terça-feira, 9 de agosto de 2016

O processo de conversão da Europa ao Cristianismo

Para falarmos do início da caminhada do Cristianismo na Idade Média, precisamos voltar um pouco ao passado, mais precisamente entre o início e o final do século IV. Nesse período, duas datas são importantes para que essa religião originária do judaísmo ganhe o status de que desfrutará séculos depois: O ano de 312, quando o imperador Constantino se converte, por razões políticas, ao cristianismo, e cessa as perseguições contra os praticantes desse culto; e 392, quando o imperador Teodósio torna o paganismo ilegal e transforma o cristianismo em única religião praticável no Império.

Paz e legalidade. O Cristianismo tinha, agora, um terreno favorável para se expandir pelo Império e outras áreas fronteiriças. Aproveitando-se das antigas estruturas imperiais, a Igreja vai se consolidando como um elemento de força local, por meio das dioceses, antiga unidade administrativa de uma cidade ou uma província governada pelo legatus. As dioceses, que possuem o aval do imperador para funcionar, são governadas pelo bispo, que tem em sua mão uma grande extensão urbana e rural. Em regiões que foram romanizadas no passado, como a Itália e a Gália do Sul, surgem redes densas de pequenas dioceses. Ao Norte, onde a malha urbana era mais antiga, as dioceses são menos numerosas e mais extensas.

Cristo retratado como um imperador, usando vestes militares. Mosaico em Ravena.

Politicamente e ideologicamente, os imperadores romanos passam a se favorecer com o novo culto, associando suas imagens com a de Jesus Cristo, igual como ocorria no culto pagão, com uma divindade principal do panteão. Dessa época, existe uma rica iconografia que atesta essa associação.

O Império já não é mais uma ameaça para os cristãos. Porém, surge um novo inimigo: os povos germânicos que começam a atravessar as fronteiras são, em sua maioria, pagãos. Mesmo os que já estavam convertidos representavam uma ameaça, como os Visigodos, ostrogodos e vândalos, seguidores do Cristianismo Ariano, considerado uma heresia pela população e pelo clero dos locais onde se instalavam. Clóvis, que unificou o povo franco sob um reino, converteu-se ao catolicismo em 508, recebendo, com isso, apoio dos bispos em suas campanhas militares contra os visigodos arianos. Recaredo, rei da Espanha visigótica, se converte ao catolicismo em 587.

São Patrício, missionário e padroeiro da Irlanda.

O paganismo perdura por um bom tempo no Noroeste da Europa. No século V foi realizada uma missão para evangelizar a ilha Irlanda. Mesmo penetrando a região nesse século, o Cristianismo só se tornará a religião oficial da ilha no final do século VI. No continente, o passado pré-cristão dá lugar a uma mistura original entre uma cultura romano-cristã (externa) e a uma cultura celta (local).

Pagão ganha o sentido que conhecemos nos dias de hoje. Mas, ainda sim, de acordo com os escritos Orósio, ele é o homem do campo. O paganismo é considerado um culto rural atrasado, visto com desprezo pelos homens da cidade. Para os cristãos, os deuses antigos existem, mas não são divindades, e sim demônios que precisam ser caçados. Essa associação marcará a propagação da nova religião contra o paganismo. O batismo funciona como uma das formas para renegar satã e expulsar essa forças diabólicas. O exorcismo é praticado em larga escala pelos clérigos. Soma-se a essas práticas a destruição de antigos templos politeístas.

É necessária a dessacralização da natureza e a valorização do elemento humano. O culto dos santos cumpre a função de substituir os antigos elementos pagãos presentes na natureza. O culto dos santos se mostra uma arma poderosa na luta contra o paganismo, pois torna o processo de conversão mais maleável, dessacralizando antigos símbolos pagãos e substituindo-os por imagens cristãs. São frequentes as iconografias de santos abatendo bestas.

O processo de conversão ocorre de forma lenta nos reinos anglo-saxões. A primeira missão evangelizadora foi enviada à região em 597, por ordens de Gregório, o Grande. O rei de Kent, Etelberto, assim como milhares de anglos, é batizado. O rei assemelha o momento à figura de Constantino, que se converte após receber um sinal de Deus na Batalha da Ponte Mílvia. O desafio da missão é encontrando em Edwin, rei de Northumbria, que se converte apenas em 628. Em 632, ano de sua morte, o Cristianismo entra em ruína em seu reino. Na História eclesiástica do povo inglês, de 731, o Venerável Beda relata que o processo de conversão da Bretanha insular foi concluído, ou seja, dois séculos após o início do processo.

O Batismo da Polônia, de Jan Matejko.

