domingo, 25 de junho de 2017

Antigas famílias manauaras

Porto de Manaus, 1865. Aquarela de Jacques Burkhardt.

Família, o mais popular grupo humano, formado por membros que compartilham entre si relações ancestrais e afetivas, estruturada de diferentes formas, que vão desde a nuclear à monoparental. Nesse texto, um esboço desprendido de qualquer tentativa de delimitar o início e o fim de algo, busco, de forma simples, abordar as origens de algumas das famílias mais antigas de Manaus, famílias essas que, ao longo dos séculos, contribuíram de alguma forma para o desenvolvimento da cidade, estando presentes em diferentes períodos de sua evolução histórica e social.

Nos primeiros anos do que viria a ser Manaus, a Fortaleza de São José da Barra, núcleo que nada aparentava de urbano, é difícil de imaginar quais foram as primeiras famílias a se formar. Mas, levando em conta a inexistência de mulheres portuguesas nas primeiras expedições, supõe-se uniões entre soldados portugueses com filhas de chefes indígenas. Esse processo de formação de famílias mestiças se intensificaria em 1755, quando foi instituído o Alvará de 04 de abril, que autorizava o casamento entre brancos e indígenas, de forma a suprir a carência demográfica da Capitania de São José do Rio Negro. Essa política de união entre brancos e indígenas começou a surtir efeito cedo, como fica claro em uma carta de Mendonça Furtado para o rei, onde ele transmite que conseguiu que [...] “naquele pouco espaço se contrahissem não menos de 78 matrimonios no Ryo Negro” (MONTEIRO, 1995, p. 47).

Em fins do século XVIII, as famílias formadas por portugueses já eram uma realidade. Talvez já o fossem antes, mas temos um indício no diário de viagens de Alexandre Rodrigues Ferreira, no qual são citados os nomes de alguns moradores brancos, homens e mulheres: Manoel Tomé Gomes, Manoel Pinto Catalão, Inácia Lindoza e Madalena de Vasconcelos (FERREIRA, 2005, p. 355). Inácia Taveira de Meneses Lindoza era neta de Raimunda Taveira de Menezes Lindosa, essa, no romance O Espião do Rei (1950), do folclorista e historiador Mário Ypiranga Monteiro, esposa de “Ferrabaz” Lindosa, soldado português de antigas Tropas de Resgate, assassino de indígenas em inúmeras povoações do Amazonas.

Tem origem no século XVIII a família Tenreiro Aranha, oriunda de Portugal e com laços em Barcelos e Belém, esta última por um de seus membros ser descendente dos povoadores dessa cidade ainda no século XVII. Os membros mais conhecidos são Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha, poeta de Arcádia, seu filho João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha, primeiro presidente da Província do Amazonas, e o filho deste último, Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha, jornalista autor de Um olhar pelo passado (1897), falecido aos 79 anos em 1919. Penso que boa parte dessas famílias dos primeiros tempos, dos séculos XVII e XVIII, desapareceram ou foram absorvidas por grupos maiores, perdendo suas identidades, talvez por mudanças nos cenários político e econômico, pela não continuidade de seus descendentes ou pela arma mais eficaz para fazer algo desaparecer: o esquecimento.

Muitas das famílias que fizeram história em Manaus vieram de outros estados e até de outros países. No século XIX, transformações políticas como a vinda da Família Real, os Tratados de Amizade e Comércio, e depois a Independência do Brasil do Reino de Portugal, estimularam a vinda de estrangeiros para o país, muitos deles visando estabelecer-se no Amazonas. A família Antony é talvez um dos exemplos mais clássicos que podem ser destacados. Em Manaus, essa família tem origem no toscano Henrique Antony, que chegou no Lugar da Barra por volta de 1823, fugindo dos efeitos da dominação napoleônica na Europa. Em 1839 casou-se com Leocádia Maria Brandão, filha de Antônio José Brandão, fazendeiro português dono de engenho, estabelecido na região que hoje corresponde ao Manaquiri e de uma mestiça filha de um chefe manau. Da união entre Leocádia e Henrique nasceram João Carlos, Américo, Dinary, Guilherme, Luiz Carlos, Lina, Paulina, Maria e Luiz.

Em 1853, já como grande comerciante da Província do Amazonas, o Império lhe autorizou a concessão da carta de naturalização, sendo Antony o primeiro estrangeiro a naturalizar-se no Amazonas (COLLECÇÃO DAS LEIS E DECISÕES DO IMPÉRIO DO BRASIL, 1853, p. 5). A família, atualmente, encontra-se na sexta geração, com mais de 200 membros só em Manaus (FERREIRA, 2009). Outro italiano, mais antigo nessas terras, foi o corso Francisco Ricardo Zany, que aqui chegou entre 1817 e 1821.

Vindos de mais longe, da Grécia, os Tadros, cristãos de origem copta, se estabeleceram em Manaus por volta de 1870, consolidando-se como comerciantes. David Tadros, o pioneiro dessa família na região, fundou em 1874 a Tadros & Cia, casa de aviamento, de navegação, de importação e exportação, atualmente a mais antiga empresa em funcionamento no Amazonas (de ramos diversos, com foco em propriedades imobiliárias), com incríveis 143 anos. José Roberto Tadros, bisneto de David, comanda a empresa nos dias de hoje.

A família Moreira, de origem portuguesa e estabelecida na Bahia, também se fez presente em Manaus. Os membros mais notáveis foram três irmãos: Guilherme José Moreira, primeiro e único Barão do Juruá, comerciante e político; Antônio José Moreira, o Dr. Moreira, médico do Corpo de Saúde e Deputado pela Província; e Emílio José Moreira, Coronel, político e comerciante. Seus pais, Sebastião José Moreira e Maria José Moreira, permaneceram em Salvador.

