quarta-feira, 18 de maio de 2016

A Historiografia Norte-Americana: da Colonização à Independência

Os passageiros do Mayflower assinam o "Pacto de Mayflower", 1620. Jean Leon Jerome Ferris, século XIX.

Quando os primeiros colonizadores chegaram à América do Norte, vindos da Inglaterra e da França (século XVII), se depararam com povos nativos que se distinguiam por suas práticas religiosas, línguas, formas de subsistência e de se vestir. O continente e seus habitantes trouxeram grande impacto para esses europeus, que primeiramente passaram a estudá-los como um ramo da história natural, filosófica e conjectural. Já vimos como se desenvolveu a escrita da História na América Espanhola (ver A Historiografia da Conquista I), com um pano de fundo clerical, ligado ao catolicismo. Agora, vamos ter a influência religiosa protestante na América do Norte; e, mais tarde, a construção de uma história secular.

Os escritos do espanhol José de Acosta influenciaram a produção historiográfica na América do Norte. Sua concepção de que os nativos não poderiam ter uma “história oficial” fez com que os americanos estudassem esses povos como um ramo da História Natural, Filosófica e Conjectural. Bebendo direto de fontes clássicas como Tácito, Heródoto, César, Plínio e Estrabão, o jesuíta francês Jean-François Lafitau (1681-1746), que viveu na Nova França e entrou em contato com os iroqueses, escreveu Costumes dos selvagens americanos comparados aos costumes dos primeiros tempos (1724), onde os nativos americanos eram comparados a tribos da Antiguidade. Lafitau, jesuíta, via nos nativos exemplos de combate ao ateísmo, mostrando que até os “selvagens” acreditavam no divino. Em sua obra também são abordadas guerras, instrumentos musicais, práticas religiosas e linguagem. Costumes dos selvagens é uma mistura de tradição medieval e clássica; relatos de viagens do século XVI; e comparativismo iluminista. Lafitau via nos indígenas costumes asiáticos e uma influência destes, o que, atualmente, é uma das teorias de povoação da América:

“Como era o costume entre os antigos comer deitado sobre sofás, o mesmo é ainda o costume entre os índios sul-americanos que, embora tenham pequenos assentos com três pés como bancos de sapateiros sobre os quais eles comem ordinariamente, com muita frequência também fazem seus repastos deitados em redes como o fazem os índios norte-americanos que comem sentados nas mesmas esteiras em que dormem”.1

O período colonial foi marcado por conflitos internos entre ingleses e franceses, que aliavam-se, cada um, a tribos antagônicas. A Guerra do Rei Felipe (1675-1678); a Guerra dos Sete Anos (1756-1763); e outros conflitos serviram de tema para a história militar em obras como História de New Hampshire (1784), de Jeremy Belknap, crítico da escravidão e da ação dos colonizadores contra os índios. Cadwallader Colden descreveu os iroqueses em História das cinco nações indígenas dependentes da Província de Nova York na América, e defendia a tese de que os eles deveriam ser guardados como aliados contra a investida francesa a partir do Canadá. O que se escrevia na América anglo-saxônica sobre história era mais um relato sobre a flora, a fauna e os costumes dos nativos do que uma narrativa do passado propriamente dita. O primeiro historiador a escrever realmente uma narrativa sobre passado colonial foi o explorador John Smith (1579-1631) em Uma verdadeira relação (1608) e História geral da Virgínia, da Nova Inglaterra, e das Ilhas de Verão (1624).

O fervor religioso protestante dominará por muito tempo a historiografia dessa parte da América. Autores como John Foxe e Sir Walter Ralegh serão lidos e utilizados como base intelectual por diversos historiadores. A América era uma versão distante da terra prometida; os sobreviventes do naufrágio do Mayflower eram os escolhidos para assentar uma sociedade próspera; e a domesticação da natureza e do elemento nativo eram provas de que essa era a vontade de Deus. Existe uma lista extensa desses trabalhos históricos providencialistas, e dela podemos citar: A providência milagrosa do Salvador de Sion na Nova Inglaterra (1654), de Edward Johnson (1599-1672); História do assentamento de Plymouth (1856), de William Bradford (1590-1657); e História Geral da Nova Inglaterra até 1630 (1815), de William Hubbard (1621-1704). Increase Mather (1639-1723) escreveu Breve história da guerra com os índios da Nova Inglaterra, história de cunho militar e providencialista.

A região da Nova Inglaterra era o polo irradiador de obras históricas, com destaque para a Baía de Massachusetts, de onde saiam análises históricas a partir da perspectiva local, como em Visão sumária, histórica e política dos assentamentos na América do Norte (1747-1750), do médico bostoniano William Douglass (1691-1752). O filho de Increase, Cotton Mather, produziu uma grandiosa História eclesiástica da Nova Inglaterra (1693-1702), dividida em sete livros: No primeiro livro, são abordados os assentamentos coloniais da Nova Inglaterra; O segundo e terceiro livros são dedicados a biografias de figuras públicas importantes; o IV trata da história da Universidade de Harvard; e os três últimos são a história eclesiástica propriamente dita.

O último historiador do período colonial foi o governador civil de Massachusetts, Thomas Hutchinson (1711-1780), político moderado que tentou, em vão, conciliar os colonos revolucionários e o governo britânico. Publicou em 1764 o primeiro volume de História da Colônia da Baía de Massachusetts, produzido através de farta documentação da biblioteca de Samuel Mather, filho de Cotton. A narrativa abrange os primórdios de Massachusetts, como um simples assentamento puritano, até sua transformação em rica região comercial. Em 1765, durante os tumultos ocasionados pela Lei do Selo, Hutchinson teve sua biblioteca invadida e viu seus documentos serem destruídos, sendo assim interrompida a publicação de um novo volume. Conseguindo recuperar um rascunho do II volume, o governador o publica em 1767. Com o aumento das tensões entre colônia e metrópole, Hutchinson deixa a colônia e a América em 1774, terminando sua obra no exterior.