O avanço do Cristianismo no Norte é ainda mais lento. Vilibrodo, no fim do século VII, inicia a conversão dos frisões situados no Norte da Gália, consolidando uma zona fronteiriça para os soberanos francos. Bonifácio, com apoio dos reis francos e do pontífice romano, é enviado como bispo missionário das igrejas da Germânia, favorecendo-se das campanhas militares dos francos contra os saxões do Leste, pagãos. Consegue estabelecer a religião na Bavária e na renana, onde funda o monastério de Fulda. As conquistas de Carlos Magno vão assegurar de fato a conversão dos saxões.

O Cristianismo triunfa na Europa no século X, quando são convertidas as últimas regiões com focos de cultos pagãos. A Polônia é convertida em 966; o rei Estevão I, da Hungria, é batizado em 985; Haroldo Dente Azul, da Dinamarca, é batizado em 960; Olavo Tryggveson da Noruega em 995, e Olavo da Suécia em 1008. Por um referendo popular, a Islândia se converte no ano 1000.


FONTE:

BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo Editora, 2006.


CRÉDITO DAS IMAGENS:

commons.wikimedia.org
thehistoryofthebyzantineempire.com
http://polishpoland.com/




sábado, 6 de agosto de 2016

Resenha: Narradores de Javé (2004)



Lançamento: 2004
Direção: Eliane Caffé
País: Brasil


O Filme Narradores de Javé (2004), guardadas as devidas proporções, nos lembra do método histórico, do longo caminho que o historiador trilha até dar corpo à sua pesquisa. Num primeiro momento, o escrivão Antônio Biá, nosso “historiador”, já possui um tema definido para sua pesquisa: a história do povoado de Javé. Definido o tema, a próxima etapa de Antônio é verificar se existem fontes disponíveis para a realização de seu trabalho. Em um povoado onde estão ausentes qualquer forma de documentos ou outros registros escritos, serão as histórias dos moradores, seus relatos, as principais fontes de informação.

Outro elemento importante é o fato de que o historiador não é um ser neutro, e que os documentos, sejam eles materiais ou imateriais (as histórias dos moradores) também não são. Ao receber as primeiras histórias, Biá fica insatisfeito com a “importância” de algumas, e sugere algumas alterações para engrandecê-las. Os moradores que dão suas versões da fundação da cidade se mostram orgulhosos com elas. Nos são apresentadas três versões vindas de três lugares sociais diferentes: O primeiro vem de um descendente do fundador, homem destemido, de Javé; O segundo, também de um descendente, a moradora Mariardina, conta que a fundação se deu pelas mãos da heroína Maria Dina; O último vem de um narrador negro, descendente de escravos, e cujo fundador é Indaleô.

Esses registros nos lembram que, até em um diminuto povoado fictício como Javé, existem verdadeiras “guerras da história”, um conflito simbólico entre as diferentes versões que serão legitimadas para a contar a fundação da cidade. As versões de um homem; de uma mulher e de um descendente de escravos. Conflitantes em gênero e classe social.

Depois de reunidas as fontes, o historiador deve assegurar a confiabilidade destas. Esse é um ponto interessante do filme: Biá, assim como os demais moradores, ficam cientes que os funcionários da represa pediram uma história “científica”, e fica em dúvida se as histórias destes, para ele fantasiosas, estão enquadradas nesse quesito. Vemos que o conceito de fonte histórica se alargou com o tempo, estando incluídos, desde o início do século XX, a oralidade, as manifestações culturais e religiosas e outros elementos não necessariamente escritos. Mas ainda são muitos aqueles que produzem história exclusivamente com registros escritos em arquivos públicos ou particulares.

A última etapa do processo histórico é a redação. Antônio Biá, funcionário de uma filial dos correios, é o único habitante de Javé que possui um certo domínio da escrita. Esse diferencial de Biá nos remete ao conceito básico de Historiografia, a escrita da história. Ele, por dominar a escrita, é o único elemento apto a registrar a história do povoado. Assim, nos parece que os únicos registram a história, que a possuem, são aqueles que escrevem. Mas, emprestando alguns dizeres de Carbonnel (1992, p. 7), devemos estar cientes que nenhum grupo é amnésico. Para qualquer grupo recordar-se é existir; perder a memória é desaparecer”. Isso fica claro quando alguns moradores dão depoimentos para um funcionário que os está filmando: “Aqui estão enterrados meus antepassados, meus filhos que já morreram”. A História não é uma exclusividade das sociedades letradas, ela apenas assume outras formas dependendo dos mecanismos encontrados por outras culturas (iletradas) para sua preservação.