Uma das famílias mais antigas de que se tem notícia, existente até os dias de hoje, é a Miranda Leão. A origem desta é interessante: Seu mais antigo membro conhecido, José Coelho de Miranda Leão, foi oficial de alta patente da esquadra portuguesa que fugira de Portugal durante a invasão de Napoleão Bonaparte, acompanhando Dom João VI ao Brasil, entre 1807-8. Seu nome era apenas José Coelho, sendo Miranda um acréscimo em homenagem à sua cidade natal, Miranda do Douro, no Distrito de Bragança. Já no Brasil, a serviço de Dom João, travou combate com um navio da esquadra francesa, derrotando-o com grande maestria. O monarca português lhe agraciou com o título de Leão do Mar, título esse acrescentado a seu nome, que passara a ser José Coelho de Miranda Leão. Em Mazargão, na Província do Pará, casou-se com a filha de um fidalgo português. Dessa união nasceu José Coelho de Miranda Leão, falecido em 1894. Este casou-se com Martiniana Ferreira dos Anjos, descendente, em linha direta, da tribo dos manaus (BITTENCOURT, 1969, p. 109). Dessa união nasceu Manoel de Miranda Leão, professor, jornalista e político (1851-1927). O descendente mais conhecido atualmente é Homero de Miranda Leão Neto.

A família Malcher, poderoso clã político e militar em Belém do Pará e arredores, tem suas origens que remontam ao século XVIII, de grandes proprietários de terra portugueses, fazendo união com a influente família Gama Lobo, originada de colônias na África e na América, cujo membro mais famoso é Manuel da Gama Lobo D’ Almada, Brigadeiro e engenheiro militar português que administrou a Capitania de São José do Rio Negro entre 1788 e 1799. Em Manaus, o membro mais importante dessa família foi Leonardo Antônio Malcher (1829-1913), Major da Guarda Nacional, abolicionista e pioneiro na divulgação da doutrina espírita no Amazonas. Casou-se com Maria Raymundo Nonato, tendo dois filhos, Escolástico Clemente Malcher e Leonarda Antônio Malcher, que casou com José Cardoso Ramalho Júnior, governador do Estado do Amazonas entre 1898 e 1900.

Dada nossa posição geográfica e laços culturais, já é perceptível que boa parte das antigas famílias amazonenses têm alguma ligação ou origem em Belém, no Pará, e outras cidades desse estado. A família Miranda Corrêa é originária da região do Lago Grande, nos arredores de Santarém, descendente de um ramo português miscigenado com índios da região. Jucundina de Miranda Corrêa, originária do Baixo Amazonas, e Inocêncio de Miranda Corrêa, Juiz, são o casal de que se tem notícia, e aquele que deu origem à maioria dos membros dessa família. Dessa união nasceram: Luiz Maximino e Antonino Carlos, o médico Deoclécio, os bacharéis Carolino e Adelino, o almirante Altino, o comandante Acrisio Fulvio e duas irmãs: Joana e Sinhá Sussuarana (JORNAL A NOTÍCIA, 1970). Luiz Maximino e Antonino se tornaram famosos pela construção da ''Fábrica de Gelo Cristal'' e a "Casa de Chopps'', em 1903; da ''Cervejaria Amazonense'' em 1905; e do moderníssimo Castelo da Cervejaria Miranda Corrêa, entre 1910 e 1912, onde foi instalado o primeiro elevador da cidade, existente até os dias de hoje no bairro da Aparecida; os Miranda Corrêa adquiriram de um rico comerciante português o prédio que mais tarde ficaria conhecido como Palacete Miranda Corrêa. Atualmente, existem descendentes dos Miranda Corrêa no Pará, no Amazonas, no Maranhão e no Rio de Janeiro.

Existem, é claro, mais famílias cujas origens estão localizadas em longínquos 100, 150, 200 anos. Buscou-se, aqui, apresentar um panorama das origens de algumas das principais famílias de Manaus, assim entendidas por suas influências no cenário político e econômico. Dar conta de abordar todas em um texto seria uma tarefa laboriosa, dada a complexidade dos estudos na área de genealogia e a quantidade de informações. As fontes aqui utilizadas nos dão apenas algumas ideias, devendo ser descobertas novas, trabalhadas as antigas, aplicadas em estudos de trajetórias, de biografias e de redes de poder.


BIBLIOGRAFIA:

MONTEIRO, Mário Ypiranga. Fundação de Manaus. 4° ed, São Paulo, Metro Cúbico, 1995.

MONTEIRO, Mário Ypiranga. O Espião do Rei. 2° ed, Manaus, Editora Valer, 2002.

FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem filosófica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá (1783-1793). Disponível em CiFEFil, Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos.

BITTENCOURT, Agnello. Dicionário amazonense de biografias. Manaus, Editora Artenova, 1969.

FERREIRA, Evaldo. Rua Henrique Antony. Jornal Em Tempo, 2009.

Collecção das Leis e Decisões do Império do Brasil. Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1853.

Jornal A Notícia, 17/09/1970.


CRÉDITO DA IMAGEM:

Manaus Sorriso

quarta-feira, 7 de junho de 2017

Os Santos Populares do Cemitério São João Batista (Manaus/AM)

Os santos populares do Cemitério de São João Batista: Teresa Cristina, Etelvina D' Alencar, Shalon Emanuel Muyal e Delmo Campelo Pereira.

Uma das características mais fortes da religiosidade brasileira é o seu caráter popular, que se desenvolve à margem de um poder oficial. Os santos populares talvez sejam o melhor exemplo dessa "crença não oficializada". É histórica a relação que os vivos criam com os mortos, acreditando que estes, já em outro plano, podem interceder no mundo terreno em benefício e, em alguns casos, assombrar seus algozes. No Cemitério São João Batista temos quatro sepultados considerados santos por um número considerável de seguidores: Etelvina de Alencar, Teresa Cristina, Shalon Emanuel Muyal e Delmo Pereira.

Etelvina Alencar (1884-1901) - Etelvina D' Alencar, natural de Boa Vista do Icó (CE), era filha de Cosmo José D' Alencar e Rosalinda D' Alencar. Essa família de cearenses se estabeleceu na Colônia Campos Salles para trabalhar na área agrícola. No local, Etelvina conheceu um jovem de nome José, tornando-se noiva deste. No entanto, Etelvina desistiu do casamento. José ouviu boatos de que Etelvina possuía três namorados na Colônia: Antônio, Estevam e Henrique. José adquiriu um rifle, matando os três e o administrador da colônia, que tentou impedi-lo de cometer os crimes. Por último, invadiu a casa de Etelvina, levando-a para a mata. Na cena do crime, vários dias após o ocorrido, como escreveu Júlio Uchôa no Jornal do Comércio de 15/01/1956, estavam "dois esqueletos, com o rifle no meio". José assassinou Etelvina Alencar e logo depois se suicidou. O crime gerou grande comoção dentro e fora da cidade, sendo noticiado em jornais de outros estados. A Prefeitura de Manaus, em 30/08/1901, lhe dedicou uma sepultura perpétua, com um jazigo construído pela população. O mausoléu atual foi construído em 1964 também pela Prefeitura de Manaus. Com o passar dos anos, várias pessoas passaram a ver e atribuir milagres a jovem Etelvina D' Alencar, Santa Etelvina, Santa dos Estudantes. Objetos, flores, imagens do Sagrado Coração de Jesus e do Sagrado Coração de Maria são postos em seu mausoléu como homenagem, um dos mais visitados durante a celebração do Dia dos Finados e também em dias comuns.