Declaração da Independência dos Estados Unidos, 1776. John Trumbull, 1819.

Entre tantos historiadores, uma mulher iria se destacar por produzir uma das principais e mais respeitadas obras sobre a Revolução Americana. Mercy Otis Warren (1728-1814), revolucionária da causa republicana, concluiu em 1791 e publicou em 1805 a História do surgimento, progresso e término da Revolução Americana. Em sua obra, Mercy combinou os testemunhos de figuras políticas com um rico material documental, coroados por sua narrativa vigorosa e bem estruturada. No extrato abaixo, vamos perceber que, para Warren, a História deve ser estudada através de um trabalho mútuo entre investigação, reflexão e precisão de linguagem:

A história, o depósito de crimes e o registro de tudo o que é infame ou honorífico à humanidade, requer um conhecimento justo do caráter, para investigar as fontes de ação; uma clara compreensão, para revisar a combinação de causas; e precisão de linguagem, para detalhar os eventos que produziram as mais notáveis revoluções.

Analisar as fontes secretas que efetuaram as mudanças progressivas na sociedade; para traçar a origem das várias formas de governo, as consequentes melhorias na ciência, na moralidade, ou a tintura nacional que marca a condução do povo sob formas despóticas ou mais liberais, é um trabalho audacioso e ousado…

O amor pela dominação e uma luxúria descontrolada de poder arbitrário prevaleceram entre todas as nações, e talvez proporcionalmente aos graus de civilização. Elas foram igualmente conspícuas no declínio da virtude romana, e nas páginas negras da história britânica. Foram esses princípios que arruinaram essa antiga república. Foram esses princípios que frequentemente envolveram a Inglaterra em conflitos civis. Foi a resistência a eles que levou um de seus monarcas à barricada e retirou outro de seu trono. Foi a prevalência deles que conduziu os primeiros colonizadores da América, de suas elegantes habitações e afluentes circunstâncias, a buscarem um asilo nas regiões frias e incultas do mundo ocidental. Oprimidos na Grã-Bretanha por reis despóticos, e perseguidos pela fúria do prelado, fugiram para um país distante, onde os desejos humanos fossem limitados pelas carências da natureza; onde a civilização não havia criado aqueles anseios artificiais que tão frequentemente rompem todo laço moral e religioso para sua gratificação2.

Terminada a revolução, a historiografia norte-americana seria orientada para a reflexão filosófica e política, em busca de respostas para questões como qual tipo de república estabelecer, quais posições tomar em relação a escravidão, como se daria a expansão rumo ao Oeste e como o elemento nativo deveria ser tratado de agora em diante. O médico David Ramsay sintetizou essas questões nas obras A História da Revolução da Carolina do Sul (1785); História da Revolução Americana (1789); e História dos Estados Unidos. Sua História da Revolução Americana começa com a história dos assentamentos coloniais, no século XVII, e passa para os conflitos entre colônia e metrópole, iniciados em 1764. Era um autor moderado, antiescravagista, primeiramente republicano e, mais tarde, federalista. Em 1817, dois anos após a morte de Ramsay, aparece História dos Estados Unidos, obra que marca sua transição de autor moderado para conservador. Sua visão mais amigável aos índios mudou para uma feroz defesa do expansionismo contra esse elemento; e suas críticas à escravidão praticamente desapareceram.

Neste último texto da série Historiografia da Conquista, podemos perceber como a escrita da História nos Estados Unidos, assim como na América Espanhola, passou por diferentes estágios de evolução: Num primeiro momento, vamos ter uma narrativa que foca mais na comparação cultural, na descrição da fauna e da flora do que no passado; depois, o protestantismo se tornaria o ponto de partida para uma história providencialista, na qual o novo continente seria uma versão da terra prometida; por último, no final do século XVIII, surgem narrativas sobre o passado americano, já com traços de uma identidade nacional que se estabeleceria após a Revolução, e histórias filosóficas sobre os novos rumos do país após a independência em relação à Grã-Bretanha.



1LAFITAU, J.F. Customs of the American Indians. Vol. I. Wisconsin, Champlain Society, 1974, p. 225.

2WARREN, M. O. “Introductory Observations”. In: COHEN, L. H. (org.). History of the Rise, Progress, and Termination of the American Revolution. 2Vols. Indianápolis: Liberty Classics, 1988, vol I. p. 3-5.


FONTES:

WOOLF, Daniel. Uma história global da história. Tradução de Caesar Souza. Petrópolis, RJ, Vozes, 2014.