Biá, com inúmeras dificuldades para realizar sua pesquisa, escolher qual história deve ser registrada, termina entregando um livro em branco, sem a tão esperado história de Javé. Essa desistência nos faz lembrar da dificuldade do trabalho do historiador, pois todos os elementos do processo histórico, num primeiro momento, são desafios para o profissional da história. O “progresso” chega, inundando o povoado.

Zaqueu, antigo morador do povoado e narrador do filme, vem nos apresentando o drama de Javé desde a notícia da construção da represa até o momento fatídico de sua destruição. Percebemos, então, que a história de Javé, mesmo com o seu desaparecimento, continua existindo, não em forma escrita, mas como sempre foi desde seus primórdios, de forma oral, circulando entre seus habitantes e, agora, ex-habitantes.

Por último, vamos nos lembrar do título do filme: Narradores de Javé. O filme é isso, uma gama de narrativas, de opressores e oprimidos. Uma luta para reunir essas histórias em um livro, de dar importância a um lugar praticamente esquecido no tempo, mas que luta para continuar existindo à sua própria maneira. Os relatos desses moradores podem não ser considerados a “versão oficial”, mas são as versões particulares de uma sociedade construída sob suas próprias concepções e vivências.


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quinta-feira, 28 de julho de 2016

Análise reflexiva sobre a pintura O Historiador (1902), de Irving Couse

O Historiador (1902), pintura do americano Eanger Irving Couse.

No presente texto farei a análise de uma pintura, relacionando seus elementos com o conhecimento adquirido durante as aulas de Historiografia Geral I e II, ministradas pelo professor Auxiliomar, da Universidade Federal do Amazonas, com foco na reflexão sobre as formas que diferentes sociedades criaram para registrar e transmitir suas histórias.

O Historiador (1902) é uma pintura do americano Eanger Irving Couse (1866-1936), famoso por produzir quadros retratando índios norte-americanos do Novo México e do Sudoeste do país. Essa pintura me chamou atenção não apenas pelo título e pelos elementos nela representados, mas em especial por me fazer relembrar das primeiras aulas da disciplina Historiografia Geral, ministrada pelo mestre Auxiliomar Silva Ugarte.

No trabalho de Irving temos retratados dois indígenas, um adulto e outro jovem. Não consegui identificar a qual etnia pertencem, mas podem ser Taos ou Pueblo, os mais registrados pelo autor. O primeiro está registrando, por meio de desenhos feitos no que parece ser um pedaço de couro, a história de uma batalha de sua tribo contra soldados americanos. São identificáveis as figuras de um cavalo, alguns soldados em posição de ataque e outros mortos, nativos na mesma situação, flechas e balas. O jovem parece observar com atenção esse processo e, em uma leitura simbólica, será a próxima geração encarregada de registrar novos acontecimentos e relembrar os que lhe foram transmitidos.

Historiografia (história+grafia), em uma definição bem básica, é a escrita da história. Desde as épocas mais remotas as sociedades desenvolveram formas de registrar suas ações no espaço e no tempo. Como exemplos, podemos citar o grego Heródoto, que escreve história [..] para que nem os feitos dos homens, com o tempo, se reduzam ao esquecimento, nem as obras grandes e admiráveis - tanto as realizadas pelos gregos quanto as realizadas pelos bárbaros - fiquem sem glória e as demais coisas por causa das quais foi o motivo de guerrearem uns com os outros" 1; e os primeiros autores cristãos, que viam na escrita uma forma de preservar os ensinamentos de Jesus Cristo e defender a sua fé (apologia).

Ambos, cronologicamente separados por alguns séculos, tinham suas próprias visões de mundo. Eduardo Natalino dos Santos, citando Alfredo López Austin, define visão de mundo como […] “um conjunto articulado de sistemas ideológicos, relacionados entre si em forma relativamente congruente, com a qual um indivíduo ou grupo social, em um momento histórico, pretende apreender o universo”2. Esses homens, gregos ou cristãos medievais, registravam o momento que viviam, baseados em seus anseios pessoais ou coletivos (o encadeamento cíclico dos fatos, para os gregos; e o eminente apocalipse, para os cristãos) . Eram produtos de sua própria época. A historiografia está em constante produção, sendo alterada diariamente, seja pelas transformações sociais, teóricas ou metodológicas.

apresentada uma breve noção do que é historiografia, podemos voltar ao quadro. Vemos que ela é a escrita da história. Nesse sentido, têm-se a ideia de que as únicas sociedades que possuem história são aquelas com domínio da escrita. Como fica, então, o nosso historiador da pintura, visto que ele é um indígena e está utilizando como registro pinturas rústicas, uma técnica comum nas sociedades primitivas? De fato, ela não está produzindo uma historiografia tradicional, um registro escrito, mas isso não quer dizer que ele não tenha noção de seu passado. O historiador francês Charles-Olivier Carbonell, no contexto das reformulações feitas pela Escola dos Annales, afirma que