Teresa Cristina (1964-1971) - Teresa Cristina é a pessoa mais nova dentre os outros santos populares. A criança, filha de mãe católica e pai muçulmano, desde cedo mostrava interesse por questões voltadas para o sagrado. No ano de 1971, faleceu em um acidente aéreo nas proximidades de Manaus, para onde voltava com sua mãe. A mãe de Teresa, sobrevivente, tentou ajudá-la, mas esta morreu carbonizada entre os destroços da aeronave. Passados seis meses após o acidente, a mãe da criança, dona de uma pensão no Centro, recebeu visita de um migrante, sem dinheiro, que pediu para ali ficar hospedado. A senhora lhe acolheu. No outro dia, esse hóspede foi até a casa da família de Cristina, para acertar os detalhes da hospedagem. Chegando no local, viu um quadro da criança e perguntou quem ela era. A senhora disse que era sua filha. O migrante disse que foi aquela criança que o guiou até a pensão. A mãe de Teresa disse que isso era impossível, pois seis meses a criança morrera em uma acidente aéreo. Curiosa, ela perguntou onde encontrou a criança. Este disse que encontrou a criança brincando na rua, perto de uma casa antiga. O local descrito era a antiga residência da família, abandonada após o acidente. O boato da aparição da criança se espalho rapidamente pela cidade. Um outro hóspede, com uma doença degenerativa que estava lhe tirando a visão, fez orações a Teresa Cristina, sendo curado. Nos dias de hoje, o túmulo da criança e bastante visitado por pais acompanhados de seus filhos e por descendentes de sua família.

Rabino Shalon Emanuel Muyal (+1910) - O Rabino Shalon Emanuel Muyal veio de Salé, no Marrocos, para Manaus, em 1908, a fim de ajudar no desenvolvimento da comunidade da capital. Sua experiência na cidade foi breve, pois fora acometido por uma doença tropical, vindo a falecer em 1910. A primeira pessoa auxiliada por um milagre atribuído ao rabino foi uma senhora da comunidade judaica que o auxiliou em seus últimos dias de vida. A senhora afirmava ter conseguido curar outra pessoa graças ao contato que manteve com o Rabino Shalon. A notícia correu pela comunidade judaica. A mãe de um jovem que possuía um problema no pescoço que o fazia andar com a cabeça inclinada, desacreditada pelos médicos da capital, foi até o cemitério fazer pedidos no túmulo do Rabino para o restabelecimento da saúde do filho. Inúmeras placas de graças alcançadas estão fixadas no local, junto de flores e velas, símbolos cristãos, e pedras, jogadas aos mortos na tradição judaica. Em 1980, o sobrinho de Emanuel Muyal, Eliahu Muyal, membro do parlamento de Israel e Ministro dos Transportes, visitou Manaus e pediu a comunidade judaica para levar os restos mortais de seu tio para Israel. O pedido foi negado sob a justificativa de que tal ato revoltaria a população católica que reverenciava o Santo Judaico.

Delmo Campelo Pereira (1933-1952) - O assassinato de Delmo Campelo Pereira talvez seja um dos mais controversos da história de Manaus. O crime, que envolveu nada mais nada menos que 27 pessoas, ocorreu na Colônia Campos Salles em 1952. Ele foi consequência de uma série de ações criminosas cometidas por Delmo. O jovem, rebelde e amante da vida desregrada, tentou assaltar a empresa de seu pai, atacando um vigia do local a golpes de chave de fenda. Um taxista que levara Delmo até a empresa, a única testemunha, foi assassinado a tiros pelo jovem. A categoria de motoristas de Manaus, enfurecida, empreendeu uma verdadeira caçada atrás do assassino do colega de profissão. Para a surpresa de Delmo, o vigia sobreviveu ao seu ataque. Temendo o pior, o assassino do taxista confessou seus crimes para a polícia. Suas versões eram contraditórias, ora admitia ter feito tudo sozinho, ora adicionava cúmplices. Como alternativa, este foi posto em uma ambulância para receber uma aplicação do Soro da Verdade. Em parte do trajeto, a ambulância foi atacada por um grupo de taxistas, que raptou Delmo. O jovem foi levado pelos taxistas para o Baixio dos Franceses, à margem da Estrada de São Raimundo. Ali encontraria seu fim: Foi torturado pelos taxistas enfurecidos, chicoteado com fios elétricos, tendo seu ventre aberto do umbigo ao pescoço no processo. Sua morte gerou a revolta da população, principalmente dos estudantes. Em seu túmulo encontram-se as inscrições "Estudante Mártir". Pedidos para sucesso na vida acadêmica e cadernos são deixados em sua homenagem.

FONTES:

SANTOS, Fabiane Vinente dos; MAIA, Jean Ricardo Ramos. Hagiografia de cemitério: História Social e Imaginário religioso nas canonizações populares em Manaus. Revista Eletrônica os Urbanitas, São Paulo, v. 5, 2008.

CUPPER, Maria Terezinha da Rosa. Educação e Cultura: Leitura do Cemitério de São João Batista - Manaus/AM. Manaus, Universidade Federal do Amazonas, 2009. (Dissertação de Mestrado em Educação).

Catador de Papéis (www.catadordepapeis.blogspot.com). Blog do Coronel Roberto Mendonça

CRÉDITO DAS IMAGENS:

Maria Terezinha da Rosa Cupper
G1 Amazonas
Manaus de Antigamente





segunda-feira, 5 de junho de 2017

Entre a riqueza e a pobreza na Idade Média: As análises de Jacques Le Goff, Fernand Braudel e Maurice Dobb sobre as desigualdades no mundo medieval

Paisagem medieval. Pintura dos irmãos Limbourg (século XV).