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sexta-feira, 13 de maio de 2016

A relação entre Filosofia e História e a busca da construção do sentido

Por Wilton Abrahim


A filosofia é a mãe das ciências, e é tão antiga quanto a História. Ela é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos. Desde os seus primórdios com os pré-socráticos até os dias atuais, é uma conduta da vida humana e do comportamento do homem na sociedade, por isso está filiada à sabedoria, que permite adquirir a capacidade de pensar, de agir e de participar da sociedade, assim fazendo uma relação com a História, que é a ciência do homem no tempo. A História soma-se à filosofia para apresentar uma finalidade na busca pela sabedoria; e dar um sentido à vida do homem e em sua capacidade intelectual. No decorrer dos séculos, vamos ter inúmeros filósofos da história.
Segundo Olinto A. Pegoraro: “a maior dificuldade das teorias do destino é o confronto com a liberdade. Sempre a liberdade humana transcendeu as leis da física e da biologia; sempre tivemos a possibilidade de agir contra as leis, de decidir entre levar uma vida justa ou injusta, de viver bem ou distribuir-nos1
Para Ricardo Timm, devemos nos perguntar “Qual o sentido de fazer filosofia, hoje, aqui e agora?”. Inúmeros historiadores fizeram esse questionamento, tais como: Giambattista Vico (1668-1744) foi um filósofo, jurista, político, retórico e historiador italiano, vindo a ser reconhecido apenas no século XIX. Escreveu Ciência Nova, obra em que pretendia criar uma forma alternativa de estudar as ciências humanas, principalmente a história, forma diferente da aplicada às ciências naturais.
Vico põe a filosofia e filologia como duas disciplinas auxiliares da História. Em filosofia, aproveita-se a reflexão, as ideias e a sabedoria humana; e na filologia, o conhecimento da língua e das tradições dos povos. A filosofia oferece o arcabouço teórico, e a filologia o concreto, tangível, fragmentos das produções humanas. Vico, em oposição a Descartes, afirma que para verdadeiramente se conhecer algo é necessário que seu conhecedor o tenha criado. Vico afirma que o homem não caminha necessariamente para o progresso do pensamento racional.
Para Olinto A. Pegoraro: “O Cristianismo, que surgiu em plena expansão do estoicismo e neoplatonismo, aos poucos substitui o férreo determinismo da providência estoica pela providência totalmente transcendente e extracósmica2”. Vico confirma a Providência Divina para dar um sentido à História; e este afirma que essa ciência tem uma parte construída pelo homem e outra por Deus. Neste ponto Deus é o arquiteto, enquanto o homem seria o construtor.
Um outro historiador muito polêmico que podemos abordar é o francês François-Marie Arouet, mas conhecido como Voltaire (1694-1778). Seu lado historiador é pouco conhecido, pois o que vemos mais é o filosófico. Para Voltaire, a História é um conjunto dos desenvolvimentos produzidos pelo homem, nas artes, ciências e técnicas, através das transformações espirituais e morais. Sua obra filosófica-histórica foi A Filosofia da História.
Em Filosofia da História temos dois sentidos: o primeiro é uma forma de conceber o processo histórico; o segundo está em um modo de reconstituir esse processo para os leitores do presente. A obra filosofia da história é um ensaio sobre o mundo Antigo e sobre o que se produziu sobre ele. Diferente de Vico, Voltaire atacava as concepções religiosas que se fizeram da história das nações e também lendas, mitos e fábulas. A Historiografia de Voltaire é crítica, secularizada, cultural e filosófica.
Este dois grandes historiadores filósofos fizeram o uso do sentido da filosofia, que mudou a mentalidade e a forma de pensamento. Contudo, nós estudantes acadêmicos temos o dever de nos aprofundarmos nas questões filosóficas, criando assim, um sentido para nossos projetos de pesquisa, de pós-graduação e entre os iniciantes, pois o sentido somos nós que construímos.

1 PEGORARO, Olinto A. “concepções do mundo”. In--------------------------- SENTIDOS DA HISTÓRIA. P 18. Petrópolis, RJ:Vozes, 2011.
2 Ibidem, p.20.


Wilton Abrahim Gomes Garcez é acadêmico da Licenciatura em História na Universidade Federal do Amazonas (UFAM).











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quarta-feira, 11 de maio de 2016

Viver à grega

Baco, de Caravaggio. 1593-1597.

Pargraecari é um termo de origem latina, que significa “viver à grega”. Era com este termo que alguns romanos, os mais conservadores, designavam o modo de vida de seus semelhantes. O modo de vida romano, entre os séculos III e II, recorte histórico feito pela autora, é marcado pela devassidão, pela ostentação, a vida galante e desregrada. Naquela época, a existência desses hábitos, que iam contra a moral estabelecida e defendida pelas elites, era atribuída à má influência grega. Mas como era esse estilo de vida grego? Uma fonte material pode ser utilizada como simples resposta: Vejam, abaixo. O mosaico da imagem, grego, data do século III a.C., e foi encontrado à duas semanas nas ruínas de Antioquia, na Turquia. Ele fazia parte de uma sala de jantar de uma residência, e nele se lê: “Seja alegre, viva sua vida”. Observem que, quem segura a tigela de bebida, ao lado da garrafa, é um esqueleto, lembrando da efemeridade da vida. Era assim que os gregos, e agora os romanos, em parte influenciados pelos vizinhos mediterrâneos e em outra, antigos praticantes, viviam.



As comédias de Plauto e Terêncio, as Sátiras de Petrônio Árbitro e os escritos de outros autores, legaram para nós as figuras das prostitutas que arruinavam famílias, os homens que, em avançada idade, ainda sentem os ardores do amor, e o militar fanfarrão. Plauto, em uma de suas comédias, exclama: “Bebam dia e noite, vivam à grega, comprem mulheres, libertem-nas, engordem os parasitas”. Por mais que se jogasse a culpa nos gregos, era difícil ocultar algo facilmente visível na sociedade romana muito antes do contato destes com seus vizinhos.