[…] “nenhum grupo é amnésico. Para qualquer grupo recordar-se é existir; perder a memória é desaparecer. Não ultrapassou o homem a animalidade quando com o auxílio das palavras conseguiu acrescentar a uma memória instintiva, programada mesquinhamente para a ilusória eternidade da espécie, a memória cultural única capaz de exorcizar a morte e fundar a hereditariedade dos saberes?”3.

Auxílio das palavras, memória cultural e hereditariedade dos saberes. Emprestando essas palavras de Carbonell, podemos compreender como o indígena retratado na pintura produz história: Ele, à sua maneira, registra por meio de desenhos um fato que marcou seu povo (a guerra contra os americanos). Aliado a isso têm a oralidade, uma poderosa arma na transmissão e preservação de conhecimento para as próximas gerações. Os desenhos, os relatos, expressarão sua visão de mundo no momento da produção, trarão discursos visíveis e outros nem tanto. Não será considerada a versão 'oficial' de um fato, mas é a versão particular de uma sociedade construída sob suas próprias concepções e vivências.

Portanto, a pintura O Historiador e os elementos nela representados nos lembram de dois pontos importantes para o conhecimento histórico no campo da Nova História: primeiro, com a ausência de documentos escritos, o historiador pode e deve recorrer a outros tipos de fontes, como manifestações culturais, a oralidade, os mitos, as lendas, as ruínas antigas, as poesias e as palavras. O bom historiador vê possibilidades de trabalho em uma paisagem, no caminhar de uma pessoa, nos diálogos do cotidiano. Por último, a construção de uma narrativa histórica não é exclusiva das sociedades letradas, pois as culturas mais primitivas desenvolveram outras técnicas de representar suas percepções de mundo.


NOTAS:

1SOUSA, Paulo Ângelo de Meneses. Memória histórica e narrativa em Heródoto. Revista Humanitas, UFPI, 2009, P. 84.

2SANTOS, Eduardo Natalino dos. Tempo, Espaço e Passado na Mesoamérica. São Paulo, Alameda, 2009, p. 45.


3CARBONELL, Charles-Olivier. Historiografia. Lisboa, Teorema, tradução de Pedro Jordão, 1992, p. 7.


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terça-feira, 19 de julho de 2016

Prefácio dos Estudos Históricos de René Chateaubriand (III)

François-René de Chateaubriand. Pintura de Anne-Louis Girodet de Roussy-Trioson.

Terceira e última parte da série de postagens Prefácio dos Estudos Históricos de René Chateaubriand, no qual o autor romântico discorre sobre os temas Escola Histórica da Alemanha, Filosofia da história e a história na Inglaterra e na Itália.

Escola Histórica da Alemanha. Filosofia da história. A história na Inglaterra e na Itália

Próximos a nós, enquanto fundávamos nossa escola política, a Alemanha estabelecia suas novas doutrinas e nos ultrapassava nas altas regiões da inteligência: ela fazia entra a filosofia na história, não essa filosofia do século XVIII, que consistia em lavrar sentenças morais ou antirreligiosas, mas essa filosofia que procura a essência dos seres; que, penetrando o envelope do mundo sensível, procura se não há ali sob esse envelope alguma coisa mais real, mais viva, causa dos fenômenos sociais.

Descobrir as leis que regem a espécie humana; tomar por base de operações as três ou quatro tradições disseminadas entre todos os povos da Terra; reconstruir a sociedade sobre essas tradições, da mesma maneira que se restaura um monumento a partir de suas ruínas, seguir o desenvolvimento das ideias e das instituições nessa sociedade; assinalar suas transformações, indagar à história se não existe na humanidade algum movimento natural, o qual, manifestando-se em épocas fixas nas posições dadas, pode fazer predizer o retorno desta ou daquela revolução, como se anuncia a reaparição dos cometas cujas curvas foram calculadas: esses são interesses imensos. Quem é o homem? De onde vem? Para onde vai? Que veio fazer aqui? Quais são seus destinos? Os arquivos do mundo forneceriam respostas para essas questões? Existe em cada origem nacional uma idade religiosa? Dessa época passa-se para uma época heroica? Dessa época heroica a uma época social? Dessa época social a uma época propriamente humana? Dessa época humana a uma época filosófica? Existe um Homero que canta em todos os países, em diferentes línguas, no berço de todos os povos? A Alemanha se divide sobre tais questões em dois partidos: o partido filosófico e o partido histórico.

