domingo, 14 de fevereiro de 2016

Medicina e Doença na Idade Média - Os males e os tratamentos do Homem Medieval

O Homem Anatômico, 1411-1416. A relação entre astronomia e medicina era grande na Idade Média, com estudiosos afirmando que o alinhamento entre certos corpos celestes e também as constelações tinham influência no funcionamento do corpo humano.

Quando pensamos ou falamos em Idade Média, construímos em nosso imaginário ou argumentação uma visão distorcida desse período que compreende a queda do Império Romano do Ocidente até a segunda metade do século 15. Dessa época, podemos tirar como boas heranças as Universidades, que nasceram no seio da Igreja Católica; o Astrolábio e o Quadrante, instrumentos cruciais durante as navegações da Idade Moderna; e a Prensa do alemão Johannes Gutenber, que permitiu a ampliação da produção de livros. Muito do que chamamos de "Idade das Trevas" é fruto do pensamento de intelectuais do humanismo, que descreviam a época anterior ao renascimento greco-romano como um período pobre em avanços culturais.

Mas, claro, cada período possui sua particularidade, pontos positivos e negativos, avanços e ideias consideradas ultrapassadas ou perigosas. A saúde pública e o tratamento de doenças nessa época eram um dos problemas desse período. A doença, que não escolhia a classe social das pessoas, [...] provinha da constelação ou da vingança divina (FREITAS, p. 174) , como afirmou o Papa Clemente VI, em 1349, ao relatar os estragos causados pela Peste Negra na Europa. Alguns médicos da época afirmavam que a má confluência entre corpos celestes poderia influenciar no funcionamento do corpo humano.

Através do guia How would you Survive in the Middle Ages?, traduzido para o português "Como seria sua vida na Idade Média?", de autoria de Fiona MacDonald, professora de História Medieval do Reino Unido, e de outras fontes, teremos um panorama das principais moléstias e os diferentes tratamentos utilizados por médicos, curandeiros e sábios de uma época que transitava entre a visão divina de mundo e avanços técnico-científicos.


Aforismos, a obra médica mais conhecida do grego Hipócrates. De forma prática e concisa, o autor propõe que as doenças são o resultado do desequilíbrio entre nossos quatro humores: sangue, fleuma, bílis e extra-bílis.

Muito do conhecimento medicinal da época medieval provinha de obras preservadas da Antiguidade, tais como Acerca dos Preceitos da Medicina e A Cura das Doenças, do médico romano Sereno Sammonico; Coleção Hipocrática, do grego Hipócrates; e várias publicações do filósofo e médico romano de origem grega Cláudio Galeno. Esses textos ficavam guardados em monastérios e abadias, onde eram revistos e copiados, conforme as ordens da Igreja, que determinava o que era aceitável de ser utilizado como fonte de tratamentos médicos, evitando assim a propagação de heresias. Os avanços mais significativos na área da saúde se deram durante a dominação islâmica na Península Ibérica. Em Portugal e Na Espanha, médicos judeus e árabes escreviam tratados de farmacologia, oftalmologia e cirurgia. O trabalho que teve uma influência de mais de 500 anos nas academias médicas da Europa foi o Canon, enciclopédia médica elaborada pelo cientista persa Ibn Sina.

Crescer no campo ou nas cidades medievais era uma tarefa que misturava um pouco de sorte com alguns cuidados básicos. Mulheres experientes, que tiveram uma prole considerável, realizavam os partos, mas, mesmo assim, metade dos bebês morriam ao nascer, vítimas de doenças infecciosas, e algumas crianças morriam de forma precoce, antes de completar 5 anos; enquanto algumas pessoas, geralmente com mais posses, chegavam aos 60-70 anos. Perto da morte, a pessoa fazia um testamento, deixando um objeto, terras ou dinheiro para seus herdeiros. Acamado, é hora de confessar seus pecados e receber a extrema-unção de um sacerdote. Ao morrer, era enterrado no cemitério, que geralmente ficava no mesmo terreno de uma igreja.



Cena de um mercado urbano. Iluminura do livro O Cavaleiro Errante, França, 1400-1405.