O contato entre romanos e gregos, citando Catherine Salles, e a introdução desses hábitos entre os latinos, se deu no século III a.C., quando as legiões romanas conquistam a Itália do Sul, e os habitantes do Lácio começam a se familiarizar com os hábitos desregrados dos habitantes da Campânia, na Magna Grécia. Francisco Oliveira e José Luís Brandão, em História de Roma Antiga. Vol I. - das origens à morte de César, citam que esse estilo de vida grego chegou à Roma de diferentes formas: “pela presença de gregos em Roma – reféns, escravos, imigrantes e embaixadores; a passagem de romanos pela Magna Grécia, pela Grécia e pelo mundo helenístico – militares, viajantes, comerciantes, embaixadores, jovens estudantes que aperfeiçoavam os seus estudos em grandes centros culturais, como Alexandria, Atenas, Nápoles, Pérgamo e Rodes. Nesta fase merece particular destaque a atração de intelectuais gregos por Roma: professores, médicos, retores, filósofos, geógrafos, historiadores e artistas”1.

Por mais que existissem tentativas, por parte das elites aristocráticas e burocráticas romanas, de esconder a realidade de devassidão dos habitantes da cidade, a vida dos prazeres à grega era indissociável para um romano do Aventino, dos lupanares e ruas do bairro Subura, das zonas do Grande Circo, povoadas por populações à margem da sociedade. Esses nomes de bairros, e a associação que carregam, revelam, nas palavras de Catherine, a existência de uma “geografia do prazer”. Os romanos, muito antes de terem contato com a “má influência” grega, já cultivavam hábitos considerados reprováveis pela moral citadina. “O mito do romano casto, corrompido por costumes estrangeiros, deve ser posto na lista dos acessórios de uma comédia que os partidários da castidade original do povo latino gostam de presentar”2

Jogar a culpa aos estrangeiros era um método não muito efetivo de diminuir a culpa pelo que se praticava na cidade, que era associada a todas as formas de prazer, principalmente os proibidos. Basta lembrar que, entre os antigos, Roma é o anagrama de Amor. A elite tentava omitir essas práticas, mas ela mesma os praticava. No Império, é bom enfatizar, existia uma relação intensa entre poder e sexo, a qual pode ser exemplificada com os altos impostos cobrados das lupas, prostitutas, bordéis e choupanas; e até em decisões políticas tomadas durante bebedeiras ou relações entre quatro paredes.


1OLIVEIRA, Francisco; BRANDÃO, José Luís. História de Roma Antiga: vol I: das origens à morte de César. Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015, p. 270.

2SALLES, Catherine. Nos submundos da Antiguidade. 2° ed. São Paulo, Brasiliense, 1983. p. 171.


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Revista Aventuras na História

segunda-feira, 9 de maio de 2016

A produção historiográfica nos Estados Unidos entre 1940 e 1990

Entre 1940 e 1990, os principais ataques eram feitos à ideologia comunista.

O presente artigo é parte da minha resenha do capítulo IV do livro A História dos Homens, do historiador Josep Fontana. Esse capítulo, intitulado As Guerras da História, aborda como os embates ideológicos, travados com maior força desde a Segunda Guerra, influenciaram a produção historiográfica. Entre 1940 e 1990, travaram-se nos Estados Unidos embates violentos, que culminaram na instalação de um clima de vigilância contra o que era considerado nocivo à produção historiográfica:

As guerras da história se mostram mais violentas na outra parte do Mundo Ocidental, com maiores agravantes após a divisão ideológica causada pela Guerra Fria. Segundo Fontana, desde os anos 1930 se notam conflitos no ensino de História nos Estados Unidos, onde os livros que não se adequassem aos valores conservadores e patrióticos eram censurados e eliminados. A Associação Nacional de Manufaturas, nos anos 1940, possuía mais de 6.800 vigias locais, com a missão de manter a educação livre do perigo do coletivismo, que pode ser interpretado como Comunismo.

Após o fim da Primeira Guerra Mundial e a ascensão de duas forças antagônicas, Conservadorismo (representado pelos Estados Unidos) e Comunismo (representado pela URSS), os Estados Unidos passaram a atacar a história progressista de historiadores como Charles Beard e Carl Becker; e a elaborar uma história objetiva, que transmitisse ensinamentos morais. Nunca houve, nas palavras de Fontana, “uma associação tão íntima entre os historiadores e o poder que se estabeleceu nestes anos1. Historiadores de prestigiadas universidades passaram a trabalhar na CIA, na OSS, no Departamento de Estado e em outros órgãos do governo. A produção historiográfica que começava a se formar nesses anos de embates ideológicos visava não só a consolidação dos Estados Unidos como principal potência mundial e a defesa dos valores tradicionais americanos, mas também atendia ao interesse governamental sobre informações dos “inimigos”. Surgem sovietólogos, kremlinólogos, matérias universitárias sobre a Ásia e a Rússia. O historiador George Kennan fixa as linhas da política norte-americana em relação a URSS; e o professor emérito de História Russa, Richard Pipes, num primeiro momento, ataca o comunismo, para mais tarde, minar o estado de bem-estar social.

Aliava-se à história, nesse período, a sociologia, surgindo a sociologia histórica, que interpretava os fatos históricos a partir de modelos sociológicos esquemáticos. Também era produzida uma história erudita, representada por maciços trabalhos de compilação documental. Sociologia Histórica e História Erudita eram voltadas para o estudo de conflitos sociais e formas de evitá-los ou contê-los. Podem ser citadas as obras de Barrington Moore Jr., Charles Tilly e Theda Skocpol.