O partido filosófico-histórico, à cabeça do qual se coloca Hegel, pretende que a alma universal se manifesta na humanidade por quatro modos: um substantivo, idêntico, imóvel, é encontrado no Oriente; outro individual, variado, ativo, encontra-se na Grécia; o terceiro se compõe do dois primeiros numa luta perpétua e existiu em Roma; o quarto sai da luta do terceiro para harmonizar o que estava diverso: existe nas nações de origem germânica.

Assim o Oriente, a Grécia, Roma, a Germânia oferecem as quatro formas e os quatro princípios históricos da sociedade. Cada grande massa de povos, colocados nessas categorias geográficas, tira de suas posições diversas a natureza de seu gênio, o caráter de suas leis, o gênero de eventos de sua vida social.

O partido histórico se atém somente aos fatos e rejeita toda fórmula filosófica. Niebuhr, seu ilustre chefe, cuja perda recente foi deplorada pelo mundo letrado, compôs a história romana que precedeu Roma; mas não reconstruiu seu monumento ciclópico em torno de uma ideia. Savigny, que seguiu a história do direito romano desde sua época poética até a época filosófica à qual chegamos, não procura mais o princípio abstrato que parece ter dado a esse direito uma espécie de eternidade.

A escola filosófico-histórica de nossos vizinhos procede, como se vê, pela síntese, e a escola puramente histórica, pela análise. Estes são os dois métodos naturalmente aplicáveis à ideia e à forma. A escola histórica diz que o fato coloca em movimento o espírito humano: esta última escola reconhece ainda um encadeamento providencial na ordem dos eventos. Essas duas escolas tomam na Alemanha o nome de sistema racional e sistema supranatural.

Afinadas com as duas escolas históricas, marcham duas escolas teológicas que se unem às duas primeiras segundo duas diversas afinidades. Essas escolas teológicas são cristãs; mas uma faz sair o cristianismo da razão pura; a outra, da revelação. Nesse país onde tantos altos estudos são levados tão longe, não ocorre a ninguém que a falta da ideia cristã na sociedade seja uma prova dos progressos da civilização. [...]


FONTE GERAL DA SÉRIE DE POSTAGENS:

MALATIAN, Teresa. Chateaubriand. In: MALERBA, Jurandir. Lições de história: o caminho da ciência no longo século XIX. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. pp 113-131.

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terça-feira, 12 de julho de 2016

Construindo a Idade Média

1° imagem: parte da pintura O triunfo da morte (1562), de Peter Bruegel. 2° imagem: Catedral Gótica de Orvieto, Itália.

Texto produzido a partir de exercício avaliativo sobre História Medieval I ministrado pelo Professor Dr. Sínval Carlos Mello Gonçalves como primeira nota da disciplina.

Aprendemos no ensino básico que a Idade Média é uma parte da História da Europa que vai do século V ao século XV. O ano de 476, com a queda do Império Romano do Ocidente, é o marco inaugural; e o fim ocorre em 1453, quando os turcos otomanos tomam Constantinopla, capital do Império do Oriente. Vez ou outra, um professor ou professora podem se referir a esse milênio de história europeia como a “Idade das Trevas”, marcada pela supremacia e opressão da Igreja e por crises e guerras. Outros, no entanto, podem fazer o contrário, se referindo a esse recorte histórico como uma época de avanços técnicos, de fabulosas produções artísticas e de valorização das tradições. O objetivo desse texto é justamente esse: entender como foram construídas, ao longo dos séculos, diferentes imagens desse período histórico.

O nome que esse período recebe, Idade “Média”, já carrega um estigma, como se este fosse algo menor entre a Antiguidade Clássica e a Idade Moderna. Em 1469, o bibliotecário do Vaticano e humanista Giovanni Andrea, cunhou o termo Idade Média (medium aevum, media tempestas, mediae aetas), uma idade do médio, intervalo entre a Antiguidade Clássica, período de esplendor cultural para os humanistas, e a Idade Moderna, tempo em que viviam, marcado por inovações e revalorização da cultura greco-romana. Francesco Petrarca (1304-1374) em seu poema épico África, utilizou a palavra escuridão para se referir à sua época.

Ela surge como instrumento historiográfico no recorte da história em três idades (Antiguidade, Idade Média, Tempos Modernos) feito pelos eruditos alemães no século XVII, dos quais podemos citar Rausin, em 1639; Gisbertus Voetius; em 1644; e Georg Horn, em 1666. Nesse ponto, por mais que ainda seja intervalo, ela ganha destaque ao aparecer como uma parte integrada à história ocidental. O historiador eclesiástico Caesar Baronius, recuperando os escritos de Petrarca, cunhou o termo saeculum obscurum (século obscuro, Idade das Trevas).