Nos burgos, os hansenianos, portadores da lepra, o mal do Lázaro bíblicotemidos e tratados à distância, viviam nas ruas, sobrevivendo da caridade de alguma boa alma. Era obrigatório que estes, para avisar os transeuntes de suas presenças nas vias públicas, tocassem uma espécie de chocalho, sinos ou batessem palmas. Seja em Paris ou em Londres, a mendicância é fruto de doenças que incapacitaram a subsistência das pessoas; de ferimentos de guerra e de deficiências físicas. As doações de burgueses, nobres, membros do clero e, principalmente cavaleiros membros de ordens militares, deram origem aos hospitais, onde eram tratados, por monges e freiras, combatentes de guerra e membros menos favorecidos da sociedade medieval. A Abadia de Cluny, fundada em 910 na Borgonha, França, funcionou como um grande hospital, servindo de modelo para outros posteriores.

Os remédios eram os mais variados, indo de sanguessugas à magia de bruxas. Os Médicos, que criavam ou utilizavam antigos diagramas sobre o corpo humano, que continham informações sobre as veias que tinham alguma influência no funcionamento do sistema imunológico, acreditavam que o excesso de sangue no corpo fazia mal, utilizando sanguessugas para retirar o líquido não necessário; ou então incisões conhecidas como sangria. Para infecções e inflamações, cataplasmas com ervas, farelos, água e mostarda eram utilizados. Ervas, mel e água são passados em úlceras, ingeridos contra inflamações na garganta e problemas estomacais. As igrejas tornam-se muito frequentadas, tanto pelos enfermos quanto por seus familiares. Em última ocasião, bruxas, que na verdade são curandeiras, são consultadas e pagas para utilizar suas misturas e mágicas. O primeiro julgamento coletivo por bruxaria aconteceu em 1428, na cidade de Valais, na Suíça.
Os Banhos de Pozzuoli. Miniatura de Pietro da Eboli, século 13.

Nas casas a higiene fica a desejar. Geralmente, uma tinha abastecia todos os moradores da casa, que se banhavam por ordem etária, seguindo as recomendações das autoridades: banhos, uma única vez no ano, ou então a limpeza das mãos e do rosto. Na falta de uma tina, um pano úmido bastava. Os mais ricos abusavam de essências, maquiagem e de banhos a cada dois dias. São Francisco de Assis considerava a sujeira uma forma de penalizar o corpo e aproximar seu espírito de Deus (SZPILMAN, p. 77). Através de Francisco, percebemos a influência da religião nos cuidados mais básicos do habitante do medievo. As necessidades fisiológicas eram feitas em baldes, nas moitas ou em lugares afastados. Nas casas mais ricas e nos castelos existiam as latrinas, assentos com um buraco e uma fossa embaixo, que era esvaziada de tempos em tempos.

Os óculos, existentes desde a Antiguidade, foram aprimorados durante o século 13, quando passaram a ser produzidos com lentes corretivas, primeiro monóculos e depois Pince-Nez (óculos sem hastes). Era notável o efeito dessa invenção em olhos desgastados pela idade ou por atividades como a leitura em excesso, no caso de homens cultos. Com pinças e com um conhecimento teórico quase nulo, além de cortar cabelo e barba, barbeiros arrancavam dentes em feiras livres, espetáculos ou em casas dependendo das necessidades do cliente. Um diagnóstico errado fazia serem arrancados tanto dentes podres quanto dentes sadios. Os monges foram proibidos de realizar essas cirurgias no século 12.


Barbeiro dentista extraindo um dente utilizando um fórceps de prata e um colar de dentes. Londres, 1360-1375, da enciclopédia de James le Palmer.

Cirurgiões iam para os campos de batalha, onde retiravam, utilizando pinças de ferro, estilhaços e pontas de flechas ou de lanças dos combatentes. Membros quebrados eram enfaixados entre talas de madeira, para que os ossos ficassem retos enquanto sarassem. Em caso de loucura, dores, convulsões e fraturas no crânio, era feito um buraco na cabeça, para aliviar a pressão ou expelir a Dura-máter, uma das três meninges que envolvem o cérebro. Esse processo se chama Trepanação. Por fim, detritos líquidos e sólidos os pacientes eram examinados para diagnosticar a doença.