Na medida em que a sociedade muda seu trabalho, ou seja, o modo de produção, desde a queda do Império Romano do Ocidente no século V, temos a migração das populações das cidades para o campo. O mundo antigo está em declínio, politicamente descentralizado e com uma rede urbana decadente. As massas trabalhadoras e as elites urbanas se transferem para as suas pequenas e médias propriedades campestres. A partir do século XIII, ocorre o inverso. A Europa medieval está em pleno desenvolvimento, seja na política ou na economia. Surgem novas técnicas e instrumentos agrícolas, os índices demográficos aumentam e os transportes se desenvolvem, apenas para ficarmos em alguns exemplos. Ao mesmo tempo em que o Velho Continente caminhava rumo a novos tempos, acentuavam-se problemas sociais. Três autores analisam essa contradição de riqueza e pobreza: Jacques Le Goff (2007), Fernand Braudel (1996) e Maurice Dobb (1977).

Os livros utilizados foram As raízes medievais da Europa; Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII: O jogo das trocas; e A transição do feudalismo para capitalismo.

Para Jacques Le Goff, o enriquecimento, ao mesmo tempo em que beneficia as cidades, regiões e determinados grupos sociais, “empobrecia as vítimas das trocas” (p. 254). Dentro de uma perspectiva não só econômica, mas política e cultural, compartilhada de Braudel, o enriquecimento, alicerçado na economia-mundo, espaço de trocas econômicas onde várias regiões se comunicam, agrava as desigualdades sociais e políticas. Cresce, nas sociedades, o desejo pela diferenciação social, dividindo grupos por classes. As grandes cidades comerciais como Flandres e Gênova, centros de racionalização da produção e da divisão do trabalho, sedimentam o antigo modo de produção. Somam-se a esses problemas as mudanças climáticas, que levaram ao resfriamento e com isso o prejuízo na agricultura; As guerras perpetradas pelos Estados Nacionais, que agora formavam exércitos permanentes; As grandes epidemias como a Peste Negra; E as perseguições às minorias de judeus e muçulmanos, resultados da limpieza del sangre (limpeza de sangue), cujo resultado mais conhecido é a expulsão dos judeus da Península Ibérica em 1492. A Europa é um lugar rico e violento entre os séculos XIV e XV.

Sobre o dinheiro, essa unidade utilizada nas trocas, Fernand Braudel afirma que, no campo, este é utilizado na compra de terras e, “através dessas comprar visa à promoção social” (p. 43). No entanto, a introdução de valores monetários no campo destruiu valores sociais e equilíbrios antigos. O camponês assalariado, antes da introdução do dinheiro, recebia seus pagamentos in natura, em bens materiais como a terra. Com a monetarização do campo, este passou a contar seus pagamentos em valores monetários, valores esses nem sempre favoráveis. Essa é, segundo Braudel, uma mudança da mentalidade, “que ajuda nas adaptações da sociedade Moderna mas que não se reverte em favor dos mais pobres” (p. 43). A economia, nesse caso, influencia na mentalidade e nas relações de trabalho. Braudel cita como exemplo a comercialização de terras, no século XVIII, no país Basco. Essas propriedades se concentraram nas mãos de poucas pessoas, corroborando para a péssima situação dos camponeses, obrigados agora a procurar oportunidades de trabalho no campo, com dificuldade, ou na cidade, que nem sempre absorvia toda a mão de obra.

Por último, Maurice Dobb afirma que o crescimento das cidades mercantis e do comércio refletiu no aumento de conflitos internos. O valor de troca “como um fato econômico de vulto tende a transformar a atitude dos produtores” (p. 42). Essa é “uma transformação psicológica que afeta os envolvidos e os que entravam em contato com a economia de troca” (p. 42). As cidades mercantis, na medida em eram polos de atividades comerciais variadas, também representavam para os camponeses novas oportunidades de vida e trabalho. Por exemplo, como cita Dobb, o crescimento do comércio "acelerou o processo de diferenciação social no pequeno modo de produção" (p. 60). Ao que tudo indica, a acumulação primitiva de capital permitia aos seus agentes possibilidades de ascenderem socialmente, se diferenciando do resto da população.

Em síntese, Le Goff evoca uma Europa política, mas globalizada em termos econômicos e culturais, em um processo que enriquece mas também marginaliza parte da população, agora estratificada socialmente. Fernand Braudel vê na introdução de um valor monetário a mudança nas mentalidades e nas relações de trabalho. Maurice Dobb vê o crescimento da economia de troca como potencializador das diferenciações sociais. Um elemento que parece unir as análises desses autores é a mentalidade, que sofre alterações de curto e longo prazo no decorrer das mudanças econômicas e sociais.


FONTES:

LE GOFF, Jacques. As raízes medievais da Europa. Tradução de Jaime A. Clasen. Petrópolis, RJ, Editora Vozes, 2007.

BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII: O jogo das trocas. Tradução de Telma Costa. 2° ed. São Paulo, Editora WMF Martins Fontes, 2009.

PAUL, Sweezy.  A transição do feudalismo para capitalismo. Tradução de Isabel Didonnet. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.


CRÉDITO DA IMAGEM:

http://www.historyandpedagogy.org

quinta-feira, 1 de junho de 2017

A transição do Feudalismo para o Capitalismo: O debate de Paul Sweezy e Maurice Dobb

Paul Sweezy (1910-2004) e Maurice Dobb (1900-1976).

Paul Sweezy (1910-2004) foi um economista marxista norte-americano, teórico do neomarxismo do imperialismo e da teoria da dependência. Maurice Dobb (1900-1976) foi um economista marxista britânico, crítico da economia planificada socialista.

Paul Sweezy e Maurice Dobb foram dois autores da corrente marxista que se notabilizaram por seus debates acadêmicos em torno da transição do Feudalismo para o Capitalismo, envolvendo questões como a conceituação desse período; a relação da servidão com o Feudalismo e o impacto do comércio no modo de produção feudal. O debate, conhecido como Debate de Transição, pode ser lido em maior profundidade no livro A transição do feudalismo ao capitalismo (1977, Rio de Janeiro, Paz e Terra), organizado por Sweezy com a participação dos autores Rodney Hilton, Maurice Dobb, Kohachiro Takahashi, Georges Lefebvre, Christopher Hill, Giuliano Procacci, Eric Hobsbawm e John Merrington.