A repressão tornou-se constante no cenário intelectual americano. Livros considerados subversivos, com tendências pró-comunistas, eram censurados. A Daughters of the American Revolution chegou a denunciar 170 livros nessa categoria, que continham, por exemplo, expressões sobre coletividade, algo considerado pró-comunista. Esse clima repressivo permitiu o surgimento de uma história baseada na predestinação, na doutrina Destino Manifesto e em outros "talentos" considerados natos dos Estados Unidos. Não eram feitas menções à conquistas dos nativos, a grupos marginalizados e não eram feitas críticas sociais. Fontana, citando Gendzier, afirma que "voltava-se, ao mesmo tempo, à doutrina da objetividade, à rejeição da "ideologia" - isto é, das ideias dos outros - e da "construção social".2

Os Estados Unidos, representantes máximos do lado liberal da Guerra Fria, tinham de estender sua influência para outros países. Seus ideais eram difundidos através do Congresso pela Liberdade da Cultura (CCF), dirigido pela CIA e amparados por recursos provenientes do Plano Marshall. Eram financiadas revistas propagandistas dos ideais norte-americanos da Europa à Oceania: Na França, existiu a publicação preuves; na Grã-Bretanha, a EncounterCuadernos, na Espanha; Tempo Presente, na Itália; e outras de mesmo cunho na Austrália, Índia e Japão.

Outros campos do conhecimento humano passaram por transformações radicais dentro desse contexto. No campo das Artes, por exemplo, o realismo, vertente utilizada para popularizar as artes, é substituído pelo expressionismo abstrato. Essa vertente tem uma linguagem complexa, entendida apenas por uma pequena elite intelectual. As exposições dos artistas expressionistas abstratos eram financiadas pela CIA. No curso de Letras das universidades, língua e literatura passam a ser estudados sem se levar em conta o contexto social e histórico, apenas o conteúdo do texto. É um estudo elitista, que evita críticas tanto da direita quanto da esquerda. No estudo de Ciências Sociais, a National Science Foundation, pedia para aqueles que pediam apoio para seus estudos que evitassem qualquer ligação com reformas ou bem-estar social. Se o apoio viesse da iniciativa privada, os pedidos eram, por exemplo, que se evitassem pesquisas sobre relações de raça.

Dando um salto cronológico de quase 50 anos, Josep Fontana sai do período da Guerra Fria e entra nos anos 90, afirmando, no entanto, que a luta não terminou naqueles tempos de visível divisão ideológica. Nessa década, o presidente George W. Bush empreendeu uma grande reforma na educação dos jovens americanos, no qual estava incluído o conhecimento das “diferentes heranças culturais da nação”. A comissão encarregada da área da História teve uma tarefa árdua ao englobar uma gama de minorias presentes no país, numa tentativa de construir uma história verdadeiramente global. Os novos parâmetros de ensino ficaram prontos em 1994, e quase de imediato passaram a ser denunciados por grandes veículos de comunicação do porte de Wall Street Journal, que os acusavam “como uma conspiração para inculcar uma educação ao estilo comunista ou nazista, dentro de uma campanha contra o multiculturalismo e contra os “tenured radicals”: os professores “radicais” que se acreditava, sem fundamento algum, controlassem os ensinos de história, literatura ou antropologia nas universidades norte-americanas”3Emergiam novamente os conflitos da época da guerra, que de fato nunca foram superados.

As perseguições ao marxismo e seus simpatizantes continuava a funcionar com o mesmo mecanismo dos anos 40: os vigilantes e historiadores alinhados à classe dominante. O historiador David Abraham foi perseguido pelo também historiador Henry A. Turner; Norman Cantor atacava Lawrence Stone; Robert Conquest, que em seu último livro mostrara como as “ideias revolucionárias devastaram mentes, movimentos e países inteiros”, atacava o historiador inglês Eric Hobsbawm, autor de História do Século XX, livro bem aceito nos meios liberais britânicos.


1FONTANA, Josep. “As Guerras da História”. In: A História dos Homens. Bauru, (SP). p. 347.
2Ibidem, p. 353.
3Ibidem, p. 355-56.


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segunda-feira, 2 de maio de 2016

Alexandria - o Farol e o Porto

Por Antonio José Souto Loureiro


Alexandria em 1681. Gravura de Cornelius de Bruyn.

Os Egípcios receberam Alexandre com alegria, pois viam nele um libertador que poria fim ao duríssimo domínio persa. Por seu lado, Alexandre, como prova de respeito à civilização egípcia, dirigiu-se ao oásis de Siwa, para receber do deus Ámom-Rá a consagração como faraó legítimo.

Foi durante essa viagem que ele se deteve para fundar, no extremo ocidental do Delta, uma grande cidade, a primeira de uma longa série, à qual quis dar o seu nome. O seu plano consistia em erigir uma cidade sumptuosa que seria o núcleo do seu poder e um centro de cultura.  Alexandre Magno morreu antes de ver concluída a obra, mas Ptolomeu, seu sucessor, no Egito, foi quem continuou o seu ambicioso plano. Assim nascia Alexandria, no Inverno de 332-331 a.C., no local de uma antiga aldeia de pescadores e pastores chamada Rhakotis, a Oeste do delta, no istmo entre o mar e o lago Mareótis, perto do braço Canópico do Nilo.

Alexandria, estava magnificamente situada, na encruzilhada das rotas navais, fluviais e terrestres de três continentes: Europa, África e Ásia. Desta forma, será a capital cultural do Helenismo, pelo menos durante três séculos, e, rapidamente na maior cidade comercial do mundo.  A tradição atribui a planificação da cidade de Alexandria ao arquiteto e urbanista Dinócrates de Rodes, o mesmo que teria projetado a reconstrução do Artemísion de Éfeso, no tempo de Alexandre Magno. Duas grandes avenidas: a Avenida Norte-Sul e a Avenida Leste-Oeste, dividiam a cidade em quatro bairros principais, denominados pelas quatro primeiras letras do alfabeto grego. A artéria principal (Leste-Oeste), chamada Canópica, tinha 7 quilômetros e meio de comprimento e 30 metros de largura, sendo ladeada por passeios. A artéria norte-sul desdobrava-se em duas largas áleas separadas por um renque de árvores.