O homem é produto de seu tempo. Quem que viveu durante a Idade Média (476-1454) estava inserido em um período marcado tanto por avanços técnico-científicos significativos quanto pela força do poder eclesiástico. A vida era um constante embate de características bíblicas, com bem e mal eternamente em lados opostos, sendo muitas vezes determinada por condições econômicas ou pela sorte. O aproveitamento desse período fica nítido como a própria mudança nos padrões de higiene, vindos após catastróficas epidemias como a Peste Negra; o melhoramento ou evolução em áreas como a odontologia e a cirurgia; e na desmistificação de algumas doenças. O homem da Idade Média, assim como o homem atual (guardadas as devidas diferenças), não tem uma solução para todos os males, o que permite que o processo de aprimoramento não cesse, o que é benéfico para a evolução do mesmo.


FONTES:

FREITAS, Gustavo de. 900 textos e documentos de História. Lisboa: Plátano, s.d. 


MACDONALD, Fiona. Como seria sua vida na Idade Média?. Tradução de Maria de Fátima S. M. Marques. São Paulo: Scipione, 1996. (Coleção Como seria sua Vida). p. 34-35.


SZPILMAN, Marcelo. Judeus - Suas Extraordinárias Histórias e Contribuições para o Progresso da Humanidade. Rio de Janeiro: Mauad, 2012.


SCLIAR, Moacir. Medicina na Idade Média: Doutor Sinistro. Revista Aventuras na História, 01/11/2003.




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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

O Estado em questão - Etienne de La Boétie

Por Antonio José Loureiro


Étienne de la Boétie nasceu em Sarlat, em 1530, e faleceu em Germignan, em 1563. Foi amigo de Montaigne, traduziu Plutarco e Xenofonte e também escreveu sonetos. 

Ficou célebre por ter sido um dos primeiros a questionar a tirania dos governos, no seu livro “Discurso da Servidão Voluntária”, escrito por volta de 1549, e reeditado, em 1572, pelos calvinistas. Nele fez pela primeira vez a interrogação: “ Por que existe obediência ? ”.

Muitos autores falaram do Poder, de Deus, da Natureza, da Fôrça, do Povo e da Razão, e discutiram os méritos e os defeitos dos diferentes regimes de governo, mas esconderam o fato de que o comando de alguém provém da obediência de muitos, não se sabendo o por que disto e como isto é gerado.

O homem, como um ser pensante, poderia entrar em sociedade com os seus semelhantes, e isto seria o suficiente, mas acaba por se entregar à dominação. Por que milhões de pessoas aceitam receber ordens, às vezes absurdas, de terceiros ou de grupos? Seria por interesse? Mas qual o interesse em se deixar subjugar?

Enquanto Maquiavel achava que pouco importava ao príncipe ser odiado, desde que obedecido, De La Boétie opinava que ele seria sempre odiável, sob qualquer ponto de vista, e o povo deveria revoltar-se sempre. De La Boétie era contrário inclusive às utopias, formas sublimadas e ideais de Estado, pois elas representariam a dominação elaborada e mistificada. 

A subjugação ao Estado não se daria pelo fascínio do um e sim pela manipulação dos grupos de poder, que mantêm o seu prestígio através dele, criando toda uma estrutura mística, social, econômica, militar e política a seu favor, os chamados mecanismos de Estado. 

E os avanços ditos sociais, alcançados a partir do fim do século XIX, colocaram nas mãos dos governantes uma quantidade tão grande de recursos, que eles se tornaram capazes de comprar até o voto universal, mantendo-se indefinidamente no poder ao quebrar esta viga mestra da democracia, a alternância, pois podem distribuir benesses sociais capazes de interferir neste processo.

A luta dos políticos de se apossarem da mais valia, para comandarem a sua distribuição, foi por eles vencida. O Estado Brasileiro arrecadador, fiscal, escravo de dívidas externas e por elas mantido, vai continuar até que nada mais exista a expropriar do povo brasileiro e caiamos na cilada da estagnação total e final. Este seria o destino dos demais povos do Terceiro Mundo do endividamento, uma nova forma de neocolonialismo.

Como se livrar desses mecanismos de autodefesa do Estado, que mantem o indivíduo preso a essa cadeia de submissão através de um contrato social toda hora rompido, em que a cobrança de impostos é a forma de transformar qualquer cidadão em contraventor. Como fazer diante um desgoverno em que seus componentes entraram em acordo mútuo para manter a máquina do poder controlada por eles.