De acordo com Paul Sweezy, Dobb define o Feudalismo como "uma servidão na qual o produtor é obrigado mediante o uso da força, independente de suas vontades, de forma a cumprir as exigências econômicas do senhor, exigências que poderiam ser a prestação de serviços ou tributos a serem pagos em dinheiro ou espécie" (SWEEZY, 1977, p. 33). Ao não identificar um "sistema de produção", essa ideia é considerada falha por Sweezy. Esse autor afirma que a servidão não é restrita ao sistema feudal, e que esta pode ser verificada "em diferentes formas de organização econômica em diferentes épocas e em diferentes regiões" (SWEEZY, 1977, p. 33). 

Sweezy afirma que Dobb não define um sistema social, mas uma família dele com foco na servidão. Sweezy sugere que Dobb identifique qual membro dessa família está sendo estudado. Escolher um "membro" parece ser uma forma de evitar generalizações.

Em sua réplica, Maurice Dobb aponta suas discordâncias com Sweezy. Dobb rejeita as primeiras críticas de Sweezy, afirmando que a servidão não está ligada apenas à prestação de serviços compulsórios, "mas à exploração do produtor mediante coação direta político-legal" (SWEEZY, 1977, p. 57). Afirma ainda que, quando Sweezy diz que não houve a identificação de um sistema de produção, este pretende analisar a relação entre produtor e mercado. 

Enquanto Sweezy busca um sistema de produção, Dobb identifica pequenos modos de produção, "no qual o produtor possui os meios de produção, na qualidade de unidade produtora individual" (SWEEZY, 1977, p. 58).

Sobre o impacto do comércio como elemento desestabilizador do "modo de produção feudal", Sweezy defende a tese de que forças externas, o mercado e o comércio, desintegraram o feudalismo, na medida em que centros de comércio passaram a se racionalizar e dividir o trabalho, se opondo "à ineficiência da organização senhorial da produção" (SWEEZY, 1977, p. 42).

Maurice Dobb, por outro lado, defende a tese de que houve uma interação entre duas forças, dando maior ênfase, no entanto, às forças internas. Dobb não nega que o crescimento das cidades mercantis e do comércio influenciaram na desintegração do modo de produção feudal, mas afirma que essa influência refletiu no aumento dos conflitos internos. Por exemplo, como cita Dobb, o crescimento do comércio "acelerou o processo de diferenciação social no pequeno modo de produção" (SWEEZY, 1977, p. 60).

Tese de Sweezy: O economista norte-americano defende que o fator central para a dissolução do Feudalismo e a ascensão do Capitalismo foi a expansão comercial ocorrida entre os séculos XI e XIV, um elemento externo a esse sistema. Essa expansão do comércio impulsionou a produção para a troca, em oposição a produção feudal voltada para o uso. O comércio estimulou o surgimento das cidades, que se tornaram pólos de produção racionalizada e de atração para os servos do campo.

Tese de Dobb: Para o economista inglês Dobb, o fator central da desintegração do Feudalismo foi interno, sendo a pressão dos senhores sobre os servos e os conflitos de classe entre dominadores e dominados suas principais causas.

CRÉDITO DAS IMAGENS:

Monthly Review
Spartacus Educational

terça-feira, 30 de maio de 2017

500 anos da Reforma Protestante: Discursos sobre o movimento

Estátua de Martinho Lutero, em Washington (EUA). Obra do escultor alemão Ernst Friedrich August Rietschel (1884).

O presente texto, simples e livre de qualquer formalidade, não se pretende ser mais uma explicação sobre os processos que culminaram na Reforma Protestante, mas sim uma discussão sobre os reflexos desse evento em discursos contemporâneos, estando inserido no campo das mentalidades formadas sobre a Reforma, que completa 500 anos em 2017.

Sábado, 20 horas. Mudando aleatoriamente de canais, paro em um programa de uma emissora Protestante. Na pauta, dirigida pelo apresentador na companhia de dois teólogos, os 500 anos de um dos eventos mais importantes da Era Moderna: A Reforma Protestante. São cinco séculos de um movimento que moldou de forma significativa o panorama político e religioso do Ocidente e, dadas as influências posteriores, o mundo de forma geral.

No horário, o programa já estava bastante adiantado, mas o que foi assistido serviu de fonte para a produção desse artigo. Os dois teólogos afirmavam, com alegria, que “Lutero libertou a Europa da tirania da Igreja Católica” e que o “movimento renovou o Cristianismo”. Afirmações essas feitas com uma vivacidade que poderia fazer pensar se esses convidados não estiveram em Wittenberg, na Alemanha, em 1517, ajudando o monge agostiniano na propagação de suas ideias.

Uma semana depois, na universidade, ouvi nos corredores uma conversa entre dois estudantes. Ao que tudo indica, católicos praticantes, tanto pelo tom da conversa quanto pelos adereços, bótons de santos e terços. Um dizia que Lutero era um “herege” que dividiu o Cristianismo. Outro, no mesmo tom, via naquele monge agostiniano a figura que contribuiu para a proliferação de inúmeras “seitas sem unidade” que se arrastam até os dias de hoje. Bem que esses dois poderiam estar, em 1517, do alto do Castelo de Wittenberg vendo, sob protestos, Lutero pregar as 95 teses na porta da Igreja.

São comentários interessantes, um mais caloroso que o outro, mostrando como um evento de 500 anos permanece “vivo” na mente e no discurso de seus favoráveis e opositores do século XXI. A História é o campo de combate da memória. Ganha, geralmente, aquele que está atrelado ao Estado e às mais altas posições. No entanto, não estamos falando de grupos pequenos que lutam por suas memórias, mas sim de duas grandes e poderosas ramificações do Cristianismo, com milhões de adeptos ao redor do mundo. É uma disputa que parte do alto, disputa essa com reações imediatas ao evento.

Em fevereiro de 1518, o Papa Leão X, a pedido da Ordem dos Agostinianos, pediu para que as ideias de Lutero parassem de ser difundidas. O teólogo italiano Silvestro Mazzolini da Priero redigiu Um Diálogo contra as Teses Presuntivas de Martinho Lutero sobre o Poder do Papa. João Maier, amigo de Lutero, escreveu teses contra suas ideias, o considerando um herege estúpido, o que terminou por iniciar uma disputa teológica, o famoso Debate de Leipzig, que terminou sem vencedores. Por último, Martinho Lutero foi excomungado da Igreja Católica em 1521, quando queimou a Bula que oferecia ou a retratação ou a excomunhão.