A configuração da cidade era geométrica. As ruas, de cada um dos seus 4 bairros, eram ortogonais. Dado o clima quente e seco característico daquela região, eram estreitas para originarem mais sombra. Na realidade, não eram necessárias ruas mais largas pois só em dias de festa a circulação tornava-se intensa. A cidade construiu-se muito rapidamente distinguindo-se das outras cidades egípcias por ter sido edificada não em tijolo, mas em pedra.

O palácio real dos Ptolomeus, o Bruquium, cobria por si só cerca de um quarto da cidade, todo ele construído com mármores importados. Contudo, a sua arquitetura, ainda que majestosa, em nada se assemelhava aos conjuntos monumentais das mansões faraônicas. Para além deste imenso palácio, a Neópolis, ou seja, a cidade nova, incluía diversas outras grandes construções: jardins, o Museu, a Biblioteca e o Teatro. A Leste, no subúrbio do Elêusis, situavam-se o ginásio, o estádio, o Hipódromo e um cemitério; a Oeste, a necrópole principal ao longo do canal que ligava Alexandria a Canopo. Nesta zona existiam ainda belos jardins e moradas sumptuosas onde, segundo o testemunho de Estrabão, se vivia alegremente.

O Porto

Para fazer de Alexandria um centro de comércio de primeira grandeza, foi necessário dotar a cidade com as estruturas e os aperfeiçoamentos necessários. Como o porto da cidade não era satisfatório, Alexandre mandou construir um porto artificial entre a costa e a Ilha de Faros que se encontrava aproximadamente a mil metros da margem. Esta ilha foi unida ao continente através de um paredão, o Heptaestádio, um dique com sete estádios de comprimento, aproximadamente 1200 m. A baía ficava assim dividida em dois portos: a leste, o porto de guerra, os arsenais, os estaleiros navais e o porto pessoal do soberano. A oeste, o porto mercantil, o Eunostos significando bom regresso. Duas aberturas existentes no dique permitiam aos navios passar de um porto para o outro. Este duplo porto de Alexandria foi mais tarde copiado em várias cidades helenísticas.

O Farol

O arquiteto Sóstrato de Cnido levantou, na ilha de Faros, o primeiro farol do mundo. Com cerca de 120 metros de altura e equipado com todos os instrumentos mecânicos então conhecidos para proteção da navegação era capaz de efetuar previsões meteorológicas. A sua luz era alimentada por lenha resinosa, içada por máquinas hidráulicas, que, por uma combinação de espelhos côncavos, se dizia ser visível a mais de 50 Km de distância.

O farol dispunha ainda de engenhos que assinalavam a passagem do sol, a direção do vento e as horas. Estava equipado com sinais de alarme acionados a vapor que se faziam ouvir durante o mau tempo, bem como com um elevador que permitia o acesso ao cimo da torre. Possuía também um periscópio gigante, por meio do qual um vigia podia observar embarcações que se encontrassem para além do horizonte aparente. Este farol, uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo, foi destruído por um terremoto no século XIV.

Em Alexandria a Bíblia deixou de ser uma tradição oral e foi escrita, pela primeira vez em grego. Quando foi tomada pelos árabes e sob o domínio bizantino, grande parte de seus rolos espalhou-se pela Europa, sendo talvez a raiz das bibliotecas dos conventos das Ordens então fundadas, como a dos Dominicanos.


Antonio José Souto Loureiro, 75, é escritor, médico reumatologista e historiador. Nasceu em Manaus, em 06 de junho de 1940. Formou-se em Medicina na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. É membro (Presidente) do Instituto Histórico e Geográfico do Amazonas (IGHA), da Maçonaria do Amazonas, da Academia Amazonense de Letras e da Academia Amazonense de Medicina. É autor de Amazônia 10.000 anos, 1972; Síntese da História do Amazonas, 1978; A Gazeta do Purus, 1981; A Grande Crise, 1986; O Amazonas na Época Imperial, 1989; Tempos de Esperança, 1994; Dados para uma História do Grande Oriente do Estado do Amazonas, 1999; História da Medicina e das Doenças no Amazonas, 2004; O Brasil Acreano, 2004; e o Toque de Shofar.




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quarta-feira, 27 de abril de 2016

Quando o Império Romano se torna Cristão

Por Pierre Maraval, historiador das religiões, especialista em Cristianismo Antigo, Antiguidade Tardia e professor emérito da Université Paris-Sorbonne.

A Visão da Cruz. Afresco de Rafael Sanzio, 1520-1524.

De Constantino a Teodósio
Da conversão do Imperador
à conversão do Império

Como muitos outros não-cristãos da sua época, o imperador Constantino parece ter sido, a princípio, simplesmente monoteísta, crendo num Deus criador supremo, conhecido por diferentes nomes e adorado de diversas maneiras. Assim, o Sol invictus aparece nas moedas depois de 308; só progressivamente é que ele virá a formular de maneira explícita, em textos provenientes da sua pena, sua adesão ao cristianismo. Não há por que contestar sua sinceridade, como fizeram vários historiadores, ainda que essa adesão lhe permita identificar-se como um instrumento escolhido pessoalmente por Deus e que essa relação pessoal adquira um alcance político: estava-se então num mundo em que pagãos e cristãos consideravam o imperador um indivíduo religiosamente marcado. Não se deve, de resto, imaginar uma conversão súbita, mas antes uma evolução, um despertar gradual: o próprio Eusébio de Cesareia, seu biógrafo, diz que o imperador recebeu várias vezes sinais de Deus.