Esta servidão só seria quebrada pela chamada DESOBEDIÊNCIA CIVIL, de que foram líderes máximos na modernidade Marthin Luther King e Mahatma Ghandi, que seriam atos ilegais, mas públicos e simbólicos, para demonstrar que a população está definitivamente cansada de atos do Governo e que não mais quer submeter-se a ele. Para isso são necessário 6 elementos básicos:

1. Uma infração consciente e intencional, como os negros ao ocuparem espaços somente permitidos a brancos, nos Estados Unidos (Luther King), ou o ato simbólico de ir ao mar para produzir sal, um monopólio inglês,na Índia (Gandhi).
2. A luta pela modificação de uma regra ultrapassada.
3. A luta por princípios fundamentais constitucionais.
4. Ser um movimento coletivo atingindo todos os níveis da população.
5. Comunicação prévia às autoridades, para que saibam do desgosto popular.
6. Que o ato seja público.

O brasileiro está cansado de ser explorado por seus governantes, que acham estar governando um país de gente dominada e não de cidadãos livres. Os impostos acabam inviabilizando os pobres. Com eles só ganham, cada vez mais, os governantes e seus aliados, a nomenklatura.


Antonio José Loureiro, 75, é escritor, médico reumatologista e historiador. Nasceu em Manaus, em 06 de junho de 1940. Formou-se em Medicina na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. É membro (Presidente) do Instituto Histórico e Geográfico do Amazonas (IGHA), da Maçonaria do Amazonas, da Academia Amazonense de Letras e da Academia Amazonense de Medicina. É autor de Amazônia 10.000 anos, 1972; Síntese da História do Amazonas, 1978; A Gazeta do Purus, 1981; A Grande Crise, 1986; O Amazonas na Época Imperial, 1989; Tempos de Esperança, 1994; Dados para uma História do Grande Oriente do Estado do Amazonas, 1999; História da Medicina e das Doenças no Amazonas, 2004; O Brasil Acreano, 2004; e o Toque de Shofar.




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terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Aristóteles e as diferenças entre Poesia e História

Aristóteles representado na pintura A Escola de Atenas, de Rafael Sanzio.

Aristóteles, um dos pais da Filosofia Ocidental, abrangia em seu pensamento conhecimentos em Física, Retórica, Poesia, Ética, Artes, Biologia etc. Nesse texto, especificamente, iremos conhecer um Aristóteles que formulou leis para a arte poética, largamente utilizada por filósofos, dramaturgos e outros intelectuais de sua época. Mas, antes de formular tais leis, era preciso distinguir esse gênero literário de outro também bastante em voga: o gênero histórico. A diferença entre esses dois gêneros é traçada na obra Poética, pioneira na distinção entre o real e o fictício. Para melhor compreendermos, irei utilizar recortes desse livro.

"É claro, depois do que foi dito, que a característica do poeta não é de relatar o passado real, mas antes o passado possível, levando em conta as possibilidades dos acontecimentos segundo as verossimilhanças e a necessidade dos encadeamentos. O historiador e o poeta, com efeito, não diferem pelo fato de um narrar em verso e o outro em prosa - poder-se-ia ter transcrito em versos a obra de Heródoto e ela não seria menos história em verso do que em prosa. A verdadeira distinção é a seguinte: um narra o que aconteceu, o outro aquilo que poderia ter acontecido".

O poeta e o historiador não se distinguem pela forma como escrevem, um em verso e o outro em prosa, respectivamente. O historiador narra eventos que aconteceram, fixo em um tempo, enquanto o poeta escreve sobre aquilo que poderia ter acontecido, tendo liberdade para criar seus eventos, pois este tira a inspiração da natureza e do mundo a sua volta.

"Além disso, a poesia é mais filosófica e de um gênero mais nobre que a história, pois a poesia se eleva até o geral, enquanto que a história não é senão a ciência do particular. O geral, aquilo que este ou aquele tipo de homem faria ou diria segundo toda verossimilhança ou necessidade: é a isto que visa a poesia, embora dando nomes individuais aos personagens. O particular, é o que fez Alcibíades, ou aquilo que lhe aconteceu".