Vejamos o que diz o padre Paulo Ricardo, figura famosa no meio religioso católico, no texto Por que não sou Protestante? Sobre a Reforma Protestante e seus agentes: “Os reformadores protestantes, como Martinho Lutero, João Calvino e Ulrich Zwinglio, vendo a triste situação em que se encontravam os homens da Igreja, quiseram empreender uma mudança, mas, no fim, acabaram mutilando a Igreja”. Conclusões semelhantes às dos dois estudantes anteriormente citados.

Para o pastor Paulo Júnior, em O que foi a Reforma Protestante? Afirma que “em uma época que o povo comum era privado da leitura das Escrituras e o papa liderava a cristandade com mãos de ferro, Lutero foi uma voz levantada por Deus para dar início a uma completa revolução espiritual na Alemanha. Lutero combateu os vários desvios doutrinários de sua época praticados pela Igreja Católica Romana, condenou veementemente a venda de indulgências, traduziu a Bíblia para o alemão e a colocou nas mãos do povo comum. Enfim, inflamou o coração de seus irmãos a uma busca sincera por Deus e o Cristianismo autêntico”.

Diferentes discursos, alguns do século XVI, outros do século XXI. Mesmo com inúmeros séculos de diferença entre uns e outros, eles possuem o mesmo objetivo: defender determinada visão de mundo. Os teólogos não estavam ao lado de Lutero na hora de fixar as 95 teses na porta da Igreja, nem os estudantes estavam do alto do castelo protestando contra a ação desse monge. Essas pessoas apenas defendem aquilo que lhes foi transmitido de determinada forma, oral ou escrita, dentro de uma visão religiosa de mundo. O curioso é observar como 500 anos depois o evento permanece vivo por meio da mentalidade e dos discursos sobre ele formados e propagados. É como se a qualquer momento Lutero ou o Papa Leão X fossem ressurgir e fazer uma observação: “não foi assim, pois eu estava lá”…


FONTES:

RICARDO, Paulo Pe. Por que não sou protestante? Disponível em: https://padrepauloricardo.org/episodios/por-que-nao-sou-protestante. Acesso em 28/05/2017.

JÚNIOR, Paulo Pr. O que foi a Reforma Protestante? Disponível em: https://defesadoevangelho.com.br/videos/o-que-foi-reforma-protestante/. Acesso em 28/05/2017.

CRÉDITO DAS IMAGENS:

commons.wikimedia.org


sábado, 6 de maio de 2017

História da América: Análise de documento

Ritual de sacrifício asteca retratado no Codex Magliabechiano (circa 1570).

Trecho de Historia de los indios de Nueva España, de Frei Toríbio Motolinía

Tratado primeiro, capítulo VI – Da festa chamada panquezalizti, e dos sacrifícios e homicídios que nela se faziam; e como tiravam os corações e os ofereciam, e depois comiam os que sacrificavam.

[...]Naqueles dias dos meses acima ditos, em um deles que se chamava panquezalizthi, que era o décimo quarto, o qual era dedicado aos deuses do México, principalmente a dois deles que se diziam ser irmãos e deuses da guerra, poderosos para matar e destruir, vencer e sujeitar; pois neste dia, como páscoa ou festa muito importante, se faziam muitos sacrifícios de sangue, tanto das orelhas como da língua, sendo isso muito comum; outros se sacrificavam dos braços e peitos e outras partes do corpo; mas porque nisto de arrancar um pouco de sangue para lançar nos ídolos, como quem derrama água benta com os dedos , ou jogar o sangue em alguns papéis e oferecê-los das orelhas e da língua era comum a todos em todas as partes; mas das outras partes do corpo cada província tinha o seu costume; uns dos braços, outros dos peitos, e através desses sinais se reconhecia de que províncias eram. Além destes e de outros sacrifícios e cerimônias, eles sacrificavam e matavam muitos da maneira que aqui direi.

Tinham uma pedra grande, de uma braçada de comprimento, e quase um palmo e meio de largura, e um bom palmo de grossura ou de espessura. Metade desta pedra estava enterrada na terra, no alto, em cima dos degraus, diante do altar dos ídolos. Nessa pedra estendiam os desventurados de costas, para os sacrificar, com o peito muito tenso, porque tinham atados os pés e as mãos, e o principal sacerdote dos ídolos e seu lugar-tenente, que eram os que mais comumente sacrificavam, e se algumas vezes haviam muitos a serem sacrificados e estes se cansassem, entravam outros que já eram hábeis no sacrifício e , prontamente, com uma pedra de pedernal com que tiram faíscas, desta pedra faz-se uma grande navalha como ferro de lança, não muito afiada; digo isto porque muitos pensam que eram daquelas navalhas de pedra negra, que há nesta terra, e as fazem com o corte tão fino quanto o de uma navalha, e corta tão docemente como navalha, que logo abrem fendas: com aquela cruel navalha grande, como o peito estava tão tenso, com muita força abriam o desventurado e prontamente lhe tiravam o coração, e o oficial desta maldade jogava o coração em cima do umbral do altar na parte de fora, e ali deixava feita uma mancha de sangue; e caído o coração, ele ainda se mexia um pouco na terra, e logo o colocavam em uma tigela diante do altar. Outras vezes, pegavam o coração e levantavam-no em direção ao sol, e às vezes untavam os lábios dos ídolos com o sangue. Às vezes, os ministros velhos comiam os corações; outras, enterravam-no e logo pegavam o corpo e o jogavam rolando escada abaixo; e chegando embaixo, se o corpo era dos presos de guerra, o que o prendeu, com seus amigos e parentes, levavam-no e preparavam aquela carne humana com outras comidas, e em outro dia faziam festa e o comiam ; o mesmo que o prendeu, se tinha como o fazer, dava naquele dia mantos a seus convidados; e se o sacrificado era escravo, não o jogavam a rodar, mas sim o desciam nos braços, e faziam a mesma festa e convite que ao preso de guerra, ainda que não tanto com o escravo...Quanto aos corações dos que sacrificavam, digo: que após tirar o coração do sacrificado, aquele sacerdote do demônio tomava o coração em suas mãos e o levantava como quem o mostra ao sol, e logo voltava a fazer o mesmo ao ídolo, e o colocava diante de um vaso de madeira pintada, maior que uma tigela, e em outro vaso colhia o sangue e o davam como que de comer ao ídolo principal...

