década, ele lembrou os dizeres de Cintius Alimentus, prisioneiro de Aníbal, e de Coelius e Valerius sobre a guerra púnica.

Em Tácito as autoridades são menos raras, ainda que bem pouco numerosas; não se podem contar senão 13 referências: são elas, no primeiro livro dos Annales, Plínio, historiador das guerras da Germânia; no quarto livro, as Memórias de Agripina, mãe de Nero, obra cuja perda nunca será suficientemente lamentada; no terceiro livro, Fábio Rústico, o historiador Plínio e Cluvius; no 14° livro, Cluvius; no 15°, Plínio. No terceiro livro de Histórias, Tácito mencionou Massala e Plínio, e remeteu às Memórias que tinha em mãos; no quarto livro, ele se referiu aos sacerdotes egípcios; nos Costumes dos germânicos, escreveu um verso de Virgílio modificado. Com frequência ele dizia: "os historiadores destes tempos relatam": temporum illorum scriptores prodiderint; ele explicou seu sistema declarando que não mencionava os nomes dos autores a não ser quando divergiam entre si. Assim, duas citações vagas em Heródoto, nenhuma em Tucídides, duas ou três em Tito Lívio e 13 em Tácito formam todo o corpo de autoridades desses historiadores. Alguns biógrafos como Suetônio e Plutarco, sobretudo, leram um pouco mais das Memórias; mas as numerosas citações são deixadas aos compiladores, como Plínio, o naturalista, Ateneu, Macróbio e São Clemente de Alexandria, em seus Stromateis.

Os analistas da Antiguidade não faziam entrar em seus relatos o quadro dos diferentes ramos da administração; as ciências, as artes, a educação pública eram rejeitas do domínio da história; Clio caminhava agilmente, desembaraçada da bagagem pesada que arrasta hoje atrás de si. Com frequência o historiador era apenas um viajante relatando o que havia visto. Agora a história é uma enciclopédia; é preciso tudo incluir nela, da astronomia à química; da arte das finanças à da manufatura; do conhecimento do pintor, do escultor e do arquiteto até a ciência do economista; do estudo das leis eclesiásticas, civis e criminais até o das leis políticas. O historiador moderno abandona-se ao relato de uma cena de costumes e de paixões, a gabela sucede o belo ambiente; um outro imposto exige; a guerra, a navegação, o comércio acorrem. Como as armas era feitas então? De onde se tirava a madeira de construção? Quanto valia a libra de pimenta? Tudo estará perdido se o autor não observar que o ano começava na Páscoa e ele o datou do 1° de janeiro. Como pretender que sua palavra seja confiável, se ele se enganou sobre a página de uma citação, ou se ele referiu mal a edição? A sociedade permanece desconhecida, se forem ignorados a cor dos calções do rei e o preço do marco de prata. Esse historiador deve saber não apenas o que se passou em sua pátria, mas também nas terras vizinhas; e entre esses detalhes é preciso que uma ideia filosófica esteja presente em seu pensamento e lhe sirva de guia. Eis os inconvenientes da história moderna: eles são tais que nos impediram talvez de ter um dia historiadores como Tucídides, Tito Lívio e Tácito; mas não se pode evitar esses inconvenientes é preciso submeter-se a eles.

O escritor chamado a pintar um dia um grande quadro de nossa história não se limitará à procura das fontes de onde saíram imediatamente os francos e os franceses; ele estudará os primeiros séculos das sociedades vizinhas da França, porque os jovens povos de diversos lugares, como as crianças de diversos países, possuem entre si a semelhança comum que lhes dá a natureza, e porque esses povos, nascidos de um pequeno número de famílias aliadas, conservam em sua adolescência a marca dos cuidados maternos.

Quatro espécies de documentos contêm a história inteira das nações na ordem sucessiva de sua idade: as poesias, as leis, as crônicas de fatos gerais, as memórias que pintam os costumes e a vida privada. Primeiro os homens cantam; depois escrevem.

Nós não temos mais os bardits¹ que Carlos Magno fez recolher; não nos resta senão uma onde em honra da vitória que Luís, filho de Luís, o Gago, alcançou em 881 sobre os normandos; mas o monge de Saint-Gall e Ermold, o Negro, escreveram inteiramente ao gosto da canção germânica.

A mitologia e as poesias escandinavas; os edda² e as sagas; os cantos dos scaldes, que Snorron, Saxão, o Gramático, Adam de Bremen e as crônicas anglo-saxônicas nos conservaram; os nibelungos, ainda que de data mais recente, suprem nossas perdas: veremos o uso que faço deles procurando a história dos costumes bárbaros. Quanto ao que concerne às línguas, os evangelhos godos de Ulfilas são um tesouro.

Para o sul da França, Raynouard reabilitou a antiga língua românica e, publicando as poesias escritas ou cantadas nessa língua, prestou um importante serviço.