A poesia é produzida seguindo a lógica e um fim específico determinado por seu autor, que como já foi dito, tem a "liberdade criativa". A poesia, que valoriza os sentimentos humanos e as ações destes, pende para o dramático. A narrativa histórica não é determinada pelo historiador, mas sim pelo tempo e uma sequência de eventos nele inseridos. Juntamos a isso o fato de que o historiador narra as ações de Alcibíades no tempo, não importando seus sentimentos.

"Inteiramente diversos são os relatos históricos habituais, nos quais, necessariamente, não se trata de mostrar uma unidade de ação, mas somente uma unidade de tempo, juntando todos os acontecimentos, os quais, num determinado tempo, interessaram um ou mais homens e que não mantêm entre si senão uma relação casual".

O elemento primordial na narrativa histórica é o tempo, no qual estão diferentes eventos, estes sem ligação causal ou fim determinado. A poesia é composta de forma harmônica, para que todos os "fatos" inspirados do poeta tenha uma conexão entre si e componham um todo. Como exemplo temos o poema épico Odisséia, no qual a abordagem é o regresso de Ulisses para Ítaca, que levou cerca de 17 anos, terminando com sua chegada e o restabelecimento da ordem na mesma cidade.

Portanto, percebemos que as diferenças estabelecidas por Aristóteles em sua obra Poética, não se referem à forma da escrita, mas ao pano de fundo e da forma como narram ou relatam cada um dos profissionais dos dois gêneros. O poeta tem a liberdade de criar e imitar o mundo à sua volta. O historiador é rigoroso ao narrar os eventos que já aconteceram e estão fixos no tempo, se possibilidade de alterá-los. A poesia é escrita com o objetivo de proporcionar prazer aos leitores, enquanto o relato histórico é produzido para fins de registro de fatos ou eventos memoráveis, como escreveram autores clássicos como Heródoto e Tucídides.


FONTES:

ARISTÓTELES, Poética, 1451 a 36; 1451b, II; 1459 a 21-24. In: PINSKY, Jaime. 100 textos de História Antiga. 4° ed. São Paulo: Contexto, 1988, p.144.

MACHADO, Ronaldo Silva. História e Poesia na Poética de Aristóteles. Mneme, Revista de Humanidades. Vol I, n.1. - ago/set. de 2000. Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).


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sábado, 6 de fevereiro de 2016

O relato de Machado de Assis sobre o Carnaval no Rio de Janeiro Imperial

Entrudo Familiar, 1822. Augustus Earle.

"Era no tempo em que ao carnaval se chamava entrudo, o tempo em que em vez das máscaras brilhavam os limões de cheiro, as caçarolas d'água, os banhos, e várias graças que foram substituídas por outras, não sei se melhores se piores.

'Dois dias antes de chegar o entrudo já a família de D. Angélica Sanches estava entregue aos profundos trabalhos de fabricar limões de cheiro. Era de ver como as moças, as mucamas, os rapazes e os moleques, sentados à volta de uma grande mesa compunham as laranjas e limões que deviam no domingo próximo molhar o paciente transeunte ou confiado amigo da casa.'...

... 'No momento em que tomamos conhecimento com a família Sanches estão eles em boa harmonia despejando cera dentro das fôrmas de limões ou enchendo os que já estão prontos com água de cheiro....Vinham para a mesa as caçarolas cheias de cera derretida, e todos aqueles operários mergulhavam nelas os limões e as laranjas, ou despejavam cera dentro de fôrmas de pau."

Um dia de entrudo, Machado de Assis. 1874.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Estudos sobre o Mundo Grego - da Antiguidade ao século XVIII

Via Appia. Frontispício do segundo tomo de Antiguidades Romanas (1756) de Piranesi.

A Grécia Antiga, região geográfica compreendida pelo sul dos Bálcãs (Grécia Continental), a Península do Peloponeso (Grécia Peninsular), as ilhas do Mar Egeu (Grécia Insular) e as colônias estabelecidas na Ásia Menor e Península Itálica (Magna Grécia), sempre despertou a curiosidade de especialistas e amadores, seja por suas fantásticas ruínas históricas, ainda visíveis em algumas cidades da Europa, a língua, a Filosofia e a literatura, que influenciaram fortemente desde sábios da Idade Média até autores contemporâneos. Os romanos, conquistadores dos territórios gregos, demonstraram um forte interesse por essa sociedade.