Os iluministas do século XVIII, mergulhados no espírito crítico e na valorização da razão, e amantes das liberdades burguesas, veem na figura da Igreja medieval e no modelo de Estado os sinônimos de obscurantismo e supressão da liberdade de pensamento. Adam Smith, autor de A Riqueza das Nações, vê na economia feudal e no controle estatal os contrapontos ao liberalismo e progresso de sua época. O século das “Luzes” foi decisivo para a construção da imagem duradoura que ficou da Idade Média: Uma época de fanatismo religioso, irracionalismo, repressão intelectual e atraso econômico.

O Movimento Romancista do século XIX, em oposição às visões negativas forjadas anteriormente pelo Iluminismo, ao qual fazia oposição, e ao racionalismo e liberalismo de sua época, idealizou a Idade Média como um período de espiritualidade, de exaltação das tradições nacionais e das visões fantásticas de mundo. Inúmeras obras com temática medieval cavaleiresca foram publicadas no período, como Ivanhoé, romance histórico de Walter Scott. As nações europeias buscam suas raízes históricas nos francos, nos gauleses, nos celtas, nos visigodos e nos saxões.

Segundo o historiador e professor Jérôme Baschet (2006) “[…] a Idade Média convida, com particular acuidade, a uma reflexão sobre a construção social e sobre a função presente da representação do passado” (p. 26). Analisando essa citação podemos compreender como as representações, construções da Idade Média, feitas em tempos posteriores, atendem a interesses distintos, que vão desde a depreciação (século XV) à valorização (século XIX). 

Como devemos, então, nos referir a Idade Média? “Nem legenda negra, nem legenda rosa”, escreveu Le Goff. Devemos evitar tanto a imagem de uma Idade das Trevas como a idealização de uma época de ouro. É uma característica comum das culturas humanas buscar através de construções do passado bases para se assentar como novas e civilizadas, ou valorizar o passado para criticar sua própria época.


FONTE:

BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo Editora, 2006.

CRÉDITO DAS IMAGENS:

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sexta-feira, 8 de julho de 2016

A interpretação política dos pensadores Clássicos à Karl Marx

Por Roosewelt Sena


O que é política, livro do escritor Wolfgang Leo Maar, (Brasiliense, 1994, 109 pág.) é uma obra que, em termos gerais, trata de política de uma forma clara e objetiva. É apresentado um panorama da atividade política desde os tempos antigos até os dias atuais, bem como suas causas e consequências. Na resenha a seguir é apresentado o resumo de um trecho da obra, pág. 29-45.

Iniciando o raciocínio a partir de que a política se firmou como atividade social dos homens no decorrer da História, o autor passa a conceber as inúmeras concepções que este termo, desde a Antiguidade até os dias modernos, apresenta, sempre compilando as ideais centrais da sociedade como democracia e direito. A todo o momento a atividade política se desenvolve, seja a partir dos parâmetros sociais, seja em virtude das necessidades da sociedade.

Falar sobre política é mais do que falar sobre Estado ou partidos, mas é levar em consideração o que motivou a formação dessas instituições. Daí surge a importância dos movimentos sociais que serviriam de eixo para a representação das necessidades populares.

A atividade política entre os gregos é baseada na democracia. Esta não era estendida a toda a população, mas somente aos homens, filhos de atenienses (mulheres e estrangeiros não tinham o direito de participar da vida política). Os gregos são na verdade os precursores da democracia. A expressão “política” nasce a partir da atividade que o homem executava na “pólis”. Ao contrário de outras sociedades do seu tempo, na Grécia a política tornou-se o elo constituinte da sociedade. Tanto Platão quanto Aristóteles eram avessos à democracia mas possuem alguns pontos em suas obras que esclarecem o ideal político grego.

Para Platão o político se diferencia dos demais homens por ter um maior conhecimento da “pólis” e das atividades vinculadas a ela a fim de oferecer uma luz para os demais homens. Para Aristóteles a política associa-se a todas as demais ciências para alcançar um determinado fim que é o “bem supremo dos homens”. A partir daí tem-se um ideal coletivo que, agregado à política torna esta mais sujeita às necessidades do povo, mais “democrática”.

O que transforma o homem em cidadão é a ética, por sua vertente pedagógica. O espaço de tomada das decisões amplia-se do soberano para o restante da sociedade. Não é mais o rei que tem a autoridade máxima (como em uma monarquia) mas quem decide é o povo (democracia).