Fauriel, a quem devemos a bela tradução de cantos populares da Grécia, deve mostrar, na formação da língua românica, os traços de línguas antigas da Gália ainda faladas hoje: uma na Escócia, outra no país de Gales e na Baixa Bretanha, a terceira entre os bascos. Ele anotou um poema sobre as guerras dos árabes da Espanha e dos cristãos da Occitânia, cujo herói é um príncipe aquitano chamado Walther: não seria ele Waiffre? Muitos cantos rememoram as rebeliões de diversos chefes do sul da França contra os monarcas carolíngios: isto serve cada vez mais para provar que as hostilidades de Carlos Martel, Pepino e Carlos Magno, contra os príncipes da Aquitânia, tiveram por causa uma inimizade de raça, os descendentes dos merovíngios reinando do outro lado do Loire. Fizeram-nos esperar que Fauriel se ocupasse de uma história dos bárbaros nas províncias meridionais da França: o objeto seria digno de seu raro saber e de seus talentos.

Não é preciso se ater às leis sálica, ripuária e burgúndia para o estudo das leis bárbaras; devem-se considerar como capítulos de um mesmo código nacional as leis lombardas, alemãs, bávaras, russas (estas não senão o direito sueco), algo-saxãs e gálicas; com as últimas pode-se reconstruir muitas partes do primitivo edifício gaulês. Todas essas leis foram impressas separadamente ou em diferentes coletâneas dos historiadores da França, da Itália, da Alemanha e da Inglaterra. [...]

Entretanto, não abusemos, como estamos demasiado inclinados a fazer, das origens escandinavas, eslavas e tudescas. Parece hoje que toda nossa história esteja na Alemanha, que não se encontram senão lá nossas antiguidades e os homens que as conheceram. Os 40 anos de nossa revolução interromperam os estudos na França, enquanto eles continuaram nas universidades germânicas. Os alemães conquistaram sobre nós uma parte do tempo que havíamos ganhado deles. Mas se, pelo direito, pela filologia e pela filosofia, eles nos superam atualmente, eles estão ainda longe de chegar em história ao ponto em que estávamos quando nossos tumultos explodiram.

Rendamos justiça aos sábios da Alemanha, mas saibamos que os povos setentrionais são, como povos, muitos séculos mais jovens do que nós; que nossas cartas remontam muito mais no tempo que as deles; que os imensos trabalhos beneditinos de Saint-Maur e Saint-Vannes começaram bem antes que os trabalhos históricos dos professores de Gottinguer, Iena, Bonn, Dresden, Weimar, Brunswick, Berlim, Viena, Bresgurg etc.; que os eruditos franceses, superiores pela clareza e precisão aos eruditos de além-Reno, os ultrapassam ainda pela solidez e universalidade das pesquisas. Os alemães não nos superam verdadeiramente senão na codificação; ainda os grandes legistas, Cujas, Domat, Dumoulin, Pothier, sejam franceses. Nossos vizinhos têm sobre as origens das nações bárbaras algumas noções particulares, que eles devem às línguas faladas na Dalmácia, Hungria, Sérvia, Boêmia, Polônia etc.; mas um espírito sadio não deve dar muita importância a tais estudos que terminam por degenerar em uma metafísica da gramática, que parece tanto mais maravilhosa quanto está afogada na obscuridade.[...] Falemos do que nos pertence e indiquemos nossas próprias riquezas. Rendamos de início uma brilhante homenagem a essa escola dos beneditinos que nada jamais substituirá. Se eu não fosse agora um estrangeiro no solo que me viu nascer; se eu tivesse o direito de propor alguma coisa, eu ousaria solicitar o restabelecimento de uma ordem que tem tantos méritos nas letras. Eu queria ver reviver a congregação de Saint-Maur e Saint-Vannes na abadia de Saint-Denis, à sombra da igreja de Dagoberto, junto desses túmulos cujas cinzas foram jogadas ao vento no momento em que se dispersava a poeira do Trésor de Chartes: não eram necessárias às crianças³ de uma liberdade sem lei e, consequentemente, se mãe senão bibliotecas e sepulcros vazios. [...]

E, no entanto, posto que não somos tocados senão pelos fatos, nós deveríamos reconhecer que o passado é um fato, um fato que nada pode destruir, enquanto o futuro, tão caro a nós, não existe. Existem para um povo milhões de milhões de futuros possíveis. De todos esses futuros um só acontecerá, e talvez o menos previsto. Se o passado não é nada, que é o futuro senão uma sombra à beira do Letes, que não aparecerá talvez nunca neste mundo? Nós vivemos entre um nada e uma quimera [...].


¹Canto dos bardos. (N. do T.)
²Coleção de poemas escritos em norueguês antigo e recolhidos no manuscrito islandês Codex Regius. Constitui a principal fonte sobre a mitologia nórdica e os heróis lendários germânicos. (N. do T.)
³No original, enfants de la liberté, referência ao verso da Marselha. (N. do T.)


CRÉDITO DA IMAGEM:

Editora Bartillat






quarta-feira, 18 de maio de 2016

A Historiografia Norte-Americana: da Colonização à Independência

Os passageiros do Mayflower assinam o "Pacto de Mayflower", 1620. Jean Leon Jerome Ferris, século XIX.

Quando os primeiros colonizadores chegaram à América do Norte, vindos da Inglaterra e da França (século XVII), se depararam com povos nativos que se distinguiam por suas práticas religiosas, línguas, formas de subsistência e de se vestir. O continente e seus habitantes trouxeram grande impacto para esses europeus, que primeiramente passaram a estudá-los como um ramo da história natural, filosófica e conjectural. Já vimos como se desenvolveu a escrita da História na América Espanhola (ver A Historiografia da Conquista I), com um pano de fundo clerical, ligado ao catolicismo. Agora, vamos ter a influência religiosa protestante na América do Norte; e, mais tarde, a construção de uma história secular.