Antes de incorporar os territórios gregos ao seu império, Roma já possuía uma forte influência da cultura helênica, transmitida através de trocas comerciais e de batalhas travadas entre o Império e diferentes cidades-estado gregas. A conquista apenas veio para consolidar um processo que já estava há muito tempo em andamento. Como Roma preservava a língua, a religião e algumas instituições políticas dos territórios que conquistava, o helenismo sobreviveu e passou a fazer parte da sociedade romana. Artistas, médicos, professores de Filosofia e Retórica, alguns como escravos, ensinavam romanos abastados. Atenas permaneceu com a sua posição de centro intelectual; e os romanos cultos dominavam e liam a língua grega. Os deuses romanos eram semelhantes às divindades helenas, diferenciando-se apenas nos nomes.

Foi ainda na Antiguidade que surgiram os primeiros estudos sobre a Grécia, estes produzidos por romanos e gregos de cidadania romana. Plutarco (46 d.C. - 120 d.C.), um grego de cidadania romana, viajou por muitas cidades gregas sob jugo romano, produzindo uma obra variada, destacando-se Vidas Paralelas, um compêndio de biografias de grandes personagens greco-romanos. Ao abordar a vida dos personagens espartanos Licurgo, Lisandro, Agesilau, Ágis e Cleômenes, Plutarco nos apresenta a evolução histórica da cidade de Esparta dos tempos arcaicos até o helênico¹.

O geógrafo e viajante grego Pausânias (c, de 115 d.C. - c. de 180 d.C.) elaborou um Guia da Grécia, no qual descreve monumentos, templos, obras de arte, história, geografia, costumes e mitos da Grécia Continental e do Peloponeso. Além de visitar pessoalmente cada uma dessas cidades, Pausânias teve como fontes relatos de viagem e autores gregos anteriores. Sua obra é dividida em dez livros: 1-Ática e Megárida, 2-Corinto, 3-Lacônia, 4-Messênia, 5 e 6-Élida, 7-Acaia, 8-Arcádia, 9-Beócia, 10-Fócida e Lócrida Ozoliana.

Durante o período que ficou conhecido como Humanismo, uma transição da baixa Idade Média para a Idade Moderna (séculos 14 e 16), intelectuais das cidades-estado italianas, enriquecidas pelo comércio e politicamente instáveis, viram na cultura-greco romana modelos artísticos e políticos a serem seguidos. Patrocinado por nobres italianos e pelo Papa Eugênio IV, o humanista, arqueólogo e viajante Ciríaco de Ancona (1391-1455), ao estudar inscrições gregas em monumentos, inaugura uma nova ciência auxiliar da História, a Epigrafia. Além de estudar inscrições, Ciríaco foi um grande colecionador de relíquias, códices e documentos clássicos, compilados em obras como Comentários, dividida em 6 volumes, arruinados em 1514; Itinerário (1742); e Epigramas encontrados em Ilírico por Ciríaco de Ancona (1664).

Um desenho de Ciríaco representando uma antiga tumba romana.

Na época de Ciríaco, os monumentos e templos gregos tinham ganho outras funções: Mansões, Castelos particulares, fortalezas, estábulos e igrejas. Muitos escritos, cópias e obras de autores gregos se encontravam preservadas em mosteiros e abadias, onde eram recopiados e estudados por sábios. No século 18, as ruínas eram um prato cheio para saqueadores vindos da França, da Inglaterra e de cidades do Oriente, patrocinados ou interessados nos ganhos vindos com a venda das peças. O contrabando era destinado para coleções particulares, muitas das quais podem ser vistas hoje em museus da Europa e em alguns da América do Norte. Eruditos iluministas, patrocinados ou independentes, passaram a fazer pesquisas e escavações em antigas cidades gregas. O arqueólogo alemão Johann Joachin Winckelmann (1717-1768) era especialista em História da Arte, defendendo, em suas obras, os princípios e a superioridade das técnicas, do ideal de beleza das artes gregas. Sua obra magna é História da Arte Antiga (1764).