Resulta em todo caso que, quando volta a Roma após a batalha da ponte Mílvio (312), Constantino encontra o denominador comum que garantirá tanto a unidade do seu Império - o reconhecimento de um Deus único -, como sua própria legitimidade, que ele faz proceder de uma missão pessoal recebida de Deus. Isso não o leva a uma atitude intolerante em matéria de religião. O "edito de Milão", de 313, exprime ao mesmo tempo a ideia de que a segurança do Império é assegurada pelo Deus supremo (e não mais pelos deuses da tetrarquia, Júpiter e Hércules) e o reconhecimento oficial do fato de que a religião não pode ser forçada. Constantino dá testemunho de uma política de consenso à qual cristãos e pagãos podem aderir, de um fundamento comum unitário: o monoteísmo, um monoteísmo que tolera as diferenças religiosas e rejeita a coerção. Pondo fim à Grande Perseguição lançada em 303 por Diocleciano, que fracassou em sua tentativa de erradicar o Cristianismo, Constantino tem em vista, portanto, conquistar os cristãos, incorporá-los ao Império e à sua política tradicional.

O caso é que, bem cedo, ele vai favorecer de forma manifesta a Igreja: doações de dinheiro, de terrenos, de palácios, financiamento de basílicas em Roma e em Jerusalém. Com isso, os bispos requerem que ele se envolva em seus assuntos internos e se, num primeiro, procura resolver os conflitos entre eles de maneira consensual, as resistências encontradas logo o levam a tomar medidas severas contra os dissidentes: donatistas e, mais tarde, arianos. Em compensação, em relação à religião tradicional, conserva uma atitude de tolerância (conquanto um pouco desdenhosa), contentando-se em proibir algumas práticas já recusadas por um paganismo esclarecido (os sacrifícios sangrentos, a magia, a adivinhação privada). Se não pôde conter os bispos e suas ásperas desavenças teológicas, soube, porém, durante seu reinado, neutralizar um cristianismo militante antipagão.

Os sucessores cristãos de Constantino (em particular Constâncio II, Valêncio e Teodósio) continuam a intervir nos assuntos da Igreja. Para tanto, podem se apoiar na teologia política elaborada por Eusébio de Cesareia em seus derradeiros escritos, em particular no Discurso para os trinta anos de reinado e na Vida de Constantino: se autor apresenta, neles, o modelo de um basileus cristão, posto à frente de um Império também cristão. Isso implica que ele "submeta os inimigos da verdade", proclame "as leis da verdadeira piedade" para todos, cuide de assegura  a salvação de todos. Investidos dessa missão de proteção, se não de vigilância, os imperadores cristãos, ao longo de toda a crise ariana, sustentam ou impõem fórmulas de fé diversas, concedendo seus favores aos que as aceitam, mas perseguindo os que as rejeitam (os dissidentes, sobretudo bispos, são depostos e banidos - é o caso de Atanásio de Alexandria e de Hilário de Poitiers). Ao cabo de cinquenta anos de controvérsias, a ascensão ao poder de Teodósio I (379-395) assinala o retorno definitivo à "ortodoxia". Definida no Concílio de Niceia de 325 e reafirmada no Concílio de Constantinopla de 381, recebe o apoio do imperador, que faz dela uma lei válida para todos. Uma série de leis, cada vez mais repressivas, restringem a liberdade de expressão e de culto de todos os dissidentes da ortodoxia, tidos como heréticos e perseguidos como tais.

Mas, entre os deveres do imperador, Eusébio incluía também o de combater o "erro ateu", o paganismo. Por isso, paralelamente às medidas de repressão das dissidências cristãs, os sucessores de Constantino tomam outras que vão restringir, depois proibir, a liberdade do culto pagão. Os filhos de Constantino são os primeiros a atacá-lo. Uma lei de Constante, de 341, declara: "Cesse a superstição, seja abolida a loucura dos sacrifícios." Ainda não se trata, porém, ao que parece, de uma proibição absoluta de todos os cultos pagãos já autorizados, mas de uma simples renovação das restrições impostas por Constantino. De fato, uma lei sua proíbe que se destruam templos, tolerados, "embora toda superstição deva ser totalmente destruída". Constâncio II vai mais longe, por motivos entre os quais parece ter estado a política: no período que vai de 353 a 357, depois da derrota do usurpador Magnêncio, que havia autorizado novamente os sacrifícios noturnos, várias leis ordenam o fechamento dos templos e tentam proibir totalmente o culto pagão: quem ousar sacrificar é ameaçado de ser "golpeado por um gládio vingador" e de confisco dos bens; a adoração de estátuas é proibida sob pena de morte. No entanto, essas medidas só foram parcialmente aplicadas. A política religiosa dos dois irmãos não resulta portanto na repressão sistemática do paganismo, mas somente num acentuado desfavorecimento.

O imperador Juliano, que nascera cristão mas voltara à religião tradicional, abole aquelas medidas e tenta reavivar esta; todavia, seu curto reinado (361-363) não lhe permite levar a cabo essa empreitada. Sua lei escolar, logo abolida por seu sucessor Joviano, havia tentado proibir que os professores cristãos difundissem a herança da cultura clássica, tida como um bem do paganismo. A política dos sucessores de Valenciniano e Valêncio é, no entanto, relativamente tolerante com este. Uma das suas principais leis, renovada em 370, declara manter a liberdade de culto. Mas, no final do seu reinado, Valêncio proíbe de novo os sacrifícios sangrentos.