Os escritos do espanhol José de Acosta influenciaram a produção historiográfica na América do Norte. Sua concepção de que os nativos não poderiam ter uma “história oficial” fez com que os americanos estudassem esses povos como um ramo da História Natural, Filosófica e Conjectural. Bebendo direto de fontes clássicas como Tácito, Heródoto, César, Plínio e Estrabão, o jesuíta francês Jean-François Lafitau (1681-1746), que viveu na Nova França e entrou em contato com os iroqueses, escreveu Costumes dos selvagens americanos comparados aos costumes dos primeiros tempos (1724), onde os nativos americanos eram comparados a tribos da Antiguidade. Lafitau, jesuíta, via nos nativos exemplos de combate ao ateísmo, mostrando que até os “selvagens” acreditavam no divino. Em sua obra também são abordadas guerras, instrumentos musicais, práticas religiosas e linguagem. Costumes dos selvagens é uma mistura de tradição medieval e clássica; relatos de viagens do século XVI; e comparativismo iluminista. Lafitau via nos indígenas costumes asiáticos e uma influência destes, o que, atualmente, é uma das teorias de povoação da América:

“Como era o costume entre os antigos comer deitado sobre sofás, o mesmo é ainda o costume entre os índios sul-americanos que, embora tenham pequenos assentos com três pés como bancos de sapateiros sobre os quais eles comem ordinariamente, com muita frequência também fazem seus repastos deitados em redes como o fazem os índios norte-americanos que comem sentados nas mesmas esteiras em que dormem”.1

O período colonial foi marcado por conflitos internos entre ingleses e franceses, que aliavam-se, cada um, a tribos antagônicas. A Guerra do Rei Felipe (1675-1678); a Guerra dos Sete Anos (1756-1763); e outros conflitos serviram de tema para a história militar em obras como História de New Hampshire (1784), de Jeremy Belknap, crítico da escravidão e da ação dos colonizadores contra os índios. Cadwallader Colden descreveu os iroqueses em História das cinco nações indígenas dependentes da Província de Nova York na América, e defendia a tese de que os eles deveriam ser guardados como aliados contra a investida francesa a partir do Canadá. O que se escrevia na América anglo-saxônica sobre história era mais um relato sobre a flora, a fauna e os costumes dos nativos do que uma narrativa do passado propriamente dita. O primeiro historiador a escrever realmente uma narrativa sobre passado colonial foi o explorador John Smith (1579-1631) em Uma verdadeira relação (1608) e História geral da Virgínia, da Nova Inglaterra, e das Ilhas de Verão (1624).

O fervor religioso protestante dominará por muito tempo a historiografia dessa parte da América. Autores como John Foxe e Sir Walter Ralegh serão lidos e utilizados como base intelectual por diversos historiadores. A América era uma versão distante da terra prometida; os sobreviventes do naufrágio do Mayflower eram os escolhidos para assentar uma sociedade próspera; e a domesticação da natureza e do elemento nativo eram provas de que essa era a vontade de Deus. Existe uma lista extensa desses trabalhos históricos providencialistas, e dela podemos citar: A providência milagrosa do Salvador de Sion na Nova Inglaterra (1654), de Edward Johnson (1599-1672); História do assentamento de Plymouth (1856), de William Bradford (1590-1657); e História Geral da Nova Inglaterra até 1630 (1815), de William Hubbard (1621-1704). Increase Mather (1639-1723) escreveu Breve história da guerra com os índios da Nova Inglaterra, história de cunho militar e providencialista.

A região da Nova Inglaterra era o polo irradiador de obras históricas, com destaque para a Baía de Massachusetts, de onde saiam análises históricas a partir da perspectiva local, como em Visão sumária, histórica e política dos assentamentos na América do Norte (1747-1750), do médico bostoniano William Douglass (1691-1752). O filho de Increase, Cotton Mather, produziu uma grandiosa História eclesiástica da Nova Inglaterra (1693-1702), dividida em sete livros: No primeiro livro, são abordados os assentamentos coloniais da Nova Inglaterra; O segundo e terceiro livros são dedicados a biografias de figuras públicas importantes; o IV trata da história da Universidade de Harvard; e os três últimos são a história eclesiástica propriamente dita.

O último historiador do período colonial foi o governador civil de Massachusetts, Thomas Hutchinson (1711-1780), político moderado que tentou, em vão, conciliar os colonos revolucionários e o governo britânico. Publicou em 1764 o primeiro volume de História da Colônia da Baía de Massachusetts, produzido através de farta documentação da biblioteca de Samuel Mather, filho de Cotton. A narrativa abrange os primórdios de Massachusetts, como um simples assentamento puritano, até sua transformação em rica região comercial. Em 1765, durante os tumultos ocasionados pela Lei do Selo, Hutchinson teve sua biblioteca invadida e viu seus documentos serem destruídos, sendo assim interrompida a publicação de um novo volume. Conseguindo recuperar um rascunho do II volume, o governador o publica em 1767. Com o aumento das tensões entre colônia e metrópole, Hutchinson deixa a colônia e a América em 1774, terminando sua obra no exterior.

Declaração da Independência dos Estados Unidos, 1776. John Trumbull, 1819.