O modelo de atividade política centralizada de Roma tornou-se um modelo para sociedades contemporâneas. Para os romanos manterem seus monopólios sobre suas riquezas e seus domínios passam a executar uma política voltada para o interesse particular, diferente do que acontecia na Grécia. O Estado Romano então governaria em favor de uma classe, os patrícios, impondo os interesses desses sobre os demais.

Além do domínio do Estado também havia a relação entre tutor e pupilo, que era mediada pelo direito romano, e através deste se garantia a não interferência do Estado na propriedade privada, ou nos interesses dos patrícios.

Roma não era uma pólis por que a atividade política não tem relações com cidade-estado, mas sim de relações entre militares, burocratas e burgueses e suas práticas de manipulação, corrupção e repressão.

As causas da queda do Império Romano estariam nele mesmo. Por ser o único estado, baseando sua atividade política em uma concepção institucional, não pôde sustentar-se para sempre, com adventos de crises e guerras, tomadas de fronteiras, tudo isso cooperou para o seu caos. Esses são pontos indicados por Gramsci. 

Durante a idade média a atividade política apresenta uma duplicidade, de um lado a nobreza exercia o “poder político” fazendo o uso da dominação pela força, do outro o clero executava o “poder civil” agindo com persuasão e convencimento para com a sociedade.

Sendo o governo o agente da atividade política de um Estado, este impõe suas condições. Através do seu agente, a atividade política do Estado realiza-se concretamente, pelo exercício do poder do governo. Com isso temos a dimensão do domínio que o governo pode atingir para alcançar seus objetivos, na esfera política. O livro de Maquiavel é um conjunto de lições para que se conquiste ou se mantenha um principado.

O que caracteriza o príncipe é a virtude, nesse sentido, para Maquiavel, a política torna-se acessível a todos. Torna-se a “arte do possível”. A teoria política de Maquiavel corresponde aos anseios de adquirir influencia por parte da burguesia mercantil, que perdeu seu significado na estrutura monárquica. Para Locke, principal teórico da revolução burguesa na Inglaterra, o governo civil fornece instrumentos de poder que permitem que “nossos” interesses se transformem numa orientação política para a sociedade.

O Príncipe de Maquiavel é virtuoso quando apresenta de maneira eficaz o poder do Estado. A virtude do príncipe estaria na força e na astúcia com que governa e não na justiça em relação aos governados. Enquanto a burguesia dependia de sua própria astúcia e força, o proletariado precisaria repousar na sua própria capacidade de mobilização para se tornar um agente político.

Com Maquiavel, a questão do governo é deslocada para o estado. A questão básica para Maquiavel seria as condições de ser governado, o que o levaria a estudar o Estado. Para Marx, o Estado precisa se submeter ao comportamento e aos interesses manifestados nessa classe. Neste sentido a atividade política se desloca do Estado para a luta de classes. A inovação de Marx foi atribuir a estas classes “sociais” um significado político sem transformá-las em classes “políticas”, de suporte à atividade política nos moldes do Estado.

A uma determinada sociedade civil corresponde um determinado tipo de Estado político, que não é mais expressão daquela; o Estado passaria a ser moldado pelas objetivações da sociedade que governa. A necessidade de estudar as relações entre governantes e governados daria lugar, como cerne da própria atividade política, à análise entre classes dominantes e as clássicas dominadas, entre exploradores e explorados; na sociedade capitalista essas relações seriam determinadas propriedades ou não dos meios de produção material.

A partir do exposto, é notável o quanto a centralidade da atividade política varia conforme o período, a necessidade, e forma social. Em cada período histórico o núcleo do processo político se dispersa ora pelo Estado, por meio das instituições políticas, embora estas, em certas situações, não regulamentam a atividade política sobre os parâmetros sociais atendendo apenas uma parte da sociedade. Isso nos faz compreender o quanto o sistema político varia em sua forma estrutural. Contemplando as formas de governo analisadas por Platão e Aristóteles, entendemos que logo uma sociedade exerce seu papel político sob as rédias de governantes que por um lado governam em direção a um objetivo público, e outras vezes em prol do particular, dos próprios políticos ou de uma classe dita dominante.


Roosewelt Sena, 22, é acadêmico de História na UFAM (Universidade Federal do Amazonas) e poeta.


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quinta-feira, 7 de julho de 2016

O Método Histórico

O bispo Virgil von Salzburg (746-784) medita profundamente sobre um texto que leu.