O desenho que ilustra o início desse texto é de autoria de veneziano Giovanni Battista Piranesi (1720-1778), gravurista, arquiteto, engenheiro e arqueólogo italiano. Ainda jovem, teve contato, no Sul da Itália, com inúmeras ruínas gregas, das quais fazia reconstituições, desenhos e tirava modelos para obras arquitetônicas e paisagísticas. Seus desenhos e estudos de arte clássica, além de preservarem o conhecimento da Grécia Antiga, influenciaram diversos artistas Neoclássicos pela Europa, que buscavam um movimento em oposição ao rococó. Antiguidades Romanas (1756) reúne mais de uma centena de águas-fortes (técnica gravurista) dos monumentos de Veneza, Roma e cidades do Sul da Itália.


¹ SILVA, Maria Aparecida de Oliveira. Plutarco historiador: análise das biografias espartanas. São Paulo: Edusp, 2006. p. 186.


FONTES:

Atlas of the Greek World. Grandes Impérios e Civilizações - Grécia, berço de Ocidente Vol I. Tradução de Ana Berhan da Costa. Rio de Janeiro: Edições del Prado, 1996.

Grécia Antiga - Disponível em: http://greciantiga.org/


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terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Os Evangelhos

Por Antonio José Loureiro


As quatro criaturas aladas que simbolizam os Quatro Evangelistas - Anjo (Mateus), Leão (Marcos), Touro (Lucas) e Águia (João) - ao redor do Cristo em Glória, na Igreja de São Trofime, em Arles.

O Novo Testamento está constituído por quatro Evangelhos, sendo três sinóticos, muito semelhantes entre si, e o de João Evangelista, mais profundo.

O mais antigo deles seria o de Marcos, escrito entre os anos de 65 e 70 da nossa era, interpretando os conhecimentos de Pedro. O autor acompanhou Paulo, na sua primeira viagem, visitando Chipre e Roma, onde os seus escritos foram muito difundidos entre os convertidos de origem romana. Marcos é representado por um leão, símbolo do elemento fogo.

Simbolizado pelo homem, Mateus é o elemento água. Foi um coletor de impostos, em Cafarnaum, sendo o mais judaico dos quatro autores, e talvez por isso se diga: Mateus, primeiro os meus...Escreveu a vida de Cristo, entre os anos de 75 e 80. Para ele Jesus seria um novo Moisés. Lucas, o touro, a terra, foi um médico acompanhante de Paulo em suas viagens. Talvez tenha nascido em Antióquia, sendo um judeu helenizado, daí o seu Evangelho tornar-se o mais querido dos gregos. Foi escrito entre 75 e 80 d. C. e difundiu a Ressurreição e a opção pelos pobres e humildes.

João Evangelista, a águia de Cristo, o ar, terminou de escrever o Evangelho especial, no ano 95. Pregou em Éfeso, sendo influenciado pela filosofia grega e pelo gnosticismo pré-cristão. O seu Evangelho é o mais esotérico de todos, talvez por ter sido escrito em uma época posterior aos demais.

João também foi o autor do Apocalipse, compêndio escatológico tratando dos últimos dias, do Juízo Final, da volta de Cristo e da Jerusalém Celeste, escrito entre 90 e 95, e dirigido às Sete Igrejas da Ásia Menor, um livro rico em alegorias, simbolismos e numerologia, com aterrorizantes quadros e um fortíssimo chamamento para a regeneração. O seu primeiro versículo por muito tempo abriu as sessões da Maçonaria.

Além desses quatro Evangelhos muitos outros existiram, suprimidos com o tempo, a medida que a religião evoluía, ou quando considerados sem sustentação. São os chamados Evangelhos Apócrifos, alguns perdidos, outros reencontrados entre os coptas do Alto Egito, restos de uma tradição que permanece viva, coexistindo com islamismo, naquele país. Outros desapareceram na luta entre as igrejas de Pedro-Paulo e a dos dois Joões.


Antonio José Loureiro, 75, é escritor, médico reumatologista e historiador. Nasceu em Manaus, em 06 de junho de 1940. Formou-se em Medicina na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. É membro (Presidente) do Instituto Histórico e Geográfico do Amazonas (IGHA), da Maçonaria do Amazonas, da Academia Amazonense de Letras e da Academia Amazonense de Medicina. É autor de Amazônia 10.000 anos, 1972; Síntese da História do Amazonas, 1978; A Gazeta do Purus, 1981; A Grande Crise, 1986; O Amazonas na Época Imperial, 1989; Tempos de Esperança, 1994; Dados para uma História do Grande Oriente do Estado do Amazonas, 1999; História da Medicina e das Doenças no Amazonas, 2004; O Brasil Acreano, 2004; e o Toque de Shofar.