Entre tantos historiadores, uma mulher iria se destacar por produzir uma das principais e mais respeitadas obras sobre a Revolução Americana. Mercy Otis Warren (1728-1814), revolucionária da causa republicana, concluiu em 1791 e publicou em 1805 a História do surgimento, progresso e término da Revolução Americana. Em sua obra, Mercy combinou os testemunhos de figuras políticas com um rico material documental, coroados por sua narrativa vigorosa e bem estruturada. No extrato abaixo, vamos perceber que, para Warren, a História deve ser estudada através de um trabalho mútuo entre investigação, reflexão e precisão de linguagem:

A história, o depósito de crimes e o registro de tudo o que é infame ou honorífico à humanidade, requer um conhecimento justo do caráter, para investigar as fontes de ação; uma clara compreensão, para revisar a combinação de causas; e precisão de linguagem, para detalhar os eventos que produziram as mais notáveis revoluções.

Analisar as fontes secretas que efetuaram as mudanças progressivas na sociedade; para traçar a origem das várias formas de governo, as consequentes melhorias na ciência, na moralidade, ou a tintura nacional que marca a condução do povo sob formas despóticas ou mais liberais, é um trabalho audacioso e ousado…

O amor pela dominação e uma luxúria descontrolada de poder arbitrário prevaleceram entre todas as nações, e talvez proporcionalmente aos graus de civilização. Elas foram igualmente conspícuas no declínio da virtude romana, e nas páginas negras da história britânica. Foram esses princípios que arruinaram essa antiga república. Foram esses princípios que frequentemente envolveram a Inglaterra em conflitos civis. Foi a resistência a eles que levou um de seus monarcas à barricada e retirou outro de seu trono. Foi a prevalência deles que conduziu os primeiros colonizadores da América, de suas elegantes habitações e afluentes circunstâncias, a buscarem um asilo nas regiões frias e incultas do mundo ocidental. Oprimidos na Grã-Bretanha por reis despóticos, e perseguidos pela fúria do prelado, fugiram para um país distante, onde os desejos humanos fossem limitados pelas carências da natureza; onde a civilização não havia criado aqueles anseios artificiais que tão frequentemente rompem todo laço moral e religioso para sua gratificação2.

Terminada a revolução, a historiografia norte-americana seria orientada para a reflexão filosófica e política, em busca de respostas para questões como qual tipo de república estabelecer, quais posições tomar em relação a escravidão, como se daria a expansão rumo ao Oeste e como o elemento nativo deveria ser tratado de agora em diante. O médico David Ramsay sintetizou essas questões nas obras A História da Revolução da Carolina do Sul (1785); História da Revolução Americana (1789); e História dos Estados Unidos. Sua História da Revolução Americana começa com a história dos assentamentos coloniais, no século XVII, e passa para os conflitos entre colônia e metrópole, iniciados em 1764. Era um autor moderado, antiescravagista, primeiramente republicano e, mais tarde, federalista. Em 1817, dois anos após a morte de Ramsay, aparece História dos Estados Unidos, obra que marca sua transição de autor moderado para conservador. Sua visão mais amigável aos índios mudou para uma feroz defesa do expansionismo contra esse elemento; e suas críticas à escravidão praticamente desapareceram.

Neste último texto da série Historiografia da Conquista, podemos perceber como a escrita da História nos Estados Unidos, assim como na América Espanhola, passou por diferentes estágios de evolução: Num primeiro momento, vamos ter uma narrativa que foca mais na comparação cultural, na descrição da fauna e da flora do que no passado; depois, o protestantismo se tornaria o ponto de partida para uma história providencialista, na qual o novo continente seria uma versão da terra prometida; por último, no final do século XVIII, surgem narrativas sobre o passado americano, já com traços de uma identidade nacional que se estabeleceria após a Revolução, e histórias filosóficas sobre os novos rumos do país após a independência em relação à Grã-Bretanha.



1LAFITAU, J.F. Customs of the American Indians. Vol. I. Wisconsin, Champlain Society, 1974, p. 225.

2WARREN, M. O. “Introductory Observations”. In: COHEN, L. H. (org.). History of the Rise, Progress, and Termination of the American Revolution. 2Vols. Indianápolis: Liberty Classics, 1988, vol I. p. 3-5.


FONTES:

WOOLF, Daniel. Uma história global da história. Tradução de Caesar Souza. Petrópolis, RJ, Vozes, 2014.

Library of Congress

CRÉDITO DAS IMAGENS:

Library of Congress
commons.wikimedia.org

sexta-feira, 13 de maio de 2016

A relação entre Filosofia e História e a busca da construção do sentido

Por Wilton Abrahim


A filosofia é a mãe das ciências, e é tão antiga quanto a História. Ela é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos. Desde os seus primórdios com os pré-socráticos até os dias atuais, é uma conduta da vida humana e do comportamento do homem na sociedade, por isso está filiada à sabedoria, que permite adquirir a capacidade de pensar, de agir e de participar da sociedade, assim fazendo uma relação com a História, que é a ciência do homem no tempo. A História soma-se à filosofia para apresentar uma finalidade na busca pela sabedoria; e dar um sentido à vida do homem e em sua capacidade intelectual. No decorrer dos séculos, vamos ter inúmeros filósofos da história.
Segundo Olinto A. Pegoraro: “a maior dificuldade das teorias do destino é o confronto com a liberdade. Sempre a liberdade humana transcendeu as leis da física e da biologia; sempre tivemos a possibilidade de agir contra as leis, de decidir entre levar uma vida justa ou injusta, de viver bem ou distribuir-nos1
Para Ricardo Timm, devemos nos perguntar “Qual o sentido de fazer filosofia, hoje, aqui e agora?”. Inúmeros historiadores fizeram esse questionamento, tais como: Giambattista Vico (1668-1744) foi um filósofo, jurista, político, retórico e historiador italiano, vindo a ser reconhecido apenas no século XIX. Escreveu Ciência Nova, obra em que pretendia criar uma forma alternativa de estudar as ciências humanas, principalmente a história, forma diferente da aplicada às ciências naturais.
Vico põe a filosofia e filologia como duas disciplinas auxiliares da História. Em filosofia, aproveita-se a reflexão, as ideias e a sabedoria humana; e na filologia, o conhecimento da língua e das tradições dos povos. A filosofia oferece o arcabouço teórico, e a filologia o concreto, tangível, fragmentos das produções humanas. Vico, em oposição a Descartes, afirma que para verdadeiramente se conhecer algo é necessário que seu conhecedor o tenha criado. Vico afirma que o homem não caminha necessariamente para o progresso do pensamento racional.
Para Olinto A. Pegoraro: “O Cristianismo, que surgiu em plena expansão do estoicismo e neoplatonismo, aos poucos substitui o férreo determinismo da providência estoica pela providência totalmente transcendente e extracósmica2”. Vico confirma a Providência Divina para dar um sentido à História; e este afirma que essa ciência tem uma parte construída pelo homem e outra por Deus. Neste ponto Deus é o arquiteto, enquanto o homem seria o construtor.
Um outro historiador muito polêmico que podemos abordar é o francês François-Marie Arouet, mas conhecido como Voltaire (1694-1778). Seu lado historiador é pouco conhecido, pois o que vemos mais é o filosófico. Para Voltaire, a História é um conjunto dos desenvolvimentos produzidos pelo homem, nas artes, ciências e técnicas, através das transformações espirituais e morais. Sua obra filosófica-histórica foi A Filosofia da História.
Em Filosofia da História temos dois sentidos: o primeiro é uma forma de conceber o processo histórico; o segundo está em um modo de reconstituir esse processo para os leitores do presente. A obra filosofia da história é um ensaio sobre o mundo Antigo e sobre o que se produziu sobre ele. Diferente de Vico, Voltaire atacava as concepções religiosas que se fizeram da história das nações e também lendas, mitos e fábulas. A Historiografia de Voltaire é crítica, secularizada, cultural e filosófica.
Este dois grandes historiadores filósofos fizeram o uso do sentido da filosofia, que mudou a mentalidade e a forma de pensamento. Contudo, nós estudantes acadêmicos temos o dever de nos aprofundarmos nas questões filosóficas, criando assim, um sentido para nossos projetos de pesquisa, de pós-graduação e entre os iniciantes, pois o sentido somos nós que construímos.

1 PEGORARO, Olinto A. “concepções do mundo”. In--------------------------- SENTIDOS DA HISTÓRIA. P 18. Petrópolis, RJ:Vozes, 2011.
2 Ibidem, p.20.


Wilton Abrahim Gomes Garcez é acadêmico da Licenciatura em História na Universidade Federal do Amazonas (UFAM).











CRÉDITO DA IMAGEM:

geekness.com.br



quarta-feira, 11 de maio de 2016

Viver à grega

Baco, de Caravaggio. 1593-1597.

Pargraecari é um termo de origem latina, que significa “viver à grega”. Era com este termo que alguns romanos, os mais conservadores, designavam o modo de vida de seus semelhantes. O modo de vida romano, entre os séculos III e II, recorte histórico feito pela autora, é marcado pela devassidão, pela ostentação, a vida galante e desregrada. Naquela época, a existência desses hábitos, que iam contra a moral estabelecida e defendida pelas elites, era atribuída à má influência grega. Mas como era esse estilo de vida grego? Uma fonte material pode ser utilizada como simples resposta: Vejam, abaixo. O mosaico da imagem, grego, data do século III a.C., e foi encontrado à duas semanas nas ruínas de Antioquia, na Turquia. Ele fazia parte de uma sala de jantar de uma residência, e nele se lê: “Seja alegre, viva sua vida”. Observem que, quem segura a tigela de bebida, ao lado da garrafa, é um esqueleto, lembrando da efemeridade da vida. Era assim que os gregos, e agora os romanos, em parte influenciados pelos vizinhos mediterrâneos e em outra, antigos praticantes, viviam.



As comédias de Plauto e Terêncio, as Sátiras de Petrônio Árbitro e os escritos de outros autores, legaram para nós as figuras das prostitutas que arruinavam famílias, os homens que, em avançada idade, ainda sentem os ardores do amor, e o militar fanfarrão. Plauto, em uma de suas comédias, exclama: “Bebam dia e noite, vivam à grega, comprem mulheres, libertem-nas, engordem os parasitas”. Por mais que se jogasse a culpa nos gregos, era difícil ocultar algo facilmente visível na sociedade romana muito antes do contato destes com seus vizinhos.