Em outros dias daqueles já nomeados se sacrificavam muitos, ainda que não tanto como na festa já dita; e ninguém pense que nenhum dos que sacrificavam matando-lhes e tirando-lhes coração, ou qualquer outra morte, que não era de sua própria vontade, mas sim à força, e sentiam muito a morte e sua espantosa dor. Os outros sacrifícios de tirar sangue das orelhas ou língua, ou de outras partes, estes eram voluntários quase sempre. Daqueles que assim sacrificavam, tiravam a pele de alguns, em umas partes, dois ou três, em outras, quatro ou cinco, em outras, dez, e no México até doze ou quinze, e vestiam aqueles couros, que pelas costas e em cima dos ombros, deixavam abertos, e vestido o mais justo que podiam, como quem veste colete e calças, dançavam com aquela cruel e espantosa vestimenta; e como todos os sacrificados ou eram escravos ou prisioneiros de guerra, no México, para este dia, guardavam algum prisioneiro de guerra que fosse senhor ou pessoa importante e, a este, esfolavam para vestir o couro dele no grande senhor do México, o qual, vestido com aquele couro, dançava com muita solenidade, pensando que fazia grande serviço ao demônio que naquele dia honravam; e a isto muitos iam ver com grande maravilha porque nos outros povoados não se vestiam os senhores com os couros dos esfolados, mas outros principais. Outro dia, de outra festa, em cada parte sacrificavam uma mulher, e esfolavam-na, e alguém se vestia com o couro dela e dançava com todos os outros do povo; aquele vestido com o couro da mulher e os outros com suas plumagens.

Havia outro dia em que faziam festa ao deus da água. Antes que este dia chegasse, vinte ou trinta dias, compravam um escravo e uma escrava e os faziam morar juntos como casados; e chegado o dia da festa, vestiam o escravo com as roupas e insígnias daquele deus, e a escrava com as da deusa, mulher daquele deus, e assim vestidos dançavam todo aquele dia até à meia-noite quando os sacrificavam; e a estes não os comiam, mas sim os deixavam em uma cova como um depósito que para isto tinham.

(FERNANDES, Luis E. de Oliveira. “Motolinía: o choque espiritual no Novo Mundo”, Ideias: Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Unicamp, ano 11, vol. 1, 2004)


Frei Toríbio de Benavente

Frei Toríbio de Benavente, alcunhado ‘Motolinía”, o pobre, nasceu no final do século XV. Era, portanto, um homem que viveu em um contexto de Renascimento cultural e disputas religiosas. Veio para a Nova Espanha como religioso franciscano, atuando no projeto espanhol de colonização. Sendo um homem do Renascimento e do mundo religioso, tinha conhecimentos de Filosofia e Teologia, o que leva Leandro Karnal a classificá-lo como um autor que transitava entre o intelectual e o religioso. Dentro dessa perspectiva, estava inserido no projeto colonial como um agente que utilizava a cultura como um mecanismo da colonização nativa, de forma que fossem eliminadas práticas e alterados comportamentos que não fosse de encontro com a ordem colonizadora. O texto estudado em questão, Tratado primeiro, capítulo VI – Da festa chamada panquezalizti, e dos sacrifícios e homicídios que nela se faziam; e como tiravam os corações e os ofereciam, e depois comiam os que sacrificavam, foi produzido na segunda metade do século XVI, entre 1540 e 1550. É válido salientar que, além de Toríbio ser um homem de um contexto de Renascimento, ele também vinha de uma Europa cujas estruturas políticas, sociais e urbanas ainda guardavam fortes traços medievais, traços esses fortemente influenciadores nas mentalidades de homens e mulheres. Não é exagero afirmar que a Igreja que veio para a América era medieval, igreja essa que reproduziria no território conquistado doutrinação, conversão e controle através do aparelho religioso. Santo Santiago Matamoros, terror dos ‘sarracenos’ durante a reconquista da Península Ibérica (1492), é transformado em Santiago Mataindios na América, isso em um curto intervalo de tempo entre um processo puramente medieval e outro da era ‘moderna’. O local e os inimigos eram outros, mas a ideia era a mesma: conquistar. Toríbio é um dos vários agentes do processo de introdução dos nativos em uma ordem a eles imposta.

Sobre alteridade e síntese de ideias

Alteridade, a questão do outro, como escreveu Todorov no clássico Conquista da América: a questão do outro (1983). Frei Toríbio escreveu etnograficamente sobre os índios da Nova Espanha, impregnado de uma visão de mundo religiosa. Nesse texto, é possível identificar alguns elementos de uma escrita de alteridade. No início, Toríbio inicia sua narrativa como um tradicional cronista religioso e etnográfico, destacando as principais características das festividades nativas e comparando-as com festejos cristãos. Seria essa alguma tentativa de encontrar semelhanças, mesmo que mínimas, entre duas realidades distintas? Ou apenas um parâmetro eurocêntrico? Aos poucos, alguns termos e observações vão dando o tom de uma narrativa que tem por objetivo, além da documentação, depreciar determinadas práticas. A pessoa que realiza o sacrifício é chamado de “oficial do diabo”. Os deuses eram nomeados “ídolos”, que faz remeter ao “terrível pecado da idolatria”. Outro agente do processo de sacrifício é chamado de “sacerdote do demônio”, numa clássica oposição entre o bem (colonizador, Cristianismo) e o mal (nativo, práticas pagãs). Toríbio dá ênfase que, para o sacrificado, o processo “não era de sua própria vontade, mas sim à força”, e que este “sentia muito a morte e sua espantosa dor”. Os adereços utilizados nos ritos (feitos de pele humana) também eram vistos como cruéis e espantosos. Outra forma de se referir aos deuses ou ídolos era por “demônios”, os quais eram honrados pelos indígenas. Dessa forma, Toríbio buscava em sua escrita etnográfica um meio para facilitar o processo evangelizador. Sua crônica é religiosa e etnográfica, intelectual e eclesiástica, descritiva e crítica. Essas passagens escolhidas para falar sobre uma escrita de alteridade, nos permitem entender a mentalidade por trás conquista.