O trabalho do historiador, para o senso comum, se resume em uma simples seleção e memorização de fatos dispersos no tempo, cada um com suas especifidades. Esse trabalho, na verdade, consiste de um método histórico, ordenado da seguinte forma: 1) escolha do tema de estudo; 2) coleta de informações sobre ele; 3) análise crítica das informações reunidas; 4) estabelecimento de relação entre os fatos; 5) por último são tiradas conclusões. As etapas variam de historiador para historiador. Ciro Flamarion, da área da História Antiga, sugere quatro: seleção de tema, coleta de dados, crítica e elaboração, síntese e redação.

Num primeiro momento, o profissional da História já deve ter em mente, quando for realizar uma pesquisa, do tema a ser estudado. Geralmente, se escolhe algo de interesse pessoal; algo que tenha despertado a curiosidade. Um detalhe: tem que ser feito um recorte sobre o tema. Algo muito geral dificulta a pesquisa. Substitua, por exemplo, uma História Geral do Amazonas por Amazonas Colonial entre 1750 e 1800.

Um dos diferenciais que a pesquisa pode ter é o ineditismo. O pesquisador pode apresentar para a comunidade um tema nunca antes trabalhado ou trabalhar um tema que já foi amplamente trabalhado por outros autores, mas pode apresentar este sob uma nova perspectiva.

Definido o tema, é necessário verificar se, para a elaboração de seu estudo, existem fontes (registros) sobre o tema e se estas estão disponíveis. Se existem, o historiador os seleciona e reúne para começar a dar forma a sua pesquisa. Esse processo de seleção das fontes se chama heurística. Às vez, a partir de uma única fonte, são descobertas muitas outras.

As fontes são divididas em dois grupos: as materiais e imateriais. As primeiras se referem a vestígios concretos de épocas passadas, como cartas, manuscritos, jornais, utensílios domésticos etc. As fontes imateriais são os registros intangíveis, como a tradição oral, que passa de geração em geração. O historiador, ainda analisando as fontes, as diferencia entre primária e secundária. Basicamente, as fontes primárias são registros contemporâneos ao acontecimento (ex: cartas escritas pelos inconfidentes mineiros no século XVIII). As fontes secundárias são registros indiretos posteriores a um período histórico (ex: compilação de cartas da Inconfidência Mineira feita no século XX).

Atualmente, existem várias formas de se averiguar a veracidade de um documento, como o teste de seus materiais (tinta, papel) em laboratório. Entram aí profissionais de outras áreas: arqueólogos, linguistas e antropólogos. Mas, frequentemente o historiador se vê diante de documentos sem data, sem autores identificáveis, o que torna o processo crítico mais difícil.

Reunidas as fontes, o historiador começa a se questionar sobre o (s) acontecimento (s) do passado. São feitas duas críticas: a externa e a interna. A crítica externa tem o intuito de se verificar a autenticidade do documento, se este é originário da época a qual se especula, se foi escrito pelo suposto autor ou se foram feitas alterações. Com a crítica interna o pesquisador analisa o conteúdo do documento, quais as verdades ou mentiras ele carrega, os fatores (religiosos, ideológicos) que influenciaram sua produção, as omissões, invenções e participações no acontecimento.

Verificada a confiabilidade das fontes e feitas as críticas, o historiador passa a interpretar os fatos, estabelece relações entre eles e tenta explicá-los. Ele analisa as evidências sobre um tema e levanta hipóteses, fazendo um diálogo com as fontes, tornando-as vivas. Esse processo se chama reconstrução imaginativa. A imaginação, aqui, não tem o sentido comum de criar coisas, mas sim de criatividade e talento ao extrair o máximo de informações das fontes.

A História é uma ciência que não se testa em laboratório, pois trabalha com as relações de mudança que o homem realiza no tempo. Um fato como a Revolução de 1789 não pode ser replicado. Os historiadores não buscam uma causa, mas sim múltiplas “causas” que culminaram em um evento.

O último processo da pesquisa histórica é a redação. Uma boa pesquisa merece uma narrativa de igual qualidade. Se aconselha que o pesquisador planeje a estrutura narrativa, que apresente nela o tema, os problemas, as hipóteses, as notas de rodapé e a metodologia empregada. O texto deve ser apresentado seguindo uma sequência de ideias. Devem ser evitados erros de gramática, de concordância e de ortografia. Devem ser dados os créditos para citações, notas e trabalhos de terceiros. Por último, construa uma argumentação objetiva, com boa argumentação e poder de persuasão.


FONTE:

MARTINS FILHO, Amilcar Vianna. Como Escrever a História da Sua Cidade. Belo Horizonte: Instituto Cultural Amilcar Martins, 2005, p. 39-59.



CRÉDITO DA IMAGEM:

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