O contato entre romanos e gregos, citando Catherine Salles, e a introdução desses hábitos entre os latinos, se deu no século III a.C., quando as legiões romanas conquistam a Itália do Sul, e os habitantes do Lácio começam a se familiarizar com os hábitos desregrados dos habitantes da Campânia, na Magna Grécia. Francisco Oliveira e José Luís Brandão, em História de Roma Antiga. Vol I. - das origens à morte de César, citam que esse estilo de vida grego chegou à Roma de diferentes formas: “pela presença de gregos em Roma – reféns, escravos, imigrantes e embaixadores; a passagem de romanos pela Magna Grécia, pela Grécia e pelo mundo helenístico – militares, viajantes, comerciantes, embaixadores, jovens estudantes que aperfeiçoavam os seus estudos em grandes centros culturais, como Alexandria, Atenas, Nápoles, Pérgamo e Rodes. Nesta fase merece particular destaque a atração de intelectuais gregos por Roma: professores, médicos, retores, filósofos, geógrafos, historiadores e artistas”1.

Por mais que existissem tentativas, por parte das elites aristocráticas e burocráticas romanas, de esconder a realidade de devassidão dos habitantes da cidade, a vida dos prazeres à grega era indissociável para um romano do Aventino, dos lupanares e ruas do bairro Subura, das zonas do Grande Circo, povoadas por populações à margem da sociedade. Esses nomes de bairros, e a associação que carregam, revelam, nas palavras de Catherine, a existência de uma “geografia do prazer”. Os romanos, muito antes de terem contato com a “má influência” grega, já cultivavam hábitos considerados reprováveis pela moral citadina. “O mito do romano casto, corrompido por costumes estrangeiros, deve ser posto na lista dos acessórios de uma comédia que os partidários da castidade original do povo latino gostam de presentar”2

Jogar a culpa aos estrangeiros era um método não muito efetivo de diminuir a culpa pelo que se praticava na cidade, que era associada a todas as formas de prazer, principalmente os proibidos. Basta lembrar que, entre os antigos, Roma é o anagrama de Amor. A elite tentava omitir essas práticas, mas ela mesma os praticava. No Império, é bom enfatizar, existia uma relação intensa entre poder e sexo, a qual pode ser exemplificada com os altos impostos cobrados das lupas, prostitutas, bordéis e choupanas; e até em decisões políticas tomadas durante bebedeiras ou relações entre quatro paredes.


1OLIVEIRA, Francisco; BRANDÃO, José Luís. História de Roma Antiga: vol I: das origens à morte de César. Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015, p. 270.

2SALLES, Catherine. Nos submundos da Antiguidade. 2° ed. São Paulo, Brasiliense, 1983. p. 171.


CRÉDITO DAS IMAGENS:

commons.wikimedia.org
Revista Aventuras na História

segunda-feira, 9 de maio de 2016

A produção historiográfica nos Estados Unidos entre 1940 e 1990

Entre 1940 e 1990, os principais ataques eram feitos à ideologia comunista.

O presente artigo é parte da minha resenha do capítulo IV do livro A História dos Homens, do historiador Josep Fontana. Esse capítulo, intitulado As Guerras da História, aborda como os embates ideológicos, travados com maior força desde a Segunda Guerra, influenciaram a produção historiográfica. Entre 1940 e 1990, travaram-se nos Estados Unidos embates violentos, que culminaram na instalação de um clima de vigilância contra o que era considerado nocivo à produção historiográfica:

As guerras da história se mostram mais violentas na outra parte do Mundo Ocidental, com maiores agravantes após a divisão ideológica causada pela Guerra Fria. Segundo Fontana, desde os anos 1930 se notam conflitos no ensino de História nos Estados Unidos, onde os livros que não se adequassem aos valores conservadores e patrióticos eram censurados e eliminados. A Associação Nacional de Manufaturas, nos anos 1940, possuía mais de 6.800 vigias locais, com a missão de manter a educação livre do perigo do coletivismo, que pode ser interpretado como Comunismo.

Após o fim da Primeira Guerra Mundial e a ascensão de duas forças antagônicas, Conservadorismo (representado pelos Estados Unidos) e Comunismo (representado pela URSS), os Estados Unidos passaram a atacar a história progressista de historiadores como Charles Beard e Carl Becker; e a elaborar uma história objetiva, que transmitisse ensinamentos morais. Nunca houve, nas palavras de Fontana, “uma associação tão íntima entre os historiadores e o poder que se estabeleceu nestes anos1. Historiadores de prestigiadas universidades passaram a trabalhar na CIA, na OSS, no Departamento de Estado e em outros órgãos do governo. A produção historiográfica que começava a se formar nesses anos de embates ideológicos visava não só a consolidação dos Estados Unidos como principal potência mundial e a defesa dos valores tradicionais americanos, mas também atendia ao interesse governamental sobre informações dos “inimigos”. Surgem sovietólogos, kremlinólogos, matérias universitárias sobre a Ásia e a Rússia. O historiador George Kennan fixa as linhas da política norte-americana em relação a URSS; e o professor emérito de História Russa, Richard Pipes, num primeiro momento, ataca o comunismo, para mais tarde, minar o estado de bem-estar social.

Aliava-se à história, nesse período, a sociologia, surgindo a sociologia histórica, que interpretava os fatos históricos a partir de modelos sociológicos esquemáticos. Também era produzida uma história erudita, representada por maciços trabalhos de compilação documental. Sociologia Histórica e História Erudita eram voltadas para o estudo de conflitos sociais e formas de evitá-los ou contê-los. Podem ser citadas as obras de Barrington Moore Jr., Charles Tilly e Theda Skocpol.