O título do trabalho de onde foi retirado esse texto, Motolinía: o choque espiritual no Novo Mundo, já nos direciona para uma discussão de caráter cultural. Portanto, esse texto do século XVI, amparado por outras fontes de caráter seriado e quantitativo, nos permite, através de sua problematização, identificar elementos do contexto do processo de colonização da América, seus mecanismos e as mentalidades de seus agentes.

domingo, 16 de abril de 2017

Heródoto e Tucídides: Uma breve apreciação crítica

Heródoto e Tucídides, representantes de dois momentos da historiografia helênica.

O presente texto não é de minha autoria, mas uma apreciação crítica sobre as obras de Heródoto e Tucídides feita por Vítor de Azevedo em 1964, para o prefácio da tradução da História de Heródoto.

HERÓDOTO E TUCÍDIDES

Heródoto, vendo em todas as coisas humanas o efeito e a influência do "demonium", revela tendência inteiramente diversas das de um historiógrafo moderno, que coloque os acontecimentos sob a dependência de fatores naturais e econômicos. Coexistem em sua personalidade, juntamente com o cronista atento e minucioso, um teólogo e um poeta. É o que decorre do exame de sua obra. Esta não se limita a explanar o que a experiência ensina, mas também realiza incursões mais ou menos frequentes no extraordinário e no maravilhoso. "A este respeito - comenta o já citado Carlos Otfrido Müller - a obra de Heródoto peca por monotonia: os grandes acontecimentos que narra, as empresas gigantescas dos príncipes, as veleidades da fortuna, as vicissitudes milagrosas, quadram perfeitamente à descrição de estupendos edifícios e outros monumentos portentosos do Oriente, de vários e não raro estranhos costumes de povos, de fenômenos surpreendentes, de produtos e animais raros de remotas comarcas".

Contudo, o mesmo autor abunda nas mesmas advertências de Rawlinson. Ninguém poderá negar que nestes relatos, em que Heródoto endossa coisas que não lhe fora dado ver em suas viagens, foi levado a equívocos pelos informes dos sábios, intérpretes e guias. Mas força é convir que sem essas concessões à mentalidade própria do mundo oriental - tão diferente da brilhante exatidão do mundo helênico - Heródoto não nos teria transmitido grande número de dados preciosos. Nestes, apesar de seu revestimento fantástico, a ciência moderna tem descoberto um bom fundo de verdade. Viajantes, naturalistas, geógrafos e etnógrafos já puderam verificar com surpresa a objetividade de muitas notícias e observações contidas em elocubrações aparentemente fabulosas do velho narrador.

Nascido sob o domínio persa, e numa cidade da Ásia Menor, compreende-se que a sua personalidade participe igualmente - numa mescla que a rigor resume toda uma fase importante do desenvolvimento da civilização antiga - de duas mentalidades fisionomicamente tão diversas, quais sejam a grega e a oriental. De todos os escritores helênicos, é o que mais se assemelha ao tipo asiático por suas tendências e por seu estilo. Não raro, os seus raciocínios e expressões recordam o Antigo Testamento... Por outro lado, coloca na boca dos príncipes do Oriente, em determinadas passagens, ideias que só poderiam germinar no solo da Grécia. Está neste caso, por exemplo, a exaltação da democracia que um deles faz, embora os Persas não conhecessem esse sistema de governo. Há muita ingenuidade no encadear de anedotas e fábulas, mediante as quais pretende explicar muitas medidas políticas, maneira que não corresponde, por exemplo, ao tipo mental de Tucídides.

Aqui chegamos à bifurcação de duas idades. Com Tucídides a historiografia grega se desprende das roupagens características dos logógrafos jônicos, de que Heródoto foi sem dúvida a figura culminante. Mas note-se que tínhamos na nova e ilustre individualidade um ateniense legítimo, nascido no demo de Alimonta, nove anos depois da batalha de Salamina. Os trabalhos de Tucídides derivaram diretamente da tribuna pública, das assembleias políticas e dos tribunais de justiça da Grécia. O "demonium", como causa determinante dos fatos históricos, rola de suas alturas. Em seu lugar se encastela a "ação humana", como resultado do caráter e da situação do indivíduo. A sua temática se prende diretamente ao grande litígio em que são partes das Repúblicas beligerantes, que tem como objeto de disputa a questão candente da hegemonia de Atenas.

Com Tucídides, longe ainda estava a historiografia de atingir as bases científicas do materialismo dialético. Mas de certa maneira ele foi uma antecipação primária da obra que, nesse terreno, a crítica realizou com as descobertas científicas do século XIX e com os largos materiais acumulados, ao longo dos séculos, os quais permitiram o critério de cotejo e o espírito de síntese.  A concepção do mundo característica de Tucídides ainda é primitiva, idealista, mas já não fantástica.

Não sem razão, alguns comentadores apontam em Heródoto as qualidades do "romântico", e em Tucídides a configuração do "realista". Mas como aconteceu em outras épocas da humanidade e outros setores da produção intelectual, essa diferença não decorria apenas do temperamento de cada um dos dois historiadores, que a tradição pretende tenham sido amigos em Atenas. Se o primeiro representa uma fase de transição, o segundo já resultou de transformações largamente sedimentadas na evolução do povo helênico. Tucídides é bem o fruto do "século de Péricles", que deu Antífon, na eloquência, Dâmon, na música, Fídias, na escultura, Protágoras, o sutil e ardiloso polemista, Zeno, o inventor da lógica, Cratinos, que sabia temperar o seu sarcasmo com a jovialidade, Eurípedes, o mestre do "pathos", e o mais clássico dos antigos, Sófocles, que elevou a tragédia grega a alturas culminantes.

Mas as restrições que, desta comparação crítica, possam desfavorecer o velho Heródoto, são mais aparentes do que reais. Não se podem exigir de um pioneiro as realizações dos que apareçam depois, montados nos seus ombros, como continuadores de sua obra. Para compreender-se melhor a importância relativa de Heródoto urge que o situemos com mais rigor, comparando-o não tanto com os que o sucederam, mas com os que o antecederam. Só então emergirá da crítica a ideia exata do papel que representou na evolução da historiografia.

VÍTOR DE AZEVEDO, prefácio de História, 1964, p. XXI-XXII