A política religiosa de Graciano e Teodósio I - depois, com a morte do seu associado, deste último somente - adotará medidas muito mais decisivas, que acabarão pondo o paganismo fora da lei. Quando da sua ascensão ao poder, Teodósio rejeita o título e o manto de Pontifex maximus, e logo em seguida Graciano renuncia a ele. Os cristãos que voltam ao paganismo são objeto de vários editos, perdendo desde 381 o direito de fazer testamentos. Essa lei é renovada em 383: aplicando-se estritamente aos cristãos batizados que abandonam sua fé, considerados "excluídos do direito romano", ela deixa aos que foram apenas catecúmenos o direito de testar em benefício da família. Será endurecida por Teodósio em 391, a pretexto de que o abandono da comunhão cristã equivale a "apartar-se do resto dos homens". Por outro lado, velhas interdições visando as práticas religiosas tradicionais são renovadas: em 381 e 382, os sacrifícios sangrentos são proscritos, sob pena de deportação; em 385, as práticas de adivinhação, sob pena de morte. Os dois imperadores também vão investir contra as próprias instituições do culto pagão. No outono de 382, Graciano manda tirar do Senado a estátua e o altar da Vitória, depois suprime as imunidades das Vestais e dos sacerdotes pagãos, confisca seus rendimentos e subvenções; Teodósio ordena o fechamento dos templos: só podem permanecer abertos, com fins unicamente culturais ou para a realização de assembleias públicas, os que contêm obras de arte. Vários templos, em 384, são fechados ou demolidos.

Mas é uma série de leis emitidas de 391 a 394 que culmina essa investida, vedando qualquer manifestação do culto pagão: a lei de 24 de fevereiro de 391, proíbe-a para Roma; a de 16 de junho, para o Egito; a de 8 de novembro de 392, para todo o Império. Todos os sacrifícios, inclusive os modestos sacrifícios do culto doméstico, são desautorizados, seja em público, seja em particular, seja qual for o nível social, sob pena de multas pesadíssimas e até de punições mais graves. Essa lei é que faz do cristianismo a religião do Império, já que a religião tradicional perdeu todo direito legal de se exprimir: com Teodósio (e não com Constantino, como às vezes se diz), o Império Romano tornou-se oficialmente cristão.

FONTE:

MARAVAL, Pierre. Quando o Império Romano se torna cristão. In: CORBIN, Alain - (org.). História do Cristianismo. São Paulo, Martins Fontes, 2012.


CRÉDITO DA IMAGEM:

cleofas.com.br

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Antigos Cemitérios Cristãos de Roma

Orante. Pintura sobre reboco do século III em uma Catacumba Romana, representando uma mulher em súplica e oração no que seria o Paraíso. Sob a pintura, os túmulos.

Em Roma, os cemitérios se situavam fora dos portões da cidade. Os romanos tinham os corpos cremados, e suas cinzas guardadas em urnas junto das de outros parentes. Os judeus que viviam no Império enterravam seus mortos em cemitérios subterrâneos, administrados pelas sinagogas. Os cristãos seguiam a mesma prática dos judeus referentes ao sepultamento, e seus cemitérios ficaram conhecidos como ''catacumbas''.

As catacumbas estavam localizadas em propriedades de cristãos ou de ricos protetores pagãos. Os cristãos que tinham algumas terras as doavam à comunidade cristã para os sepultamentos que iam crescendo. As catacumbas possuíam uma estrutura bastante complexa, divididas em ambulacra (passagem subterrânea), loculi (túmulos escavados na parede), pilae (túmulos um sob do outro), arcosolium (túmulos decorados com um nicho em arco), cubicula (câmaras particulares para os túmulos de uma família) e as cryptae (capelas decoradas com afrescos de motivos religiosos, dedicadas geralmente a pessoas importantes e santos). Os túmulos eram abertos dos dois lados da catacumba, e quando não existia mais a possibilidade de novas escavações, o piso dos corredores era escavado e recebia novos túmulos (formae).

Os cemitérios cristãos eram protegidos contra sacrilégios pela Lei Romana, que os considerava invioláveis. Os romanos tinham medo de violar os túmulos cristãos, pois acreditavam que poderiam ser incomodados pelos espíritos dos mortos. Quanto a nomenclatura, as catacumbas eram reconhecidas pelo nome do antigo proprietário onde foram escavados os túmulos; pela topografia onde estavam assentadas; e pelo nome de algum mártir ou santo.

Enterros em catacumba foram práticas em alta durante a época do Cristianismo Primitivo (séculos I, II, III e parte do IV d.C.); que passaram a entrar em declínio após a transformação do Cristianismo em religião estatal do Império Romano, através do Édito de Tessalônica de 380 d.C., realizado durante o governo de Teodósio I. Os corpos passaram a ser sepultados em cemitérios localizados nos terrenos das igrejas.

O mapa abaixo, retirado do livro A Idade Antiga – Curso de História da Igreja I, de Franco Pierini (Paulus, 2013), nos dá a localização de 41 cemitérios cristãos ao redor da cidade de Roma, espalhados pelas inúmeras vias que ajudavam na comunicação entre as cidades italianas.

Esses cemitérios, além de representarem um dos aspectos culturais dos cristãos que viviam em Roma, são o testemunho da Arte Cristã Primitiva, representada nos inúmeros afrescos com motivos religiosos que decoravam os corredores de túmulos.




FONTES: JEFFERS, James S. Conflito em Roma: ordem social e hierarquia no Cristianismo Primitivo. São Paulo, Edições Loyola, s. d. Págs 73,74 e 75.

O mapa foi entregue pela professora de História Antiga II, Maria Eugênia Matos, aos alunos da graduação em História da UFAM (Universidade Federal do Amazonas).


CRÉDITO DAS IMAGENS:

historiasevariaveis.blogspot.com
A Idade Antiga - Curso de História da Igreja I