A repressão tornou-se constante no cenário intelectual americano. Livros considerados subversivos, com tendências pró-comunistas, eram censurados. A Daughters of the American Revolution chegou a denunciar 170 livros nessa categoria, que continham, por exemplo, expressões sobre coletividade, algo considerado pró-comunista. Esse clima repressivo permitiu o surgimento de uma história baseada na predestinação, na doutrina Destino Manifesto e em outros "talentos" considerados natos dos Estados Unidos. Não eram feitas menções à conquistas dos nativos, a grupos marginalizados e não eram feitas críticas sociais. Fontana, citando Gendzier, afirma que "voltava-se, ao mesmo tempo, à doutrina da objetividade, à rejeição da "ideologia" - isto é, das ideias dos outros - e da "construção social".2

Os Estados Unidos, representantes máximos do lado liberal da Guerra Fria, tinham de estender sua influência para outros países. Seus ideais eram difundidos através do Congresso pela Liberdade da Cultura (CCF), dirigido pela CIA e amparados por recursos provenientes do Plano Marshall. Eram financiadas revistas propagandistas dos ideais norte-americanos da Europa à Oceania: Na França, existiu a publicação preuves; na Grã-Bretanha, a EncounterCuadernos, na Espanha; Tempo Presente, na Itália; e outras de mesmo cunho na Austrália, Índia e Japão.

Outros campos do conhecimento humano passaram por transformações radicais dentro desse contexto. No campo das Artes, por exemplo, o realismo, vertente utilizada para popularizar as artes, é substituído pelo expressionismo abstrato. Essa vertente tem uma linguagem complexa, entendida apenas por uma pequena elite intelectual. As exposições dos artistas expressionistas abstratos eram financiadas pela CIA. No curso de Letras das universidades, língua e literatura passam a ser estudados sem se levar em conta o contexto social e histórico, apenas o conteúdo do texto. É um estudo elitista, que evita críticas tanto da direita quanto da esquerda. No estudo de Ciências Sociais, a National Science Foundation, pedia para aqueles que pediam apoio para seus estudos que evitassem qualquer ligação com reformas ou bem-estar social. Se o apoio viesse da iniciativa privada, os pedidos eram, por exemplo, que se evitassem pesquisas sobre relações de raça.

Dando um salto cronológico de quase 50 anos, Josep Fontana sai do período da Guerra Fria e entra nos anos 90, afirmando, no entanto, que a luta não terminou naqueles tempos de visível divisão ideológica. Nessa década, o presidente George W. Bush empreendeu uma grande reforma na educação dos jovens americanos, no qual estava incluído o conhecimento das “diferentes heranças culturais da nação”. A comissão encarregada da área da História teve uma tarefa árdua ao englobar uma gama de minorias presentes no país, numa tentativa de construir uma história verdadeiramente global. Os novos parâmetros de ensino ficaram prontos em 1994, e quase de imediato passaram a ser denunciados por grandes veículos de comunicação do porte de Wall Street Journal, que os acusavam “como uma conspiração para inculcar uma educação ao estilo comunista ou nazista, dentro de uma campanha contra o multiculturalismo e contra os “tenured radicals”: os professores “radicais” que se acreditava, sem fundamento algum, controlassem os ensinos de história, literatura ou antropologia nas universidades norte-americanas”3Emergiam novamente os conflitos da época da guerra, que de fato nunca foram superados.

As perseguições ao marxismo e seus simpatizantes continuava a funcionar com o mesmo mecanismo dos anos 40: os vigilantes e historiadores alinhados à classe dominante. O historiador David Abraham foi perseguido pelo também historiador Henry A. Turner; Norman Cantor atacava Lawrence Stone; Robert Conquest, que em seu último livro mostrara como as “ideias revolucionárias devastaram mentes, movimentos e países inteiros”, atacava o historiador inglês Eric Hobsbawm, autor de História do Século XX, livro bem aceito nos meios liberais britânicos.


1FONTANA, Josep. “As Guerras da História”. In: A História dos Homens. Bauru, (SP). p. 347.
2Ibidem, p. 353.
3Ibidem, p. 355-56.


CRÉDITO DA IMAGEM:

http://mccarthyism175.weebly.com/

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Alexandria - o Farol e o Porto

Por Antonio José Souto Loureiro


Alexandria em 1681. Gravura de Cornelius de Bruyn.

Os Egípcios receberam Alexandre com alegria, pois viam nele um libertador que poria fim ao duríssimo domínio persa. Por seu lado, Alexandre, como prova de respeito à civilização egípcia, dirigiu-se ao oásis de Siwa, para receber do deus Ámom-Rá a consagração como faraó legítimo.

Foi durante essa viagem que ele se deteve para fundar, no extremo ocidental do Delta, uma grande cidade, a primeira de uma longa série, à qual quis dar o seu nome. O seu plano consistia em erigir uma cidade sumptuosa que seria o núcleo do seu poder e um centro de cultura.  Alexandre Magno morreu antes de ver concluída a obra, mas Ptolomeu, seu sucessor, no Egito, foi quem continuou o seu ambicioso plano. Assim nascia Alexandria, no Inverno de 332-331 a.C., no local de uma antiga aldeia de pescadores e pastores chamada Rhakotis, a Oeste do delta, no istmo entre o mar e o lago Mareótis, perto do braço Canópico do Nilo.