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sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

A Historiografia da Conquista II - Mestiços e Indígenas na América Espanhola

Cena da primeira página do Códice Mendoza, representando a fundação da cidade de Tenochtitlan.

No primeiro texto, vimos como portugueses e, em especial os espanhóis, produziam historiografia sobre o Novo Mundo. Agora, nessa segunda parte, vamos entender como mestiços e indígenas passaram a escrever suas histórias após o contato com os espanhóis.

Os nativos, ao contrário do que alguns historiadores espanhóis acreditavam, tinham consciência de seu passado histórico e sabiam ordená-lo: dividiam seus escritos entre os destinados à realeza e os destinados à população comum; separavam fontes orais de escritas e pictóricas; e cronistas de historiadores. Dos espanhóis, os mestiços e indígenas utilizaram a língua, os gêneros de escrita e a cronologia cristã.

Um dos primeiros autores nativos a mesclar tanto conhecimentos históricos indígenas com europeus foi o nobre asteca Chimalpahín, autor de Relaciones ou Anais. Em seu livro, ele usa tanto a datação do calendário cíclico asteca quanto a datação cristã Anno Domini. Ele cobre períodos anteriores e posteriores à conquista espanhola, reis antigos do México, Listas de arcebispos, etc; consultando para tal os testemunhos de anciãos. Ele também aborda eventos ocorridos na Europa, como o assassinato do Rei Henrique IV da França, em 1610. A escrita de Chimalpahín era em Nahuatl, com o uso de algumas palavras em espanhol.

O mestiço Alva Ixtlixóchitl escrevia tanto em espanhol quanto em Nahuatl. Criticou os excessos espanhóis contra os nativos e elogiou a introdução do Cristianismo na região. Como fontes, usa os códices indígenas e os relatos dos anciãos. Sua história, além de abordar a conquista, também cobre o período antigo do México, como o governo dos olmecas.

O aristocrata mestiço Garcilaso de la Vega e o nativo andino Felipe Guaman Poma de Ayala são os dois maiores exemplos da nova geração de historiadores da América Espanhola (séculos 16 e 17), que passaram a utilizar conhecimentos europeus e nativos para produzir suas obras. Garcilaso, que passou boa parte de sua vida na Europa, escrevia seus trabalhos em forma de prosa e em castelhano. 

Garcilaso usava discursos inventados (afirmava que os nativos tinham se convertido voluntariamente ao Cristianismo) e informações de historiadores espanhóis antigos como Gómara, José de Acosta e Cieza de León. Apesar de criticar as ações espanholas no Peru, Garcilaso tenta conciliar esses dois povos, dizendo que estes tem muito em comum. Da sua origem inca, teve muitas informações orais a sua disposição, bem como materiais escritos. Escreveu Comentários Reais (1609); a Flórida de Inca (1605), relato sobre uma expedição espanhola no que é a atual região da Flórida e a Costa do Golfo; e História Geral do Peru (1617).

Guaman Poma de Ayala, nativo andino de origem humilde, dominava o quíchua e o castelhano. Escreveu Primeira Nova Crônica e bom governo, utilizando informações de historiadores antigos como Las Casas, Acosta e Zárate. Seu livro traz muitos elementos da cultura nativa. O índice de conteúdos e dividido de acordo com o sistema decimal andino;e a narrativa é empregada para explicar as figuras. Seu livro inicia com uma descrição do Peru, depois uma história bíblica sobre os incas; passando para o governo espanhol no Peru, no qual temos críticas ao governo, aos clérigos e aos pecados de nativos e estrangeiros

Em síntese, temos como características da historiografia nativa e mestiça: uso de conhecimentos europeus como a língua espanhola, a cronologia cristã e os gêneros de escrita (anais, crônicas e histórias); uso de conhecimentos indígenas (códices, relatos de anciãos e cronologia como o quipo ou o calendário cíclico) e defesa do ponto de vista do conquistado.


FONTES:

WOOLF, Daniel. Uma História Global da História. Tradução de Caesar Souza. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.


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