Alexandria, estava magnificamente situada, na encruzilhada das rotas navais, fluviais e terrestres de três continentes: Europa, África e Ásia. Desta forma, será a capital cultural do Helenismo, pelo menos durante três séculos, e, rapidamente na maior cidade comercial do mundo.  A tradição atribui a planificação da cidade de Alexandria ao arquiteto e urbanista Dinócrates de Rodes, o mesmo que teria projetado a reconstrução do Artemísion de Éfeso, no tempo de Alexandre Magno. Duas grandes avenidas: a Avenida Norte-Sul e a Avenida Leste-Oeste, dividiam a cidade em quatro bairros principais, denominados pelas quatro primeiras letras do alfabeto grego. A artéria principal (Leste-Oeste), chamada Canópica, tinha 7 quilômetros e meio de comprimento e 30 metros de largura, sendo ladeada por passeios. A artéria norte-sul desdobrava-se em duas largas áleas separadas por um renque de árvores.

A configuração da cidade era geométrica. As ruas, de cada um dos seus 4 bairros, eram ortogonais. Dado o clima quente e seco característico daquela região, eram estreitas para originarem mais sombra. Na realidade, não eram necessárias ruas mais largas pois só em dias de festa a circulação tornava-se intensa. A cidade construiu-se muito rapidamente distinguindo-se das outras cidades egípcias por ter sido edificada não em tijolo, mas em pedra.

O palácio real dos Ptolomeus, o Bruquium, cobria por si só cerca de um quarto da cidade, todo ele construído com mármores importados. Contudo, a sua arquitetura, ainda que majestosa, em nada se assemelhava aos conjuntos monumentais das mansões faraônicas. Para além deste imenso palácio, a Neópolis, ou seja, a cidade nova, incluía diversas outras grandes construções: jardins, o Museu, a Biblioteca e o Teatro. A Leste, no subúrbio do Elêusis, situavam-se o ginásio, o estádio, o Hipódromo e um cemitério; a Oeste, a necrópole principal ao longo do canal que ligava Alexandria a Canopo. Nesta zona existiam ainda belos jardins e moradas sumptuosas onde, segundo o testemunho de Estrabão, se vivia alegremente.

O Porto

Para fazer de Alexandria um centro de comércio de primeira grandeza, foi necessário dotar a cidade com as estruturas e os aperfeiçoamentos necessários. Como o porto da cidade não era satisfatório, Alexandre mandou construir um porto artificial entre a costa e a Ilha de Faros que se encontrava aproximadamente a mil metros da margem. Esta ilha foi unida ao continente através de um paredão, o Heptaestádio, um dique com sete estádios de comprimento, aproximadamente 1200 m. A baía ficava assim dividida em dois portos: a leste, o porto de guerra, os arsenais, os estaleiros navais e o porto pessoal do soberano. A oeste, o porto mercantil, o Eunostos significando bom regresso. Duas aberturas existentes no dique permitiam aos navios passar de um porto para o outro. Este duplo porto de Alexandria foi mais tarde copiado em várias cidades helenísticas.

O Farol

O arquiteto Sóstrato de Cnido levantou, na ilha de Faros, o primeiro farol do mundo. Com cerca de 120 metros de altura e equipado com todos os instrumentos mecânicos então conhecidos para proteção da navegação era capaz de efetuar previsões meteorológicas. A sua luz era alimentada por lenha resinosa, içada por máquinas hidráulicas, que, por uma combinação de espelhos côncavos, se dizia ser visível a mais de 50 Km de distância.

O farol dispunha ainda de engenhos que assinalavam a passagem do sol, a direção do vento e as horas. Estava equipado com sinais de alarme acionados a vapor que se faziam ouvir durante o mau tempo, bem como com um elevador que permitia o acesso ao cimo da torre. Possuía também um periscópio gigante, por meio do qual um vigia podia observar embarcações que se encontrassem para além do horizonte aparente. Este farol, uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo, foi destruído por um terremoto no século XIV.

Em Alexandria a Bíblia deixou de ser uma tradição oral e foi escrita, pela primeira vez em grego. Quando foi tomada pelos árabes e sob o domínio bizantino, grande parte de seus rolos espalhou-se pela Europa, sendo talvez a raiz das bibliotecas dos conventos das Ordens então fundadas, como a dos Dominicanos.


Antonio José Souto Loureiro, 75, é escritor, médico reumatologista e historiador. Nasceu em Manaus, em 06 de junho de 1940. Formou-se em Medicina na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. É membro (Presidente) do Instituto Histórico e Geográfico do Amazonas (IGHA), da Maçonaria do Amazonas, da Academia Amazonense de Letras e da Academia Amazonense de Medicina. É autor de Amazônia 10.000 anos, 1972; Síntese da História do Amazonas, 1978; A Gazeta do Purus, 1981; A Grande Crise, 1986; O Amazonas na Época Imperial, 1989; Tempos de Esperança, 1994; Dados para uma História do Grande Oriente do Estado do Amazonas, 1999; História da Medicina e das Doenças no Amazonas, 2004; O Brasil Acreano, 2004; e o Toque de Shofar.




CRÉDITO DA IMAGEM:

commons.wikimedia.org